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08 junho 2015

No século XXI fará sentido ser-se maçon? - II




Uma das características da maçonaria é a sua aparente aversão por tudo quanto seja novo. Aqui, a maçonaria trai claramente a sua raiz anglo-saxónica tradicionalista, com a primazia do costume sobre o estatuído, da tradição sobre a modernidade, em suma, da imutabilidade sobre a inovação. Esta tendência é, simultaneamente, uma das suas maiores fraquezas e uma das suas maiores forças. Em 300 anos a maçonaria não mudou grande coisa; de facto, os princípios da maçonaria são, hoje, os mesmos que eram há 300 anos. Houve, porém, suficiente bom-senso aquando da sua instituição para que estes se tivessem mantido relevantes até aos dias de hoje. Contudo, à boa forma anglo-saxónica, os tais "princípios" não estão propriamente escritos numa lista - precisamente do mesmo modo que o Reino Unido não tem uma Constituição, mas se considera ser esta o conjunto dos documentos legais, sentenças judiciais, costumes, tratados e outros - contrariamente com o que sucede com a maioria dos países, que têm uma constituição escrita e claramente delimitada. Pode considerar-se, todavia, que os que se seguem corresponderão, grosso modo, ao que a Maçonaria tem como propósito.

Tornar homens bons em homens melhores. A maçonaria nunca pretendeu ser um refúgio de homens caídos, ou um reformatório de almas perdidas. Não cura o alcoolismo, não dá aconselhamento psiquiátrico, e muito menos transforma bandidos em anjos. A maçonaria sempre teve, e terá, elevados padrões de exigência moral que se aplicam quer aos seus membros quer àqueles que pretendem sê-lo, e por isso os seus regulamentos e costumes preveem especificamente que pessoas que enfermem das limitações acima descritas não integrem as suas fileiras - e sejam mais tarde discretamente afastadas se a triagem não tiver sido eficaz. O estrito cumprimento das leis dos países em que está implantada, bem como o dos deveres cívicos, familiares, laborais e religiosos, são algo que se espera - mais, se exige - de qualquer maçon, sob pena de eventual exclusão ou mesmo expulsão da Ordem. Quanto à forma como, cumpridos estes requisitos mínimos, um homem bom se torna melhor, essa dependerá exclusivamente da vontade de cada um, daquilo que escolha melhorar e de onde pretenda chegar. É um caminho estritamente individual e profundamente pessoal, do qual a maioria nunca fala ao longo de toda uma vida.

Fomentar e nutrir o amor fraternal. Organizados em lojas e reunindo-se regularmente em sessões - que, tipicamente, contam entre uma e três dezenas de presenças - os maçons executam rituais razoavelmente semelhantes em todo o mundo, o que torna as cerimónias maçónicas num elo de ligação, numa experiência comum entre homens oriundos das mais diversas proveniências entre quem se fomenta o espírito de grupo e as ligações próximas e de longo prazo. Ao atravessar barreiras sociais, económicas, raciais, religiosas e políticas a maçonaria congrega homens que, de outro modo, nunca se teriam conhecido, e aqui se tratam entre si por "irmão" e por tu, independentemente das posições, cargos e honrarias que uns e outros tenham ou mereçam (ou não...) dentro ou fora da maçonaria. A fraternidade e a tolerância são valores preponderantes por serem conducentes à harmonia que se procura e que é essencial ao bom funcionamento das lojas e da sociedade em geral.

Construir e promover a auto-confiança. A loja constitui um microcosmos da sociedade envolvente, quer na sua diversidade, quer na multiplicidade de ofícios que aí existem. Tal como uma associação tem o seu presidente, o seu tesoureiro, o seu secretário, etc., também em cada loja há ofícios semelhantes - e alguns outros diferentes - que vão sendo ocupados sucessivamente por diferentes pessoas. No processo, não só estas prestam um serviço à loja, como recebem da loja a possibilidade de enriquecer a sua experiência no exercício do cargo. Aprende-se, assim, coisas simples - e fastidiosas, mas necessárias! - como elaborar um ata; outras, atemorizantes para tantos, como falar em público exprimindo uma ideia que antecipadamente se tenha elaborado; ou perceções mais profundas, como a de que um cargo é, ou deve ser, acima de tudo, a prestação de um serviço, e não uma manifestação de poder.

