+ Lusofonia ...
Já confessei aqui (e noutros locais...) que sou um apanhadinho por África.
Pela África continental tanto como pela insular.
Hoje dei de caras com um artigo escrito por pessoal amigo e fixe de Cabo Verde, e embora não tenha qualquer relação direta com Maçonaria não deixa de ter o maior interesse para nós (na minha modestíssima opinião) na medida em que tudo o que significa relacionamento com "portugueses de outras nacionalidades", o seu bem-estar e a convivência fraternal que é mantida tem o maior significado para nós.
Ao fim e ao cabo falamos de uma outra "Irmandade", provavelmente não tão vasta, mas certamente com laços universais também.
E Cabo Verde faz bem a transição entre a África profunda e a Europa. Nas suas cidades espalhadas pelas ilhas Cabo-Verdeanas encontramos a África mais tipicamente africana para logo depois, é só saltar de ilha, entrarmos em cidade que só não está na Europa porque o Atlântico se meteu de permeio.
Mas o nacionalismo sentido dos Cabo-Verdianos não interfere, em nada, com o amor por Portugal e pelos portugueses. Pelo menos no que se refere aqueles que eu conheço.
Transporto então para aqui um artigo publicado no "Expresso das Ilhas" de Cabo Verde referente a um encontro que aconteceu no Porto.
A «constituição da diáspora», a «cidadania democrática», o associativismo emigrante, o semipresidencialismo fraco e a participação política dos não residentes: a propósito de uma agradável estada na Invicta
1. Voltamos a um tema que, há cerca de mês e meio, mereceu a nossa atenção neste mesmo espaço: o da participação na vida do país de origem das nossas comunidades emigradas ou, de uma forma geral, dos nacionais não residentes. Fazemo-lo depois de uma experiência muito gratificante num encontro com cabo-verdianos na cidade do Porto, a convite de uma muito empreendedora Associação cabo-verdiana do Norte de Portugal, dirigida por Martinho Ramos.
Desde logo, surpreenderam-nos a capacidade organizativa e de mobilização da Associação – com o apoio de outros grupos, como o Clube dos Estudantes Africanos - , a par de impressionantes vitalidade e vontade de participar nos assuntos que dizem respeito ao país de origem. O que favorece uma forte ligação a Cabo Verde, aos seus problemas de desenvolvimento, à actividade das instituições e responsáveis políticos, às minudências do viver crioulo nas ilhas, sem esquecer – o que é deveras expressão inequívoca de uma alma cabo-verdiana imensa, de uma comum mátria quiçá congenitamente (ou quase) avessa a amarras territoriais – uma funda e, portanto, indelével marca cultural autónoma.
2. Para além de ilustres convidados da comunidade académica do Porto e de autoridades municipais e consulares (estas, em representação dos países africanos de língua portuguesa), uma plateia constituída por cerca de duas centenas de estudantes, dirigentes associativos, académicos e quadros superiores originários de Cabo Verde pôde dialogar connosco sobre a temática que nos foi sugerido abordar, qual seja a do quadro constitucional das comunidades no exterior, em particular no que toca à participação política em Cabo Verde.
3. Quadro constitucional – o nosso -, diga-se, bem mais tributário, na regulação que faz, de um país de diásporas, do que muitos outros países de emigração ( por exemplo, Portugal), atravessado por uma concepção abrangente e alargada de cidadania, que parece até normativizar o que IOLANDA ÉVORA chamou a criação de «metáforas nacionais», através da constituição de uma cultura nacional sem fronteiras e de uma identidade cultural como sinónimo de identidade nacional [«… Na formação de um Estado-nação para além das fronteiras territoriais, procura-se o reforço do prolongamento dos elos entre o «eu» do emigrante e a nação num espaço mais alargado do que aquele fornecido pelos limites insulares; torna-se necessário garantir o duplo reconhecimento entre emigrantes/imigrantes e o Estado cabo-verdiano…»].
Assim se explica que, por exemplo, se tenha constitucionalizado a participação dos não residentes nas eleições legislativas e presidenciais; que os cidadãos cabo-verdianos havidos também como cidadãos de outros Estados não percam, por esse facto, a capacidade eleitoral activa [ como diz um reputado jurista luso, OLIVEIRA ASCENSÃO, o Estado de origem não é prejudicado pelo facto de os seus nacionais exercerem direitos políticos no Estado de destino. Pelo contrário, a duplicação de direitos é a projecção natural da dupla integração em que os emigrantes se encontram»].
Poderia, assim, dizer-se, seguramente com alguma propriedade, que uma tal evolução (da cidadania, do seu teor ou exigência) corresponde de alguma forma à evolução da visão do Direito, do Estado e da Constituição que vai, no nosso caso, do nacionalismo revolucionário à irrupção da democracia e no que se lhe segue. De uma cidadania, ao fim e ao cabo, acantonada numa dimensão jurídico-formal e consubstanciada numa ideia de pertença a um estado soberano e pela via do substrato político-ideológico daquele, a uma determinada perspectiva de identidade, melhor, leitura de «identidade» nacional (uma nação soberana com um destino ligado à África) a uma dimensão cidadã que acentua a componente individualista-liberal de matriz setecentista e, sobremaneira, a de participação. Diríamos, uma noção de cidadania que afina pelo diapasão do cosmopolitismo, que, designadamente, permite a compatibilização do ser cabo-verdiano com a titularidade de múltiplas nacionalidades.
