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18 março 2009

Do valor da parábola

Quem acompanha este blogue sabe que, com exceção das "alegorias" de (algumas) sextas-feiras, privilegio a publicação de textos originais meus. A recente publicação de "Tive um sonho" e de "O último grau " é a exceção que conforma a regra. Estes dois textos - que, afinal, são apenas um, apenas dividido, por razões de extensão, em duas publicações no ótimo blogue The Beehive, do excelente sítio Freemason Information - impressionaram-me quando os li e decidi pedir autorização ao seu autor, Irmão Frederic L. Milliken, para os traduzir e publicar aqui no A Partir Pedra, autorização essa aliás pronta e simpaticamente concedida e que eu agradeço.

Duas razões me motivaram ao labor de traduzir e publicar trabalho alheio. A primeira, resultante de uma identificação com a mensagem constante da "palestra" do "último grau", explico-a neste texto. A segunda ficará para um outro.

Escrevi já várias vezes, a última das quais há não muito tempo (O segredo maçónico esotérico) que o único verdadeiro segredo maçónico, o que importa, o que releva, existe, não porque os maçons o queiram preservar, mas porque não o conseguem revelar. Porque é insuscetível de plena transmissão. Referi, também no mesmo texto, que, em bom rigor, duvido mesmo que haja apenas um verdadeiro segredo maçónico, um único segredo esotérico. Nesta altura do meu entendimento, propendo a considerar que cada maçon atinge a sua própria Luz - a deste com mais brilho, a daquele mais baça, a daqueloutro, qual bruxuleante chama de longínqua vela, mal se vendo -, cada maçon encontra e resgata a sua própria e individual Palavra Perdida - a de um bela e cristalina, a de outro sonora e estentória, a de um terceiro suave e quase inaudível murmúrio. Prossegui concluindo que nessa viagem, nesse trabalho, nessa busca, cada um procura coisa diversa. Eu só posso definir o que neste momento busco. Já me reconciliei - há muito! - com a finitude da vida neste plano de existência, já abandonei, por estulta e estéril, a busca do imenso porquê, a mim nunca me interessou particularmente interrogar-me sobre o cósmico como. Por agora, desde há muito e não sei até quando, concentro-me na busca do sentido da Vida e da Criação. Tenho uma ideia rude e imprecisa desse sentido. Busco o melhor ângulo para obter mais Luz. Espero que consiga obter o Brilho suficiente para, através do sentido da Criação, entrever o Criador... E tudo isto eu - neste momento - busco, em fantástica viagem, sem outro veículo que não eu próprio, não consumindo outro combustível senão tudo aquilo de que me interiormente despojo, sem outro destino e caminho senão o fundo de mim mesmo. Porque é o conhecimento de mim mesmo, em todas as complexas vertentes que condicionam o meu Eu, que me habilitará a conhecer o Outro, o Mundo e quem o criou e porquê e para quê e como. Eu sou a pergunta, a pergunta sem resposta, a pergunta buscando a resposta e, simultaneamente, a resposta contida na própria pergunta, que me levará a nova pergunta, que gerará nova resposta, em contínuo alargar de horizontes, que espero me permita entrever o que está para além do horizonte e contém todos os horizontes...

Percebe-se então facilmente porque me impressionou o trabalho do Irmão Milliken. Nessa busca interior que vou fazendo, a algumas conclusões próprias ia chegando e guardando no meu íntimo e aí as entesourando, por convencimento da minha incapacidade de adequadamente as transmitir. O texto da "palestra do último grau" assemelha-se muito ao meu pensamento e exprime-o muito melhor do que eu seria capaz:

"Diz-se que a humanidade foi criada à imagem de Deus. Mas eu digo-te que cada homem é uma parte de Deus e possui uma pequena partícula do Altíssimo dentro dele. Que a partícula cresça e se torne uma parte cada vez maior de um ser humano, depende das escolhas que cada um faz na sua viagem pela vida. O objectivo dessa viagem é alimentar e nutrir a sua alma numa missão terrena, para a qual Deus lhe deu as ferramentas para a realizar. Ao fazê-lo, possibilita-se que o Todo Poderoso Criador, o Mestre do Céu e da Terra se experimente a si próprio. Viver a "vida piedosa" é a capacidade de subir acima do que procura dividir e criar o caos."

"É agora tempo, meu irmão, de tu te empenhares na crença de que todos somos UM. Não há OUTROS. Quando alguém se afasta ou repudia quem vê como outro, apenas se separa de si mesmo e de onde veio e para quem um dia vai voltar. Quando alguém fere ou prejudica quem vê como outro, só fere ou prejudica a si próprio."

