Do Início da Vida Humana
Para início de conversa, quero deixar bem clara a minha posição, que se resume a duas frases: 1. Eu sou contra o aborto; 2. Eu vou votar SIM no referendo de 11 de Fevereiro à pergunta se concordo com a despenalização do aborto, se feito a pedido da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, até às dez semanas de gravidez.
Não existe qualquer contradição entre as duas proposições: ser contra o aborto não implica concordar com a penalização de quem decide recorrer a ele, sabe-se lá com que estado de alma; concordar com a despenalização do aborto até às dez semanas de gravidez e praticado, por opção da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, isto é, sem ocorrer de forma clandestina, não me faz entender que o aborto seja algo bom.
Respeito a posição de todos aqueles que liminarmente rejeitam a despenalização, com fundamento no direito à vida do ser concebido. Reconhecendo o pressuposto ético de tal posição, considero, porém, que à mesma falece fundamento racionalmente lógico.
Do meu ponto de vista, uma questão tão sensível em termos éticos, emocionais e sociais só pode ser adequadamente analisada à luz de uma estrita racionalidade. E, à luz da mesma, importa afastar alguns escolhos que só servem para perturbar a lúcida visão do problema.
Em primeiro lugar, não está em causa, no debate da questão, se existe Vida no embrião. É inegável que existe Vida no embrião. A questão, até do ponto de vista ético, não é se se vai atentar contra a vida existente no embrião, mas se existe então, e se se atenta contra ela, Vida Humana.
Atentar contra a Vida é inevitável e uma necessidade imperiosa da nossa sobrevivência, quer individual, quer enquanto espécie: matamos animais para comer, aniquilamos insectos que nos incomodam, ou roedores que invadam o nosso habitat, colhemos, e assim matamos, plantas para a nossa alimentação ou simplesmente para nosso deleite visual (a Vida vegetal não deixa de ser Vida...); destruímos bactérias porque nos atacam ou simplesmente nos causam sintomas desconfortáveis; mais, o nosso sistema imunitário naturalmente destrói a vida de bactérias e vírus que penetram no nosso corpo (e ai de nós quando falha...). O Universo está organizado de forma que a sobrevivência, o simples conforto, dos membros de uma espécie implica a aniquilação, a destruição, a morte de membros de outras espécies. Esta é uma constatação inevitável, que nos obriga a concluir que o que constitui violação ética não é o atentado contra a Vida, é o atentado contra a Vida Humana.
O que importa então verificar é se o aborto até às dez semanas constitui a morte de um Ser Humano. E é neste ponto que eu divirjo das análises mais simplistas dos defensores do Não. No meu entender, o critério para estabelecer o momento a partir do qual se inicia a Vida Humana não pode deixar de ser similar ao critério que é estabelecido quanto à cessação da mesma.
Durante milhares de anos, o limiar entre a Vida e a Morte aferia-se pela capacidade de respirar: quem respirava estava vivo; quem já não respirava estava morto. Se não erro, a Tradição Judaica ainda incorpora esta noção. Daí resultava que, simetricamente, a Vida Humana só se iniciava com o nascimento, momento a partir do qual o nóvel Ser Humano passava a respirar autonomamente. E, se o não fizesse, era considerado um nado-morto. Esta noção ainda se manifesta no Sistema Jurídico, que considera qua a personalidade jurídica só se adquire pelo nascimento. É, creio, em função desta noção, que nas sempre directas culturas anglo-saxónicas, se conclui que, só existindo personalidade jurídica com o nascimento, então, antes do nascimento o feto não tem quaisquer direitos (nem o direito à vida...) e, logo, é admitido o aborto sem limitação de tempo (Estados Unidos, Inglaterra). Obviamente que a Ciência nos permite hoje saber que a fronteira entre a Vida e a ausência dela não está na capacidade de respirar autonomamente e, por consequência, esta noção está ultrapassada.
Hoje em dia, está, creio que consensualmente, admitido que a fronteira entre a Vida e a Morte se situa na cessação da actividade cerebral. Existindo actividade cerebral, a pessoa está viva; quando ela já não existe, morreu. Logo, se a Vida Humana cessa quando cessa a actividade cerebral, então a mesma inicia-se quando tal se inicia!
Estabelecido este princípio, então a sua aplicação à questão do aborto torna-se intuitiva: o aborto será, ética e juridicamente, admissível se e enquanto não se tiver iniciado actividade cerebral.
A Ciência elucida-nos também que é a partir das dez semana de gestação que se começam a criar as células do sistema nervoso central e que um aglomerado de células nervosas agrupadas no que virá a ser o cérebro existirá por volta das doze semanas de gestação; é assim certo que não existe actividade cerebral antes das dez semanas de gestação. Esta será a razão pela qual, até às dez semanas de gestação, o conjunto de células em desenvolvimento é denominado de embrião e, a partir daí, passa a ser designado por feto.
Em resumo: até às dez semanas de gestação não existe actividade cerebral e, logo, ainda não se iniciou a Vida Humana. Logo, não constitui atentado à Vida Humana o aborto até essa ocasião. Não me é, assim, eticamente inadmissível a despenalização do aborto até às dez semanas de gestação.
Rui Bandeira