Cultivar a solidariedade. Os maçons são encorajados a tomar parte ativa na comunidade, e a prestar auxílio aos mais carenciados na medida das possibilidades de cada um. Se bem que a maçonaria não seja uma instituição de beneficência, no sentido de que este não é o seu propósito fundamental, é esta, contudo, uma das vertentes de enriquecimento pessoal que fomenta e promove. Nem sempre o auxílio prestado é em espécie; rapidamente se aprende que a maior dádiva é que cada um dê um pouco de si, seja do seu tempo, do seu saber, ou mesmo do seu sangue - como a Loja Mestre Affonso Domingues tem promovido intermitentemente há um número apreciável de anos.

Buscar a Verdade. Nem as lojas são locais de culto, nem ass sessões e rituais maçónicos foram concebidos enquanto substituto de uma ida à igrejam templo, mesquita ou similar. A maçonaria regular exorta cada um dos seus membros a cumprir os deveres que a sua crença lhe imponham. Simultaneamente, o princípio da tolerância é constantemente recordado, especialmente no que concerne a tolerância religiosa, uma vez que esta está matricialmente na origem da Maçonaria. Espera-se de cada um que procure (e cumpra com) a Verdade que lhe seja mais adequada, e que aceite a diversidade de percursos que, frequentemente, serão tantos quanto aqueles que os percorrem.

Baixar a guarda. Reduzida ao essencial, pode dizer-se que a maçonaria proporciona aos seus membros um contexto onde, por algum tempo, se podem refugiar das lutas e fadigas do mundo exterior, despir as cotas de malha e baixar as espadas das lutas do dia-a-dia. É para isso que se cultiva um ambiente de confiança, e que os assuntos fraturantes e a própria discórdia são deixados à porta do Templo. Longe de constituir um momento de fraqueza, esta vulnerabilização deliberada acaba por se traduzir num momento te repouso, de descontração, e mesmo de um certo abandono, que ajuda a retemperar-nos as forças.

Como se vê, a maçonaria só aparentemente é avessa ao que é novo; a mensagem da maçonaria é que, de tão intemporal, não carece, porventura, de modernização...

Paulo M.

http://www.dummies.com/how-to/content/how-freemasonry-is-still-relevant-today.html

01 junho 2015

No século XXI fará sentido ser-se maçon? - I






Chama-se "Idade das Luzes" ao período que decorreu desde 1650 até 1780, aproximadamente. Nesse período, as forças intelectuais e culturais na Europa Ocidental davam preponderância à razão, à análise e ao individualismo, por oposição às linhas tradicionais da autoridade. Esta visão era promovida por filósofos e pensadores nos círculos em que estes se movimentavam, como as coffeehouses, que eram estabelecimentos comerciais onde se consumia café, chá e chocolate - mas não bebidas alcoólicas - e onde se trocavam ideias desde as mais fúteis - como a moda da época, os escândalos da semana ou a coscuvilhice do dia - a outras mais elevadas - como as ciências naturais, as últimas descobertas e invenções, e mesmo as mais recentes ideias e correntes da filosofia.

Estas novas ideias desafiavam frontalmente a autorizade de instituições profundamente enraizadas no tecido social, especialmente a Igreja Católica, e a possibilidade de reformar a sociedade através da tolerância, ciência e ceticismo era tema permanente. Muitas das ideias discutida, por porem em causa a autoridade da Igreja e da Coroa, poderiam ser interpretadas como heresia, traição ou ambas. Era, assim, essencial alguma discrição na sua discussão. Urgia encontrar-se locais discretos onde pudessem ser debatidas.

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Numa altura em que o tijolo - mais barato, fácil e rápido de produzir - tinha substituído a pedra quase na sua totalidade, as lojas maçónicas operativas que nesta altura ainda existiam - chamar-lhes-íamos hoje algo como "associações de construtores civis" - seriam mais ou menos tão anacrónicas como as nossas atuais associações desportivas e culturais de bairro, que só subsistem graças a um balcão de "comes e bebes" cuja exploração suporta as despesas correntes e vai adiando uma morte anunciada. Constituíam, assim, local privilegiado de encontro discreto de quem pretendesse encontrar-se em local menos exposto do que uma coffeehouse. 