"A Pirâmide e Globos são o símbolo deste grau, meu irmão. Ensina que toda a vida, os seus altos e baixos, as suas alegrias e tristezas, os seus amores e medos, é uma experiência santa e sagrada. Possibilita que visualizes o conceito de que a vida é sem fim e continua a mover-se, começando onde terminou e terminando onde começou. Vai e volta, em redor e sobre e sempre "na unidade do Espírito Santo." SOMOS TODOS UM. Não há nenhuma parte de nós que esteja separada ou fora da Pirâmide e Globos. Somos todos pedaços do mesmo bolo. Deus está em nós e nós estamos em Deus. SOMOS TODOS UM! Agora, vai em paz e harmonia e alegra-te com este conhecimento."

Realmente, há coisas que só as parábolas permitem transmitir!

Rui Bandeira

17 março 2009

O último grau

Quando entrei na sala da Loja, privado de visão, ouvi a mais bela música que alguma vez ouvi. Não era uma música com que eu estivesse familiarizado, nem com o que a produzia, nenhum instrumento que eu pudesse identificar. Mas era, oh, tão pacífica, trespassava a minha alma e criava uma noção de harmonia e de acordo total.

Eu era energia arrastada ou conduzida em pensamento em torno da Loja por esta música, seguindo o que parecia um rumo ao acaso, mas, após oito repetições, fui capaz de discernir que havia quatro repetições de duas manobras, uma sendo um círculo e outra um triângulo . A repetição de manobras foi necessária, como mais tarde me foi explicado, para criar a imagem de um símbolo tridimensional para este grau. E este símbolo era um dos existentes na Câmara do Meio onde recebi este grau. O Esquadro e o Compasso continuavam a adornar o exterior do edifício da Loja, mas dentro deste edifício existia uma Câmara do Meio, onde Pirâmide e Globos eram os símbolos utilizados.

Pude mais tarde ver com o que se parecia este símbolo. Era uma pirâmide na qual estavam três Globos alinhados verticalmente, desde a ponta até a base. No Globo superior, havia uma pequena pirâmide apontando para baixo. O Globo do fundo tinha uma pirâmide apontando para cima e o Globo do meio tinha uma estrela de seis pontas tridimensional. O significado deste símbolo era que o espírito do Criador, Redentor e Protetor estava infundido no círculo da vida, o infindável ciclo de nascimento, morte, renascimento, a morte de novo, e novamente e de novo, até à eternidade. Também transportava o sentido da unidade, já que estamos todos juntos como um, unidos como seres que possuem todos uma partícula do Criador. O símbolo não estava preso a nada, antes surgia perante os olhos de quem estivesse em qualquer ponto da Câmara do Meio, sob a forma de um holograma.

Não houve nem apresentação de qualquer ferramenta, nem um juramento neste grau. Foi-me explicado que, na minha condição presente de ausente de tempo e de lugar, mas em todo o tempo e todo o lugar, as sanções, juramentos e promessas eram supérfluos.

Fui conduzido para o Sul, para o Oeste e, em seguida, para o Norte da Loja, onde, ainda com a minha energia diminuída e apenas capaz de ouvir, eu teria, no entanto, a visão necessária para ver um filme em holograma totalmente privado, visível apenas para mim. No Sul, recebi uma revisão de toda a minha vida. Foi-me mostrada num holograma retratando pessoas, lugares, eventos, acontecimentos e ocorrências, numa rápida e contínua sequência, terminando no momento da minha morte física.

No Ocidente, vi, como anteriormente num filme em holograma, todas as vezes que eu tinha inspirado outros e quando eu tinha sido gentil, compassivo, amoroso e humilde. Muitas vezes fiquei dominado pela emoção, pois o que me foi apresentado era tão vívido como o que eu sentira quando tinha ocorrido no passado e estava acontecendo novamente bem à minha frente. Existe um real significado para a palavra reviver.

Depois, no Norte revivi o lado negro de mim próprio, todas as vezes que eu tinha agido com um arrogante ego inchado, para afastar e ferir os outros, todas as minhas fraquezas, os meus pecados e as vezes que eu tinha desiludido os outros. Mais uma vez, foi invadido pelas lágrimas, ao pensar que eu tinha agido de tal forma. E é por isso que estes hologramas eram totalmente privados e só passíveis de serem vistos por mim, pois aqueles reunidos em torno de mim, não estavam ali para julgar, mas para apoiar. E eu sentia o calor do seu amor e carinho fraternais.

Tal como ocorrera nos meus graus terrenos, fui conduzido, sempre através do pensamento, para fora da Câmara do Meio, para a antecâmara, onde fui preparado para voltar a entrar, para a segunda parte do grau, a palestra.

