Há poucos dias, o José Ruah telefonou-me e perguntou de chofre: "Ouve lá.,ainda podes meter mais um texto no
livro? É que acabei de saber que o António Cunha Coutinho já faleceu...".
Já não podia. Tinha acabado de rever as provas e de ter dado à gráfica a ordem de impressão. Para além de que as 152 páginas estão já bem preenchidas e com letra pequenina. Mas isso era o menos, retirava um qualquer texto meu e utilizava o espaço para um texto evocativo do António Cunha Coutinho. Mas o que tem de ser tem muita força. É premonitória a passagem da introdução aos textos "In memoriam" em que adverti que a evocação dos Irmãos que já partiram para o Oriente Eterno podia não estar completa, pois podíamos de algum não ter sabido do seu falecimento. Foi mais cedo que mais tarde que se comprovou isso... Pois bem, se não pode já entrar no livro,opta-se pela segunda melhor solução possível: aqui fica a evocação do António Cunha Coutinho.
Na época em que o conheci, andava eu por volta da idade de Cristo, foi talvez o maçom que mais me exasperou! Era um homem tronituantemente conservador, que não perdia uma ocasião, asada ou nem tanto, para alardear o seu conservadorismo. Conservadorismo é uma maneira de dizer... Na época, eu via o António Cunha Coutinho como um ultraconservador, ultramontano e tudo o mais que eu me pudesse lembrar com a palavra ultra...
Para mim, que atingira o que veio a ser a maioridade quando ocorrera a Revolução dos Cravos e vivera aqueles tempos de mudança e de esperança, as ideias do António Cunha Coutinho, em relação às questões políticas, sociais, de costumes, etc., não podiam ser mais contrárias às minhas. O que nunca impediu - acentue-se bem! - prolongadas, amenas e agradáveis cavaqueiras de Irmãos, que conviviam sem problema com as mútuas diferenças.
Certo dia, na sequência de uma das costumadas diatribes que o António se comprazia em debitar, atirei-lhe, provocador: "Ó António, estou a ver que para ti até o Salazar foi um perigoso esquerdista...". O António suspendeu o discurso, esboçou um sorriso malandro, piscou o olho e, baixando a voz, sussurrou-me, cúmplice: "Ora estás a ver como percebeste?". E eu fiquei desarmado!
Com o passar do tempo e a convivência, percebi mais e melhor. Classificar o António Cunha Coutinho de conservador, ultramontano, ou qualquer outro epíteto do género era incorreto e redutor. O António Cunha Coutinho era, tinha orgulho de ser, e mostrava-o a quem quisesse e soubesse ver, bem mais do que isso: era a representação do pensamento do português do antigamente, do Antigo Regime, da velha tradição lusitana! E, quando falo do Antigo Regime, não falo do tempo da Outra Senhora, nem da monarquia. O pensamento do António recuava bem mais atrás, ao tempo do senhor D. Miguel, rei absoluto de Portugal e dos Algarves, d'aquém e d'além mar em África e resto do Mundo! O António era conservador, mas não era só conservador. Era também monárquico, mas não era só monárquico. Era, com todas as letras, miguelista!
Esclareça-se: estamos a falar no plano dos arquétipos, que duvido bem que quem vivia no século XX ainda conseguisse ser um vero miguelista, absolutamente servidor de absoluto rei. Mas o António mostrava orgulhosamente a sua costela miguelista, obviamente monárquica, mas sobretudo tradicional, da tradição rural da linhagem portuguesa, do Portugal de antanho que, para o bem ou para o mal, faz parte das nossas raízes.
Com o tempo, aprendi que as diatribes políticas e sociais do António eram sobretudo um meio de provocar, de expressar de forma propositadamente chocante, que havia e há na nossa lusitana alma caraterísticas que podem não estar na moda, mas que bem andamos em não desprezar: a honra, a fidelidade à palavra dada, a tenacidade, a capacidade de lutar, contra tudo e contra todos, por aquilo em que se acredita, se necessário quebrando, mas nunca torcendo.
Este era o verdadeiro António Cunha Coutinho, o que se escondia por detrás das suas provocações e diatribes. O conservador e ultramontano era o personagem que ciosamente escondia os Valores que só aos mais atentos deixava entrever!
Longas horas de mútuas e bem-dispostas provocações com bonomia passámos e vivemos! E por entre as nossas discordâncias, mais tarde ou mais cedo, lá passava a mensagem do apreço à honra, da verticalidade, dos Valores que o homem que se quer de bem deve, sempre, incansavelmente, cultivar e proclamar - nem que seja de forma provocatória!
Do António Cunha Coutinho todos, os mais novos, nos exasperámos com o acessório e todos, dos mais novos aos mais velhos, nos ilustrámos com o essencial - os Valores que não são de direita, nem de esquerda, nem do passado, nem do futuro, que são de sempre e dos homens de bem.
Naquela época, há cerca de vinte anos, eu já via o António Cunha Coutinho como um velho rijo. Curiosamente, cerca de vinte anos passados, nunca me passou pela cabeça que já não estivesse entre nós. Talvez porque afinal os valores profundos que provocatoriamente transmitia são intemporais.
António Cunha Coutinho era absoluto em tudo: nas ideias políticas, nas diatribes, nos valores. Foi, em absoluto, um maçom digno e um homem de bem. Assim o declaro, proclamo e recordo. Absolutamente!
Rui Bandeira