Havia, contudo, um obstáculo: muitas eram de acesso reservado a membros. Os verdadeiros artífices da pedra já quase não existiam, encontrando-se os seus filhos agora no seu lugar, dando continuidade a antigos usos e costumes relacionados com a profissão, transmitindo de geração em geração segredos centenários cujo propósito se perdera havia muito e constituiam a aura de um certo mistério que era apenas transmitida a novos membros. As necessidades complementares de uns e outros terão levado a que os pensadores fossem aceites como membros das lojas maçónicas operativas. Não havia, pelos primeiros, qualquer interesse em perturbar o que já existia, pelo que todos os antigos usos se mantiveram. Porém, ao introduzir o debate filosófico e científico, os novos membros terão acabado por conduzir os antigos grémios a um rumo totalmente distinto. Com o tempo, as ligações ao trabalho da pedra foram-se transformando em meras referências simbólicas, e as ideias passaram a constituir aquilo que, de facto, se trabalhava. Surgia a maçonaria especulativa e foi neste contexto que, em 1717, foi fundada a Grande Loja Unida de Inglaterra - há quase 3 séculos, portanto.

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Poderia dizer-se - e há quem diga - que a maçonaria, surgindo por oposição a um statu quo, é "inimiga" das instituições que são contrárias aos princípios do racionalismo, da dúvida metódica, ou da tolerância religiosa. É uma forma falaciosa de colocar as coisas. A maçonaria não confronta religiões, antes defende ideias; não se foca nas instituições, mas antes no indivíduo; mas, acima de tudo, longe de ser "contra" o que quer que seja, é antes "a favor" de que cada um possa exercer a  liberdade de decidir o seu futuro, de escolher o seu lugar no mundo, e de construir, no seu interior, a identidade que o faça mais feliz.

Num mundo em que a tolerância é constantemente posta em causa, em que a autoridade militar, religiosa e económica se sobrepõe, frequentemente, à autoridade moral, aos princípios e aos bens maiores, e em que o pensamento é desvalorizado a favor da ação (tantas vezes mal orientada...), a maçonaria continua constituir a egrégora emanente de quantos acreditam que a existência humana não é "só isto" e que, inconformados com o que são hoje, almejam a ser melhores - e aqui, cada um sabe de si, e o que escolheu para se aperfeiçoar.

É esta, a meu ver, a ideia basilar da maçonaria: a de que é possível - e desejável - a construção de uma sociedade em que cada um, contribuindo com a sua diversidade no garante de que a tolerância e o respeito mútuo serão princípios universais e reciprocados, possa ser feliz à sua maneira. E isto continua a ser pertinente, hoje como há três séculos.


Paulo M.


10 julho 2012

Uma (nova) idade das trevas?




É conhecida a expressão "Idade das Trevas" como referência à Baixa Idade Média (séc. XI a séc. XV). Neste período de generalizado analfabetismo, o estudo era privilégio de uns quantos, e o conhecimento transmitido quase sempre em contexto monástico - e objeto de rigorosa filtragem de conteúdos que pudessem contrariar statu quoos dogmas vigentes. Não obstante, a produção intelectual e científica não cessou, e os avanços então decorridos vieram a constituir a base da Ciência Moderna.

O Iluminismo, movimento que surgiu no século XVIII de entre a elite dos intelectuais europeus da época, procurou promover a razão, o intercâmbio intelectual a ciência, opondo-se ferozmente à superstição, à intolerância e aos abusos por parte do poder vigente. Kant definiu assim o Iluminismo: "O Iluminismo representa a saída dos seres humanos de uma tutelagem que estes mesmos se impuseram a si. Tutelados são aqueles que se encontram incapazes de fazer uso da própria razão independentemente da direção de outrem. É-se culpado da própria tutelagem quando esta resulta não de uma deficiência do entendimento mas da falta de resolução e coragem para se fazer uso do entendimento independentemente da direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem para fazer uso da tua própria razão! - esse é o lema do Iluminismo".

O fogo iluminista varreu a Europa e propagou-se à América. Muitos países, porém, viriam a manter-se arredados dos seus princípios até aos dias de hoje. "É uma questão de tempo", poderíamos dizer, "até que os povos atinjam a maturidade necessária; quando isso suceder, reclamarão para si também o que outros conquistaram já." Infelizmente, a história recente vem apontar-nos uma alternativa bem menos risonha.

Nos Estados Unidos da América - um dos países que nasceu, precisamente, do Iluminismo, e fundado nos seus princípios - há, hoje em dia, uma considerável fatia da população anti-intelectual que, evidentemente, renega e rejeita esses mesmos princípios. Ainda muito recentemente foi notícia o facto de o Partido Republicano, no Texas, ter publicado a sua "plataforma de princípios", dos quais consta este:
"Knowledge-Based Education – We oppose the teaching of Higher Order Thinking Skills (HOTS) (values clarification), critical thinking skills and similar programs that are simply a relabeling of Outcome-Based Education (OBE) (mastery learning) which focus on behavior modification and have the purpose of challenging the student’s fixed beliefs and undermining parental authority."