O meu condutor, Hiram Abiff, restaurou-me a plena energia e, em seguida, falou-me. "Os teus graus terrenos ensinaram-te os méritos da tolerância e da ausência de preconceito", disse ele. "Mostraram-te a forma de desfrutar da paz, harmonia e convivência entre as pessoas de diferentes raças, religiões, culturas, orientações políticas e condições económicas. Agora vamos levar-te ainda mais longe nesse conceito, na palestra do último Grau. "

Fui readmitido na Câmara do Meio e conduzido para junto do Oriente. A imagem da Pirâmide e Globos estava sempre presente diante de mim, num holograma. Acolhendo-me no Oriente, estava uma mulher negra, de meia idade, talvez. O seu sentimento de amor fraterno e afeto era como um calor brilhante, que penetrava o meu espírito. Procedeu à palestra, lentamente e com significado.

"A lição do último grau é que a separação que flagela muitos na sua peregrinação terrena, aquela divisão pela qual cada um vê os outros como diferentes, menos dignos ou sem valor, e que o separa dos demais, é realmente uma separação de Deus. Sim, na realidade, existem diferenças reais na Terra. Cada homem e cada mulher na Terra é realmente feito de forma um pouco diferente e respondem de maneiras diferentes. Existem diferentes raças, culturas, credos e conceitos do Criador. Mas atribuir um valor sinistro a essas diferenças é usá-las para dividir, em vez de reunir e, em seguida, para ostracizar, assim criando uma separação. Levada ao extremo, esta separação progride da desconfiança para a suspeita, conduzindo ao desprezo e ao ódio, e, em última análise, ao extermínio ou limpeza étnica. Esta desunião é fruto do livre arbítrio da humanidade e não reflecte as intenções do Criador. Esta divisão, desunião e separação constituem a verdadeira historia de Adão e Eva e da queda do Homem. Porque é na desunião e separação humanas que reside a separação do Todo-Poderoso."

"Reviste na tua Iniciação na Loja Celestial tudo que fizeste na tua vida humana na Terra. Reviveste as alturas em que permitiste que os teus medos dos outros e das suas diferenças te separaram deles. E reviveste as alturas em que não teres ligado a essas diferenças te pôs em harmonia com os demais."

"Diz-se que a humanidade foi criada à imagem de Deus. Mas eu digo-te que cada homem é uma parte de Deus e possui uma pequena partícula do Altíssimo dentro dele. Que a partícula cresça e se torne uma parte cada vez maior de um ser humano, depende das escolhas que cada um faz na sua viagem pela vida. O objectivo dessa viagem é alimentar e nutrir a sua alma numa missão terrena, para a qual Deus lhe deu as ferramentas para a realizar. Ao fazê-lo, possibilita-se que o Todo Poderoso Criador, o Mestre do Céu e da Terra, se experimente a si próprio. Viver a "vida piedosa" é a capacidade de subir acima do que procura dividir e criar o caos."

"É agora tempo, meu irmão, de tu te empenhares na crença de que todos somos UM. Não há OUTROS. Quando alguém se afasta ou repudia quem vê como outro, apenas se separa de si mesmo e de onde veio e para quem um dia vai voltar. Quando alguém fere ou prejudica quem vê como outro, só fere ou prejudica a si próprio."

"A Pirâmide e Globos são o símbolo deste grau, meu irmão. Ensina que toda a vida, os seus altos e baixos, as suas alegrias e tristezas, os seus amores e medos, é uma experiência santa e sagrada. Possibilita que visualizes o conceito de que a vida é sem fim e continua a mover-se, começando onde terminou e terminando onde começou. Vai e volta, em redor e sobre e sempre "na unidade do Espírito Santo." SOMOS TODOS UM. Não há nenhuma parte de nós que esteja separada ou fora da Pirâmide e Globos. Somos todos pedaços do mesmo bolo. Deus está em nós e nós estamos em Deus. SOMOS TODOS UM! Agora, vai em paz e harmonia e alegra-te com este conhecimento."

Texto da autoria do Irmão Frederic L. Miliken, originalmente publicado no excelente sítio maçónico Freemason Information, colocado em BEE HIVE, e, com a devida autorização do seu autor, traduzido e aqui publicado por

Rui Bandeira

16 março 2009

Tive um sonho

Tive um sonho há não muito tempo. E nesse sonho eu tinha passado para a Loja Celestial e encontrava-me mesmo junto ao Portão das Pérolas. Não era S. Pedro quem me aguardava, mas antes um Peregrino de bordão e lanterna, vestido com um manto ou túnica larga, com o capuz puxado por cima da cabeça. Estava tão dobrado que mal se viam os seus olhos ou o movimento dos seus lábios.

