Liberdade e tratamento da doença
Os cuidados de saúde não se limitam aos cuidados do corpo e à erradicação da doença física. Se assim fosse não haveria psicólogos, psiquiatras ou assistentes sociais, não haveria formação específica para os prestadores de cuidados de saúde no que concerne a relação com o doente, e não haveria tantos estudos que apontam para que o melhor ou pior ânimo do doente fazem muitas vezes a diferença entre a convalescença e a morte.
Por outro lado, no nosso país (e em muitos outros) o paciente tem - desde que lúcido - sempre a última palavra quanto aos cuidados que lhe são prestados, podendo recusá-los ou procurar outros prestadores. Se um médico, o seu diagnóstico os a terapia que preconiza não nos agradam, podemos consultar outro, e escolher entre os dois - ou não escolher nenhum. A saúde de cada um é algo sobre que a cada um incumbe decidir, e não pode ser imposto a ninguém (que se encontre mentalmente capaz de decidir) qualquer tipo de tratamento.
Estas duas condicionantes levaram à inevitável mas controversa consequência - plasmada na legislação de muitos países - de que cabe ao paciente a escolha de uma terapia que o satisfaça - mesmo que esta seja menos convencional, como a acupunctura, homeopatia ou o reiki. Em muitos casos, mesmo, os sistemas de saúde e as seguradoras pagam essas terapias.
A alternativa seria o Estado definir que terapias comparticipa e quais deixa para serem suportadas pelo próprio. Neste caso, os critérios podem ser os mais diversos. Pode adotar-se critérios estritamente objetivos, como o da comprovada eficácia em ensaios clínicos controlados ou o custo da terapia per capita. Por outro lado, pode ter-se em conta fatores estritamente culturais, como o da aceitação da população por certa prática, ou a sua revolta em caso de esta deixar de ser comparticipada.
Num mundo ideal, e numa perspetiva estritamente científica, seria talvez desejável que cada terapia fosse previamente validada em ensaios clínicos que comprovassem o seu grau de eficácia e os riscos que a mesma possa comportar. Todavia, como o mundo é imperfeito, não há dinheiro que pague esses ensaios a não ser que dos mesmos possam advir lucros para os seus promotores (ou, pelo menos, o ressarcimento dos custos do ensaio). Por outro lado, impedir o recurso a uma prática que, se bem que de eficácia duvidosa, não será, por outro lado, certamente prejudicial, não prejudica senão o próprio, e não caberá, talvez, ao Estado decidir sobre o que diz respeito à vida privada de cada um...
Em causa está, de facto, a liberdade individual. Terá o indivíduo o direito de tomar uma decisão com consequências funestas para si mesmo? Ou só tem a liberdade de decidir o que se espera que decida, e que tenha sido previamente validado? Caso decida "contra a corrente", terá o Estado, enquanto garante da Solidariedade Social, a obrigação de disponibilizar os meios para a aplicação de uma terapia de eficácia discutível e não comprovada? Terá o Estado o direito de recusar o pagamento de certos tratamentos - aceites e comuns noutras partes do mundo - por razões culturais?
Esta questão tem vindo a colocar-se recentemente no Reino Unido, com nova legislação a permitir aos sistemas de saúde, público e privados, rejeitar o pagamento de terapias muito dispendiosas, com o argumento de que o custo do tratamento de uma só pessoa permitiria tratar várias com uma terapia mais barata. Uma terapia ineficaz pode ser vista como um "sorvedouro" de dinheiro mal gasto.
Tomemos uma qualquer doença que seja inevitavelmente mortal se não tratada, como a meningite bacteriana neonatal, por exemplo. Suponhamos que um certo tratamento para esta tem uma eficácia de 90%, e custa 10.000€ por pessoa. Outro tem uma eficácia de 95%, mas custa 100.000€ por pessoa. Tratar 1000 pessoas com o primeiro custaria 10 milhões de euros, e acarretaria 100 mortes; tratá-las com o segundo custaria 100 milhões de euros, e levaria a 50 mortes. Ou, por outras palavras: para salvar 50 pessoas, gastar-se-ia mais 90 milhões de euros: um milhão e oitocentos mil euros por cada pessoa adicionalmente salva da morte certa. Com esses 90 milhões poder-se-ia salvar, eventualmente, muito mais de 50 pessoas, desde que aplicados de outra forma. O custo para os 50 que morrem seria alto, mas para a sociedade no seu todo seria mais baixo.
Claro que estas contas são simplistas. Há que ter em conta o que sucede nos casos mais frequentes de que a doença desapareça por si mesma, mesmo sem tratamento. Se três quartos das pessoas não tratadas a certa patologia acabarem por se curar sozinhas, então qualquer tratamento, para ser digno desse nome, deve permitir que se cure uma percentagem superior. Mas isso não basta: há o efeito placebo a ter em conta, que mais baralha as contas. E o efeito de várias terapias alternativas sobre a esperança e qualidade de vida. Enfim, o tema não é simples.
De facto, é muito difícil, e choca, chegar ao pé de várias vidas, colar-lhes uma etiqueta de preço, e escolher então as mais baratas. Numa sociedade com recursos ilimitados isso seria uma escolha inaceitável. Contudo, e como sabemos, o mundo não é perfeito, nem o dinheiro nasce nas árvores. Por outro lado, a qualidade de vida é, muitas vezes, preferível à "quantidade de vida": todos preferiríamos, certamente, viver apenas mais 2 anos sem dores de monta mas talvez um pouco narcotizados por causa da medicação que, lentamente, vá destruindo mais o nosso organismo já doente, a viver mais 3 anos sob dores horríveis.
A assistência espiritual é, muitas vezes, o paliativo mais eficaz - e o único "tratamento" que pode ser aplicado. A lei que temos no nosso país não é igual à inglesa, e talvez por isso determine o direito à assistência espiritual na doença, suportado pelo Estado, no pressuposto de que aumente a qualidade de vida da pessoa. De facto, a sociedade em que vivemos rege-se por um princípio muito claro: um homem, um voto. É uma democracia, não uma tecnocracia. E, se por um lado é revoltante que, nas urnas, toda a perícia de um especialista valha tanto quanto a ignorância de um qualquer patarata, a verdade é que ainda não se encontrou um sistema com menos defeitos...
Paulo M.