Numa tradução livre: "Educação baseada no Conhecimento - Somos contra o ensino de «Competências Elevadas de Raciocínio», proficiência de pensamento crítico e programas semelhantes, que não passam de novos nomes para «Educação Baseada em Resultados» que se focam na modificação do comportamento e têm o propósito de desafiar as crenças do aluno e minar a autoridade dos pais." Vejamos agora o que isto quer dizer.

De acordo com a taxonomia de Bloom, há seis níveis de objetivos educacionais: o conhecimento, a compreensão, a aplicação, a análise, a síntese e a avaliação. As "Competências Elevadas de Raciocínio" são, então, a análise, a síntese e a avaliação. Estes três níveis de proficiência são os mais importantes para o pensamento crítico.

A "Educação Baseada em Resultados" passa pela definição de aptidões que os alunos devem adquirir e pelas quais são avaliados, por oposição à educação tradicional mais centrada na memorização e aquisição de conhecimento. Os alunos são, assim, avaliados de acordo com a capacidade de executar determinadas tarefas mensuráveis - como, por exemplo, a capacidade de correr 50 metros em menos de um minuto - e não pelos inputs recebidos - como o número de aulas assistidas, ou os livros lidos.

As "crenças" de que se fala (fixed beliefs") são aquelas que definem o indivíduo e estabelecem a sua identidade; constituem a imagem que temos de nós mesmos, dos outros e das circunstâncias da vida e que de tão repetidas ao longo do tempo se tornaram arraigadas e difíceis de alterar.

Os maçons são cidadãos, e a maçonaria pretende promover o melhoramento da sociedade através do aperfeiçoamento de cada um. Lá porque numa loja maçónica não se discute política, não quer dizer - pelo contrário! - que os maçons - individualmente! - não tomem este ou aquele partido quanto a esta ou àquela questão. Quanto a esta questão concreta, fico horrorizado só de imaginar um maçon a subscrevê-la, tão contrária que é à própria essência da maçonaria. Mas se tal maçon existe, respeitaria a sua posição sem a discutir; pois se é certo que quem não aprende com os erros da História está condenado a repeti-los, não menos certo é que o direito ao erro está na essência da liberdade humana.

03 novembro 2011

A pequena idade do gelo



A segunda metade do primeiro milénio da nossa era foi uma época de crescente prosperidade, que culminou no período entre os século XI e XIII. No seu apogeu, a vimos surgir na Europa as primeiras universidades, as primeiras cruzadas e a Magna Carta. Contudo, logo no século XIV a peste negra devassa a Europa, e durante cerca de quatro séculos viveu-se um período mais difícil. Sabemos o que se passou depois: entre 1775 e 1848 surge a "Idade das Revoluções", que alteraram o paradigma de governação, dando as monarquias absolutistas lugar às repúblicas e estados constitucionais. Era o tempo do Iluminismo, o século das Luzes, que iniciou um ciclo de permanentes e aceleradas transformações que não se fechou ainda.

Na figura acima podemos ver um gráfico estimado das temperaturas médias no hemisfério Norte no último milénio. É clara a diminuição de temperatura que se verificou especialmente entre 1500 e 1700. A figura não tem escala, mas estamos a falar de uma diferença da temperatura média, entre o máximo verificado por volta do ano 1300 e o mínimo por volta do ano 1600, de cerca de um grau Celsius. Muito pouco, dir-se-á.  Todavia, esse pouco foi o suficiente para a Gronelândia, povoada pelos Viquingues por volta do século XIV, viesse a ser praticamente abandonada trezentos anos depois, e o rio Tamisa gelasse no inverno durante o período mais frio, o que não sucedia antes nem sucede agora. Também causou, como se poderia esperar, visíveis e apreciáveis revezes nas colheitas agrícolas.

Não se sabe quais as causas desta diminuição de temperatura, mas supõe-se que possa ter sido causada por  uma diminuição da atividade solar que igualmente se constatou nesse período. Também não se pode demonstrar que a diminuição da temperatura esteve na origem de um aumento da fome e da pobreza, e por isso de maior instabilidade social, que veio a culminar nas revoluções dos séculos XVIII e XIX. Mas é credível que assim tenha sucedido.