"Eis um Viajante", disse ele com uma voz rouca.

"Sim, sou e acho que fiz uma longa viagem", retorqui.

"Podes prová-lo?", perguntou o Peregrino.

"Tenho a certeza que posso provar, sem margem para dúvidas de ninguém, que sou um Mestre Maçon", respondi.

"Está bem. Segue-me."

"Para onde vamos?"

“Para a Loja Celestial.”

"A Loja Celestial no além, que bom".

"Não, só Loja Celestial; no além já nós estamos."

Para iniciarmos o caminho, tentei dar um passo largo, mas permaneci no mesmo sítio. O Peregrino disse: "Aqui, o caminho faz-se em pensamento. Basta que te visualizes a seguir-me."

Assim fazendo, movimentei-me sem qualquer esforço, como se estivesse sobre uma passadeira rolante no aeroporto.

Chegámos ao nosso destino num abrir e fechar de olhos. Diante de nós, estavam o que parecia serem nuvens vermelhas, azuis e púrpura, nas quais brilhavam, num azul marinho iridiscente, quais salpicos brilhantes, o Esquadro e o Compasso. "É este o aspeto das luzes de néon no Paraíso?", pensei.

"É lindo", disse eu, "mas onde está a letra G?"

"Aqui não usamos a letra Gi", respondeu o Peregrino. "O que a letra G simboliza está presente no Oriente. Não é preciso o símbolo do Criador quando o Criador está presente. O Eu Sou Quem Sou é Quem Ele É."

"Ena! Bill Clinton ganharia o dia com esta frase", pensei.

Quando nos aproximávamos, uma voz estentória inquiriu, "Quem vem lá?"

"Um Viajante que atravessou o Portão das Pérolas," respondeu o Peregrino.

"Ele tem passe?" Perguntou a voz forte.

"Não tem. Respondo eu por ele."

"Ele aguardará até que o Todo-Poderoso seja informado da sua presença e a Sua resposta seja recebida."

Dentro de pouco tempo, uma mulher com um vestido cor de lavanda onde brilhavam lantejoulas brancas em forma de estrelas, surgiu de entre a massa de nuvens e disse, "Entra pela porta externa para a antecâmara".

Lancei um olhar inquiridor ao Peregrino.

Lendo os meus pensamentos, ele rapidamente respondeu, "Aqui nós aplicamos integralmente a lição do Nível."

As nuvens dissiparam-se e eu interroguei-me se seria Moisés quem estava do outro lado da porta. Enquanto atrás de nós as nuvens se fechavam novamente, entrámos na antecâmara. Um homem aguardava-me e, antes que eu pudesse falar, disse-me, "Não, eu não sou Moisés, sou Hiram Abiff, e sou o Mestre de Cerimónias que te vai conduzir ao longo do teu próximo grau."

"Tenho outro grau para receber?", perguntei timidamente.

"Sim, meu irmão, mas primeiro temos de proceder a alguns preliminares, transmitir algumas informações, e então estarás prepararado."

O Irmão Abiff solicitou e recebeu todos os passos, sinais, palavras e toques dos graus terrenos através do pensamento. Seguidamente, disse, "devo perguntar-te se vais prosseguir de tua livre vontade e acordo."

“Tenho escolha? “, perguntei.

"Oh sim, podemos mandar-te de volta."

"Mandar-me de volta, PARA ONDE?"

"Para onde vieste. Mas haverá uma condição."

"E qual é ela?"

"Não vais voltar a ser quem eras lá. Vais começar tudo de novo, como outra pessoa."

"Então, quem vou eu ser?"

"Não está predeterminado, mas, como se diz na Terra, é uma lotaria. Podes voltar como uma nova pessoa na China, ou na Índia, ou na Alemanha, ou em Cuba, ou no Uganda ou em qualquer lugar."

"E o que é que eu vou fazer lá?"

"Aquilo que escolheres fazer. Bem vês, com o livre arbítrio tens sempre uma escolha. Más escolhas, no entanto, geralmente geram maus resultados."

"Acho que gostaria de continuar aqui."

"Muito bem, então assim será."

Fiz uma boa escolha?"

"Não me compete a mim dizê-lo. O lixo de um homem é o tesouro de outro, como diz o ditado. Como provavelmente terás notado, o teu corpo, bem como o nosso, é apenas uma ilusão. A melhor descrição do que és, neste momento, é pura energia. Como tal, em vez de seres desnudado ou vendado, será diminuída a tua energia, de modo que poderás ouvir, mas não ver ".