4. Falou-se (e discutiu-se) sobre a dimensão da participação dos não residentes nas eleições nacionais em Cabo Verde, das dificuldades e dos condicionalismos a uma mais forte participação, verificando-se – se compararmos as eleições e 2001 e as de 2006, seja nas legislativas, seja nas presidenciais – um crescimento de recenseados e de votantes, em números absolutos, mas igualmente um aumento da abstenção[1]. Falou-se (e discutiu-se) sobre a revisão constitucional em curso, particularmente no que se refere à diáspora, salientando-se a possibilidade de remoção (o que mereceu o nosso acordo, aliás, vindo já de alguns anos e manifestado em escritos diversos) ou não da regra constitucional vigente que limita apenas[2] – numa fórmula discutível do ponto de vista do princípio da igualdade do voto – o impacto do voto dos emigrantes, desde que ultrapassem um quinto dos votos apurados no território nacional (art.º112.º, n.º 2).
5. Abordou-se, de forma particular, a participação nas eleições presidenciais, salientando-se o facto de nenhuma outra eleição justificar tanto a participação de todos os cidadãos, tendo sobremaneira em consideração o sistema de governo vigente (o famigerado semipresidencialismo fraco, que, por sinal, vimos advogando, de forma notória e convicta, inclusivamente em escritos de cariz académico, para quem esteja atento e não tenha a memória enfraquecida ou dominada por fantasmas, desde os primeiros momentos da Constituinte, em 1992), os poderes presidenciais e as funções essenciais de representação, de unidade e de influência política e moral que cabem ao Chefe de Estado, pois fica irremediavelmente mitigado o argumento segundo o qual se corria o «risco» de os não residentes decidirem a sorte do país e não sofrerem as consequências das opções de política adoptadas («não parece justo que sejam pessoas nessas condições – que directamente não sofrerão as consequências da escolha – a determiná-la, impondo-a aos cidadãos residentes no país, esses, sim, directamente afectados por ela» - diz-se).
5. Falou-se (e discutiu-se), enfim, sobre uma hipotética (futura) participação em eleições municipais, na integração social e cultural nos países de residência, a dimensão, a natureza e a suficiência (ou não) das instituições existentes – ao nível do Estado e da administração pública cabo-verdiana, incluindo das que estão sediadas nos estados de acolhimento – e até das vantagens da participação política nos países de acolhimento. Falou-se e discutiu-se com interesse vivo, com paixão muitas vezes, amiúde na base de pressupostos indemonstrados ou falsos, mas, diga-se também, com elevação e respeito pela diferença (não é assim, Silas Leite e Iolando?).
6. Concluiu-se que, se somos realmente diáspora, temos de ser uma diáspora de cidadãos.
Rematámos que (nosso entendimento) o quadro de participação política deve apenas estar condicionado pela regra da incompatibilidade com a ausência do território nacional. Mas a exigência de realização de uma diáspora de cidadãos, a imposição (constitucionalizada) de uma noção de cidadania que não tem como critério as fronteiras físicas do Estado mas que ainda se mantém e alarga aos que mantêm até outra nacionalidade (a do estado de residência) – o «re-significar o ser cabo–verdiano» (IOLANDA ÉVORA) - implica que seja excepção o limite à participação e, não, a regra. Tudo deve ser, pois, feito, para que se reduzam as dificuldades de realização dos princípios fundamentais de um processo eleitoral genuíno, transparente e justo, de forma a garantir, nomeadamente, a seriedade do voto.
7. Bem, houve depois o porto de honra, o convívio generalizado, as perguntas menos discretas, as respostas diplomáticas por vezes, as confidências e as queixas, as mantenhas e a sessão das batucadeiras-estudantes a criar um ambiente de comunhão e de festa, a desaguar no jantar e sarau musical em Gondomar, na demonstração da capacidade de intervenção e de diplomacia dos nosso anfitriões, o Martin, o Keita, o Marco, o Garcia, a Betânia, a Edna, o Mariano, o Caló, a Filomena Paiva e tantos outros que agora recordo com amizade e a quem dedico esta crónica singela e prazenteira.
[2] Ela não condiciona a participação dos emigrantes nas eleições presidenciais, como o faz, por exemplo, a Constituição portuguesa segundo a qual: «a lei regula… devendo ter em conta a existência de laços de efectiva ligação à comunidade nacional». A ideia de «comunidade nacional», como é formulada na CRP, não é a histórica e culturalmente ligada à existência da diáspora cabo-verdiana; a CRCV parece sufragar não uma noção territorial mas cultural de comunidade nacional.
JPSetúbal