Temos uma enorme tendência para ver o mundo pelos olhos da nossa própria espécie. Todavia, se virmos o que sucede a uma cultura de bactérias quando é objeto de aumentos ou diminuições de temperatura, constataremos que os efeitos são bastante semelhantes aos efeitos das mesmas alterações sobre os humanos. Nesta placa de Petri que habitamos, basta uma pequena flutuação de temperatura para causar aumentos ou diminuições da população, períodos de carestia ou prosperidade, ou alternância entre estabilidade política e revoluções.

Paulo M.

http://en.wikipedia.org/wiki/Little_Ice_Age
http://en.wikipedia.org/wiki/Causes_of_the_French_Revolution
http://stepwilh.blogspot.com/2010/07/hockey-stick-graph.html

05 outubro 2011

Contra factos...



Todos conhecemos a controvérsia em torno da educação sexual, mesmo quando uns e outros acordam que esta deva ser instrumento de prevenção de doenças e gravidezes indesejadas. De um lado, uns advogam a promoção da abstinência, de padrões de conduta e de dicotomias entre bem e mal, no contexto de que o ato sexual é público e sagrado e como tal sujeito às leis da moral e da religião. Do outro lado, outros promovem o recurso a meios anticoncecionais, a permissividade perante uma gama alargada de identidades e práticas sexuais, e reduzem o ato sexual a um ato biológico privado e regido pelas leis naturais. Pelo meio, uma multiplicidade de posições mais ou menos moderadas e contemporizadoras.

Em poucos países este debate é tão verrinoso e extremado como nos Estados Unidos da América. Recentemente, em face do contexto económico desfavorável e dos inevitáveis cortes orçamentais em tudo quanto se afigure supérfluo, terá recrudescido uma forma muito pragmática de elaborar políticas, nomeadamente no que concerne a saúde pública mas não só: aquilo a que se chama "prática baseada na evidência" (evidence-based practice).

Em sentido lato, pode dizer-se que se trata de uma metodologia que parte da análise estatística dos efeitos de um certo tipo de ato (seja este um tratamento médico, uma prática pedagógica, ou mesmo determinada punição prevista na lei) sobre uma população, no sentido de se aferir e comparar a eficácia relativa de diferentes abordagens ao mesmo problema. Ou dito de outra forma: experimenta-se, mede-se os resultados, e decide-se com base nestes.

Recentemente, primeiro as seguradoras e depois os próprios sistemas de segurança social começaram a questionar a validade e eficácia de certos métodos, tratamentos ou "curas", no sentido de evitarem desperdícios em atos inúteis mas muitas vezes dispendiosos. Estas entidades passaram a exigir que se demonstrasse um nexo de causalidade entre o tratamento e os benefícios que do mesmo supostamente adviriam. Uma das aplicações mais conhecidas deste método é a dos ensaios clínicos que se fazem na indústria farmacêutica quando se procura determinar se certos medicamentos são úteis no tratamento de determinadas doenças.

De facto, certas áreas do conhecimento foram, num ou noutro momento da História, pouco coesas e meramente acumulativas de saberes distintos e pessoais de sucessivas gerações, sucedendo que muitas das práticas carecessem de evidências científicas que as justificassem. Por outro lado, esta "fluidez" de conhecimento levou ao aparecimento de oportunistas e burlões (como os famosos "vendedores da banha da cobra") que alegavam conhecimentos que, aos olhos dos leigos, lhes permitiam confundir-se com os profissionais formalmente treinados. Não admira, assim, que estes últimos tivessem sido dos primeiros a defender uma metodologia que separasse os atos úteis (os seus) dos inúteis (dos outros) com base nos seus resultados, alegando mesmo o interesse da saúde pública...

Esta metodologia tem, com mais ou menos resistência, sido adotada por outros campos do saber, por outras áreas de atividade, a ponto de ser hoje em dia indiscutíveis, em muitos meios, as suas virtudes. O ensino formal nas escolas ensina esta forma de pensar, o que a vem divulgando e democratizando cada vez mais - chamam-lhe "método científico". Mas, se formos ver o que foi o Iluminismo, e como este apresentou a Razão a uma humanidade obscurecida pela tradição, pela inércia e pela superstição, rapidamente encontramos nele as origens deste método de pensamento. Passa-se, graças a ele, de um mundo em que as leis são inquestionáveis, aplicadas de cima para baixo e legitimadas por um qualquer direito divino, para uma sociedade que produz as sua próprias leis, que tudo questiona e em que tudo é passível de escrutínio e validação.