"É este então o 34 º grau?"

” "Não", respondeu o Irmão Abiff. "Este é o último grau. Agora, segue quem te guia e não temas nenhum perigo."


Texto da autoria do Irmão Frederic L. Milliken,
originalmente publicado no excelente sítio maçónico Freemason Information, colocado em BEE HIVE, e, com a devida autorização do seu autor, traduzido e aqui publicado por

Rui Bandeira

06 novembro 2008

Da Maçonaria teísta à Maçonaria deísta (II)

A Maçonaria começou por ser como toda a vivência religiosa era na Europa Medieval: teísta. Com o advento da Maçonaria Especulativa e o progressivo controlo das Lojas pelos maçons aceites, não operativos, sob as influências do Iluminismo e do Racionalismo, tal como na sociedade em geral também na Maçonaria aparece o deísmo. Só que em Maçonaria é muito importante a postura do Homem perante o Divino. É essencial. É constituinte do ideário maçónico. O deísmo não se limita a aparecer na Maçonaria. Irrompe. Jorra. Molda-a.

A Maçonaria original, operativa, era essencialmente cristã. Na Europa esse era o pensamento religioso largamente dominante. Para além deste, existia apenas o judaísmo, minoritário e simplesmente tolerado. As vezes, pouco. Nalguns locais (na Península Ibérica, por exemplo), nada.

Todos os textos primitivos maçónicos espelham a doutrina cristã. Mesmo as Constituições de Anderson o mostram. Na redação original dos Landmarks, os princípios enformadores da Maçonaria, não se faz referência a Volume da Lei Sagrada, menciona-se, clara e diretamente, a Holy Bible, a Bíblia Sagrada.

Com o advento do pensamento deísta e a sua inegável influência na Maçonaria, a conceção desta como tributária da religião cristã é substituída por uma muito mais abrangente conceção como tributária da "Religião com a qual todos os homens concordam" (expressão, aliás, já constante nas Constituições de Anderson). Este mais abrangente entendimento inelutavelmente que levou a uma certa descristianização da Maçonaria. Se esta era o ponto de confluência de todos os crentes de todas as religiões, a plataforma mínima de entendimento de todos, a "religião com a qual todos concordam", então não se podia impor aos não-cristãos as preces cristãs, por exemplo.

A Primeira Grande Loja de Londres, instituída em 1717, estabeleceu o princípio deísta na Maçonaria.

Outros maçons, respeitadores da sua tradição, vinda da Maçonaria Operativa, discordaram dessa evolução e constituíram a Grande Loja dos Ancients (Antigos), apelidando os da Grande Loja de Londres de serem, erradamente, no seu ponto de vista, Moderns (Modernos).

Foi da tensão entre estas duas conceções da Maçonaria, uma declaradamente teísta, na esteira operativa, e outra assumidamente deísta, foi dos debates entre uma e outra, que se forjou a Maçonaria Moderna.

A Grande Loja dos Antigos, decisivamente influenciada por Lawrence Dermott, autor da compilação que constituía o conjunto de textos essenciais dos Antigos, o Ahiman Rezon, incluía nos seus rituais uma oração para ser dita pelos cristãos, onde se pedia a Deus, designadamente:
Dote-os (os novos Maçons), com a competência da sua Divina Sabedoria para que eles possam, com os Segredos da Maçonaria ser capazes de entender os Mistérios da Santidade do Cristianismo.

Os Antigos verberavam os Modernos por estes descristianizarem o ritual; os Modernos defendiam a inclusividade da Maçonaria a todos os crentes, qualquer que fosse a sua religião pessoal, qualquer que fosse a sua conceção do Criador.

Com a união das duas Grandes Lojas rivais, em 1813, na Grande Loja Unida de Inglaterra, venceu a conceção deísta da Maçonaria.

Portanto, hoje pode com correção afirmar-se que a Maçonaria é deísta. Deísta, porque, ao abrigo do princípio da assunção do Divino através da Razão, admite no seu seio todos os crentes, não apenas os que originalmente nela eram admitidos (cristãos). Deísta, porque ponto de encontro, denominador comum de todos os crentes, respeitando a crença individual de cada um. Neste sentido, deísta, porque não apenas cristã.

O primeiro judeu iniciado foi-o numa Loja de Londres, em 1732: Edward Rose. Só mais tarde vieram a ser iniciados Muçulmanos e depois seguidores de outras religiões.

Maçonaria deísta é, pois, a Maçonaria hoje correntemente aplicada, que aceita no seu seio crentes de todas as religiões. Não quer isto dizer que renegue a sua origem cristã. Não o faz. Designadamente, mantém, em especial em alguns dos Altos Graus, graus especificamente cristãos. Mas, mesmo esses, um não cristão que a eles queira aceder e não se sinta desconfortável com o ideário cristão neles expresso, pode recebê-los.

Uma última nota: quando se diz que a Maçonaria é deísta, não se pretende dizer, nem se aceita, que se destina exclusivamente a deístas. Porque apenas se exige crença num Criador, sendo despicienda qual é E COMO A ELA SE CHEGOU, na Maçonaria convivem fácil e proveitosamente deístas e teístas. Seja qual for a sua religião.

Também em Maçonaria a evolução se fez do teísmo para o deísmo, numa perspetiva de inclusão, nunca de exclusão. Por isso, a Maçonaria Moderna é deísta, sem prejuízo de ter no seu seio - e muito confortavelmente - muitos teístas. Porque ser, individualmente, teísta, deísta, católico, luterano, anglicano, calvinista, evangélico, judeu, muçulmano, hindu, etc., etc., etc. e ainda etc., desde que crente, é absolutamente indiferente!

Rui Bandeira

04 novembro 2008

Da Maçonaria teísta à Maçonaria deísta (I)

Definido o que se deve entender por deísmo e por teísmo, estamos então em condições de indagar se existe uma Maçonaria teísta e uma Maçonaria deísta, quais os significados destas expressões e as diferenças entre elas.

Na época da Maçonaria Operativa, não havia discussões na Europa. Era-se cristão ou judeu e ponto final. A religião entrava na vida de cada indivíduo, não através de uma busca racional, mas como uma caraterística essencial. E a religião era o que os responsáveis da Igreja diziam que era. Analisar questões teológicas era encargo de muito poucos de entre os pouquíssimos que sabiam ler e escrever. A grande massa dos Povos tinha a religião do Estado onde se encontrava ou do senhor a quem servia. Não era, sequer, uma questão de escolha. Era de sobrevivência. Literalmente falando. Não se punha, pois, a questão de se ser deísta ou teísta. O conceito de deísmo nem sequer existia. Todos eram teístas, porque todos eram crentes. E quem não fosse, calava e fingia sê-lo, se queria continuar integrado na sociedade, vivo e de boa saúde...

Na Europa de então, opções religiosas havia duas: o cristianismo (primeiro apenas sob a batuta do papa de Roma; depois, com a Reforma, com dois grandes campos de escolha: o catolicismo ou, com diversas variantes, o que se convencionou chamar de protestantismo) e o judaísmo, aquele amplamente maioritário.

Todos os maçons eram, por definição, crentes. E cristãos. A Maçonaria Operativa, como instituição eminentemente profissional, não destoava do resto das instituições existentes. E todos eram teístas. Nem se concebia que pudesse ser diferente!

O tempo e a evolução social, porém, vieram a alterar esta situação.

A partir de finais do século XVI, inícios do século XVII, gradualmente as Lojas maçónicas operativas começaram a admitir elementos não integrantes da profissão de construtores em pedra. Foram senhores que mandavam construir igrejas e contratavam e pagavam, para esse efeito, os oficiais construtores, exercendo sobre estes manifesta influência económica, que demonstravam interesse em compartilhar dos segredos da Arte Real da construção, foram influentes cavalheiros ou nobres que assumiam o papel de protetores das corporações de maçons, enfim, a pouco e pouco foram sendo Aceites não construtores nas Lojas. E as Lojas passaram a ser locais de congregação de maçons livres e aceites. Maçons livres, os oficiais construtores que não dependiam de senhores, que eram livres de trabalhar e exercer o seu ofício onde quisessem e pudessem. Maçons aceites, aqueles que, não sendo oficiais construtores, tinham sido aceites no seio das Lojas.

Os maçons aceites eram mais letrados do que os maçons livres. Uma vez inteirados dos segredos da arte de construir - particularmente as técnicas ancestrais aplicando princípios geométricos -, tinham a vantagem competitiva da sua maior instrução, do seu mais profundo e alargado conhecimento, da sua maior influência social. A pouco e pouco, os maçons aceites foram-se sobrepondo aos maçons livres, quer em número, quer na condução dos destinos das Lojas, quer na escolha dos trabalhos de Loja, dos ensinamentos a transmitir em Loja. E, ao longo de pouco mais de um século, a Maçonaria transformou-se de Operativa em Especulativa, de simples agremiação de construtores em instituição de discussão livre, de especulação filosófica, de aperfeiçoamento moral e não já de mera aprendizagem profissional.