Voltando ao início, nos Estados Unidos levou a que fossem cortados fundos aos programas de educação sexual que não apresentassem os resultados esperados. Não se discutiu os méritos das ideias: discutiu-se, pragmaticamente, financiar o que quer que seja que funcione.

A Maçonaria Regular, orgulhosa filha do Iluminismo, não se mete em controvérsias de cariz político. Não deixa, todavia, de influenciar, através da educação de cada um, a forma como se faz política, mas com uma diferença muito grande face ao poder político: estes últimos têm as próximas eleições como horizonte temporal; os maçons ficam contentes por saber que ajudaram, ao longo dos últimos 300 anos, a tornar o mundo um pouco mais justo e perfeito.

Paulo M.

27 junho 2011

Perceção, verdade e tolerância - V (conclusão)



A Maçonaria não pretende, ao contrário da Religião, tratar da relação entre o Homem e o seu Criador; apenas trata da relação entre o Homem e o Homem. Nascida em tempos conturbados de guerras fratricidas de origem  religiosa, a Maçonaria tinha - e tem ainda hoje - o propósito de estabelecer entre homens bons uma ligação mais forte do que as forças que os afastam em virtude das diferentes fações - religiosas, partidárias, ideológicas ou outras - a que os mesmos pertençam.

A Maçonaria procura, nesse sentido, estabelecer um meio-termo, um máximo denominador comum, um common ground com que todos se identifiquem, que a todos inclua e a ninguém deixe de fora. Quando James Anderson foi incumbido de compilar e redigir as regras e regulamentos da Maçonaria, escreveu:

"Um maçom é obrigado, pela sua condição, a obedecer à lei moral, e se compreender corretamente a Arte, nunca será um estúpido ateu, nem um libertino irreligioso. Mas, embora em tempos antigos os maçons devessem, em cada país, ser da religião desse país ou nação, qualquer que fosse, entende-se agora ser mais acertado somente obrigá-los à religião com a qual todos os homens concordam, deixando suas opiniões particulares para si mesmos; isto é, ser homens bons e verdadeiros, ou homens de honra e honestidade, quaisquer que sejam as denominações que os distingam."

Esta noção de que os maçons poderiam ser de qualquer fé ou religião, e apenas deveriam aderir à "religião com a qual todos os homens concordam", é uma ideia claramente oriunda do conceito de "Religião Natural", conceito muito em voga no Iluminismo, e a propósito do qual podemos ler na Wikipédia:

"As ideias, para serem válidas, devem ser baseadas na razão inata do Homem. No caso da religião, isto significa que deve haver uma religião natural, isto é, deve haver um conjunto de ideias religiosas que emanam da natureza humana - ideias que são inatas da mesma forma que as ideias lógicas, matemáticas e científicas. Eles teriam, portanto, validade geral no sentido de que todas as pessoas em todos os momentos, independentemente de sua situação cultural, as devessem possuir."

A ideia de uma "religião natural" não é, propriamente, uma ideia da Maçonaria, mas uma ideia sua contemporânea que a influenciou, no sentido de que especula ser possível encontrar-se, de entre todas as religiões, um certo conjunto de regras comuns; estas seriam aquelas que a Maçonaria tomaria para os seus seguidores, de modo a lograr o seu propósito: ser um elo de união entre os homens. E nesse sentido, em vez de se cingir aos caminhos da Moral, abraçou os da Razão, muito menos controversos e muito mais passíveis de estabelecer princípios incontroversos.

Contudo, ao procurar encontrar um conjunto de regras morais retiradas do seu contexto religioso, a Maçonaria foi tomada, pela maioria das religiões organizadas, por um concorrente, por um antagonista, e como tal condenada, e rotulada como relativista ou sincretista ou mero "travesti" religioso. O que parece escapar aos seus detratores é que a Maçonaria não procura de modo algum substituir ou minimizar a religião de cada um, antes incentivando cada um a que viva a sua fé da melhor forma possível.

Os fins últimos da Maçonaria são a harmonia, a fraternidade e a paz entre os Homens, pelo que dá preponderância a estes princípios, mesmo que sob pena de relegar as convicções religiosas de cada um à esfera privada. Na verdade, a Maçonaria não quer saber em que é que cada um acredita, desde que acredite em alguma coisa, e guarde essa convicção afastada de controvérsias, contendas e cizânias. E esta postura - condenada por muitos que pretendem propagar verdades absolutas mesmo que à espadeirada  - é uma das  que caraterizam, distinguem e orgulham os maçons.

Paulo M.

15 junho 2011

Perceção, verdade e tolerância - IV



"Tem coragem para fazer uso da tua própria razão! - esse é o lema do Iluminismo." disse Kant. Deste lema pode também apropriar-se a maçonaria. Esta esteve na linha avançada do Iluminismo, promovendo as ciências, as artes e a razão ao serviço do Homem. Esta tríade tem de facto vindo, paulatinamente, a dar-nos cada vez mais e melhores meios para entendermos o mundo de forma objetiva, permitindo confirmar - e refutar - muitas das convicções que antes tínhamos sem que as pudéssemos provar.

Se - como afirmam alguns - a ciência tem vindo a "tentar tirar o lugar a Deus", explicando e atribuindo a fenómenos naturais o que dantes era do foro do maravilhoso e do sagrado, não era senão de esperar que o entusiasmo de uns se tornasse no anátema de outros, tornando o choque inevitável. Esse choque foi interiorizado de formas diversas em diferentes culturas. Em França deu origem a um anticlericalismo feroz, cujos princípios estiveram na génese da Maçonaria Liberal. Na Alemanha e na Inglaterra, por seu lado, esse choque foi mais suave, até porque os seus maiores pensadores e filósofos da época procuravam a harmonia entre a razão e a espiritualidade, e cedo entenderam que há convicções que a ciência não pode provar ou refutar.

De facto, as verdades da fé não são, por definição, demonstráveis. As "provas da existência de Deus" passaram já de moda por isso mesmo. Se algo é demonstrável, então não é precisa a fé para que nos convençamos da sua veracidade: basta a constatação. Por outro lado, se a fé é necessária, então de nada serve tentar-se recorrer à razão, pois esta não está no seu meio. Ora, todas as religiões apresentam, em maior ou menor grau, em maior ou menor quantidade, postulados, axiomas ou dogmas que não podem ser demonstrados nem são passíveis de discussão; se não apresentassem dogmas e apenas se confinassem ao que a razão pode demonstrar não seriam religiões, mas meras disciplinas científicas.

Mais: a maioria das religiões reclama para si a verdade. Não uma verdade, mas a verdade. A maioria afirma mesmo, clara e inequivocamente, deter o "monopólio" da Verdade, da Salvação e do Bem. Não contentes com isso, muitas demonizam, excluem e proscrevem os seguidores de qualquer outra religião. Nos melhores dos casos, aceitam que uma pessoa boa possa, sem culpa própria, estar equivocada, não devendo por isso ser excluída da recompensa que essa religião anuncia estar reservada aos "eleitos", seja esta o Paraíso, o Nirvana, ou qualquer outra designação que se lhe dê.

Ora, se todas as religiões acreditassem nas mesmas coisas, ou se tudo aquilo que afirmassem fosse compatibilizável, poderíamos, no limite, tomar todas essas afirmações por verdadeiras. Contudo, não é o que se verifica. De facto, cada fé, cada religião, cada crença, se distingue das demais precisamente pela singularidade dos seus dogmas. Assim, como seria facilmente demonstrável, é racionalmente impossível que todas estejam certas.

Acolhendo no seu seio crentes de diversas facções e correntes, a maçonaria não poderia privilegiar uma religião em detrimento de outra, sob pena de alienar uns para agradar a outros. Assim, a fé de cada um é, dentro da maçonaria, um assunto pessoal que não se discute em loja. Cada um é livre de depositar a sua fé onde queira, sem que essa mesma fé seja questionada, escrutinada ou contrariada; todas são aceites.

Não quer dizer isto que um maçon, pelo facto de o ser, tenha que aceitar como verdadeiros todos os dogmas de todas as fés e religiões professadas por todos os maçons do mundo; pelo contrário, espera-se de cada maçon que acredite e preste culto de acordo com os preceitos da sua própria fé. Espera-se, por outro lado, que aceite que cada pessoa possa ter um sistema de crenças diferente, e que este possa ser tomado por verdadeiro por cada um que nele acredite, e como tal deva ser respeitado.