Paralelamente, vivem-se os tempos do Iluminismo, da emergência do racionalismo, da popularização das ideias de Kant, de Locke, de muitos outros. A Royal Society, sociedade dedicada ao avanço e divulgação das ciências é constituída e muitos dos seus fundadores e elementos impulsionadores são maçons aceites.

Por outro lado, viveram-se e ainda estão bem inseridos na memória coletiva britânica tempos de profundos e dolorosos conflitos políticos e religiosos. Stuarts contra Oranges e depois Hanovers, católicos contra anglicanos, jacobinos contra realistas. Viveram-se na Grã-Bretanha tempos revolucionários, lutas ferozes e sangrentas, prisões e decapitações, que em nada ficaram a dever à mais famosa das Revoluções, a Revolução Francesa. De tudo isto, acabou por resultar o fim do Estado Confessional, a aceitação, primeiro tímida, depois crescentemente consensual, da Liberdade de Religião. O Homem podia já pensar sobre os fundamentos da sua crença. E fê-lo.

A postura de cada um em face do Divino já não dependia exclusivamente da aceitação da Revelação das Escrituras e dos ensinamentos dos profetas e ministros religiosos. Kant indicou o caminho, os acontecimentos romperam o dique e muitos foram progressivamente percorrendo a vereda da descoberta do divino através da Razão. Já não havia apenas o caminho exclusivo da Fé para a Crença. Outro também se abriu, o caminho da Razão. Já não havia só teísmo, também apareceu e autonomizou-se o deísmo.

Através do seu desassossego intelectual, os maçons aceites não se limitaram a "colonizar" a Maçonaria Operativa e a transformá-la em Maçonaria Especulativa. Também na Maçonaria introduziram os princípios e o conceito do deísmo. Sobre uma pré-existente Maçonaria teísta construíram uma Maçonaria deísta. Num dos próximos textos, espero conseguir explicar como.

Rui Bandeira

30 outubro 2008

Deísmo, teísmo, ateísmo

Em peças anteriores, procurei chegar às definições de deísmo e teísmo, resultando, por contraste, também a de ateísmo. Hoje, pretendo relacionar estes conceitos.

Recordemos primeiro as definições que se utilizarão, para que se saiba sempre do que se está a falar:

Deísmo - posição filosófica que pretende enfrentar a questão da existência de Deus, através da razão, em lugar dos elementos comuns das religiões teístas tais como a "revelação divina", os dogmas e a tradição.

Teísmo - posição que resulta da crença na existência de Deus através da fé, designadamente por via da crença na Revelação em textos sagrados e ou nas profecias de portadores de mensagens tidas como oriundas da Divindade.

Ateísmo - posição que postula a inexistência de Deus.

Em termos de oposição polarizada, ateísmo opõe-se a teísmo e deísmo. Quem postula a inexistência de Deus insanavelmente se opõe a quem postula a sua existência, seja pela fé, seja pela razão.

Entre teísmo e deísmo não existe uma relação de género - espécie, segundo o qual aquele contém este e este é uma das modalidades daquele.

Partilhando um elemento fundamental - a crença em Deus - teísmo e deísmo não são opostos entre si. Também não se relacionam em termos de um conter o outro. São, no entanto, conceitos manifestamente diferentes. Como se relacionam então entre si? E algumas destas posições partilha algo com o ateísmo? O quê?

Na minha opinião, existe uma relação de derivação, de acrescento, de evolução. A questão coloca-se entre crença (fé) e razão. Entre acreditar para além de ou sem evidência e acreditar em resultado de evidência. Entre instinto e raciocínio.

Quer em termos de Humanidade, quer em termos individuais, o instinto é um elemento básico de sobrevivência. Há muitas coisas que fazemos porque estamos geneticamente programados para o fazer. Não se pensa nisso.

Desde os primórdios dos tempos que a Humanidade se confrontou com o mistério da existência do Universo e da Vida. E não o consegue decifrar. Se hoje a Ciência nos esclarece sobre a forma como a Vida evoluiu e evolui, se nos fornece uma teoria sobre como evoluiu o Universo, desde o que se costuma designar por Big Bang, ainda não nos consegue elucidar sobre a Força que causou esse Big Bang e, portanto, esclarecer-nos como de nada se fez tudo. Relativamente à origem do Universo, hoje a ciência pode dizer-nos, com razoável acerto, o que e o quando, mas não consegue (ainda?) elucidar-nos sobre o como e muito menos sequer arranhar o porquê nem o para quê...

No entanto, este mistério primordial sempre preocupou e estimulou a curiosidade da Humanidade. Que, não podendo saber, inventou e acreditou, mas também especulou, analisou e racionalmente concluiu. Uns que não existia Divindade, porque nenhuma prova da sua existência descortinam. Outros concluindo que o próprio problema é a prova da existência de algo superior, de uma Força Criadora, em suma, de Deus.