A posição da maçonaria é, assim, clara: promove e discute as verdades que a razão pode demonstrar, e respeita sem discutir aquelas que são do foro da fé. Contudo, por ser promotora de uma atitude tida, por um lado, por disruptiva e iconoclasta enquanto promotora da ciência e da razão, e por outro lado por relativista e sincrética em face da multiplicidade de verdades incompatíveis entre si que as diversas religiões professam, a maçonaria tem, desde a sua origem, sido afastada, repudiada e condenada pela maioria dessas mesmas religiões.

Paulo M.

01 maio 2011

O café: motor do Iluminismo



"Forte é o rei que tudo destrói, mais forte a mulher que tudo obtém, e ainda mais forte o vinho que afoga a razão."
Humberto Eco, em "A Ilha do Dia Anterior"


Desde há séculos que o Homem consome bebidas alcoólicas. A análise química de recipientes de cerâmica encontrados em povoações do Neolítico na China indicam que o consumo de bebidas fermentadas (neste caso, uma bebida à base de arroz, mel e fruta) já é velho de pelo menos 9000 anos. Há receitas de bebidas alcoólicas em placas de barro, e a arte Mesopotâmica mostra-nos indivíduos a beber de grandes potes por palhinhas.

Textos sumérios e egípcios de há quatro mil anos descrevem as propriedades medicinais do álcool, e os textos Hindus ayurvédicos descrevem quer os benefícios das bebidas alcoólicas quer as consequências do seu abuso. Na Grécia Clássica consumia-se vinho ao pequeno-almoço, e este fazia parte da dieta da maioria dos cidadãos de Roma no século I antes da nossa era.

Na Europa medieval toda a família bebia cerveja - os homens uma cerveja mais forte, as crianças uma mais fraca, e as mulheres uma de graduação intermédia. Também se consumia cidra e vinho de bagaço, sendo o vinho de uva reservado às classes mais altas. Em suma: a humanidade alcoolizava-se havia milénios, e a Europa da Idade Média acordava ébria e deitava-se embriagada. O torpor do álcool, transversal a toda a sociedade, obnubilava mesmo as mentes mais brilhantes.

Mas do Islão veio o grande redentor, quando os Turcos, após o falhado cerco a Viena de 1529, deixaram para trás alguns sacos de café. Rapidamente as sua propriedades foram conhecidas: "seca os humores frios, dispersa os gases, fortalece o fígado, é o remédio soberano para hidropsia e sarna, restaura o coração, alivia dor de barriga. O seu vapor é, de facto, recomendado para fluxões dos olhos, zumbido nos ouvidos, catarro, reumatismo, ou nariz pesado."

Foi assim que o café substituiu, em certa medida, a cerveja e o vinho, nos hábitos alimentares europeus. O dia passou a começar com um estimulante de baixas calorias, em vez de um entorpecedor calórico, o que produziu um novo paradigma de Homem: os corpos rotundos e maciços que podemos ver nas pinturas do século XVII - consequência do consumo excessivo de bebidas fermentadas - tornaram-se mais esbeltos e ágeis; as pessoas tornaram-se sóbrias e sérias; e o pensamento, a inteligência e razão - por fim libertos do seu etílico véu  - passaram a ser valorizados.


O consumo do café rapidamente se tornou num hábito cada vez mais vulgarizado e, com o vício da cafeína, começou a procura frenética de fontes desta maravilhosa droga, o que originou o aparecimento de comércio externo em larga escala, com todas as inerentes consequências para o desenvolvimento social.


O café, por outro lado, mantinha as pessoas suficientemente sóbrias para darem asas à criatividade e inventarem toda uma gama de pequenos melhoramentos do seu bem-estar diário, concedendo ao cidadão comum uma comodidade como nunca antes tinha experimentado.

Pode, por tudo isto, dizer-se que a paixão da civilização ocidental pelo café foi um dos verdadeiros motores do Iluminismo - e bem sabemos que só este criou as condições para o surgimento da Maçonaria Especulativa. Foi graças ao café que, finalmente de olhos bem abertos, do meio-dia à meia-noite, o Homem pôde iniciar o trabalho para o seu melhoramento, em busca de mais Luz e Sabedoria.


Paulo M.


Fontes: 
http://www.stephenhicks.org/2010/01/18/coffee-and-the-enlightenment/
http://solohq.solopassion.com/Articles/Cresswell/Making_the_Genius_Quicker_A_Complete_Hiftory_of_Man_According_to_Hif_Divers_Delightf_%28Part_Two%29.shtml
http://en.wikipedia.org/wiki/Alcoholic_beverage