Deísmo e ateísmo partilham entre si a Razão. Só que, pela Razão, chegam a conclusões opostas...

Deísmo e teísmo partilham entre si a Crença. Só que o teísmo prescinde da Razão para obter a Crença e aquele obtém esta em resultado daquela.

Deístas e ateus utilizam o mesmo meio de se transportarem, mas chegam a destinos diferentes.

Deístas e teístas usam diferentes meios para viajarem, mas chegam ao mesmo destino.

O teísta crê e, porque crê, racionaliza essa crença.

O deísta usa a razão e chega à crença.

Historicamente, ouso dizê-lo, primeiro a Humanidade, as sociedades, os indivíduos foram teístas. Depois, alguns dos indivíduos, partes das sociedades e da Humanidade, evoluíram para o deísmo, não se conformando em acreditar, procurando e obtendo fundamento racional para a crença.

Embora em termos lógicos, para o deísta a razão preceda a fé, em termos cronológicos, a fé precedeu a razão.

Daí a minha afirmação de que o deísmo é uma evolução do teísmo. Daí que, na minha maneira de ver, não exista uma oposição entre teísmo e deísmo, mas uma evolução de teísmo para deísmo.

No teísmo existe fé. No deísmo existe fé e razão. Aquela criando a necessidade da intervenção desta. Esta fundamentando a existência daquela.

É com base nestas considerações que, finalmente, poderei chegar onde, desde o princípio queria chegar: procurar definir e relacionar entre si Maçonaria Deísta e Maçonaria Teísta, sem esquecer que existem também aqueles que se reclamam de integrarem uma Maçonaria que não será nem deísta, nem teísta, nem ateia, antes a reclamam de ser universal (ou liberal). Mas isso ficará para um próximo escrito.

Rui Bandeira

07 outubro 2008

Deísmo - II


Vimos já que, na versão francesa da Wikipedia, a definição de deísmo, em aparente contradição com o que se escreve na versão inglesa, postula (tradução livre minha):

O deísmo, do latim deus, é uma crença ou doutrina que afirma a existência de um Deus e a sua influência no Universo, quer quanto à sua criação, quer quanto ao seu funcionamento.

Mas, tal como fizémos em relação à versão inglesa da enciclopédia virtual, olhemos um pouo mais fundo. Verificamos que o artigo prossegue, do seguinte modo (sempre em tradução livre minha):

Para o pensamento deísta, certas caraterísticas de Deus podem ser compreendidas pelas faculdades intelectuais do homem.

Cá está, afinal, o fio condutor, o cerne efetivamente definidor do conceito! Afinal, as versões das três línguas da enciclopédia virtual acabam por confluir no conceito de deísmo... Pena que tenham dado destaque a elementos secundários diferentes, criando a confusão onde deveria haver esclarecimento...

Mas, no anterior texto sobre este tema, deixei escrito, talvez enigmaticamente, que é possível aceitar as menções aparentemente opostas das versões em inglês e em francês ambas como não incorretas. Sabido como é que já Sócrates, o filósofo da Antiguidade grega, deixou claro que Ser e não ser não pode ser, parece impossível tarefa, mesmo para um experimentado diplomata, conciliar as duas visões. E sê-lo-ia, se nos ativéssemos à literalidade da frase da versão francesa e não buscássemos o real significado dela.

Mais adiante, a versão em francês da Wikipedia sumariza o que chama os principais pontos da doutrina deísta, mencionando que o deísmo afirma que (ainda e sempre tradução livre minha - e os comentários, obviamente, também...):

  • Tudo o que não é obra do homem foi produzido por uma fonte original e inteligente (designada por Deus) - ou, acrescento eu, por Allah, Jehovah, mil outras designações ou... simplesmente por... Grande Arquiteto do Universo...
  • Não é concebível que nada esteja na origem de tudo.
  • A essência de Deus não é material (Deus é espírito).
  • Deus tem uma ação permanente no Universo - já vejo os anglófonos a torcerem-se todos nas suas cadeiras...
  • Deus manifesta-se pelas suas obras (a natureza, a vida, o cosmos, a consciência humana...) - anglófonos: parem de se torcer e atentem bem na concretização da tal ação permanente...
  • O sentimento da ação de Deus vem do estudo da criação (contemplando-se a pintura pode compreender-se o pintor) - é favor conferir o texto Sobre o Grande Arquiteto do Universo - 2: eu, deísta, ali me confessei como tal...
  • Escutar a sua consciência é o único meio para o homem se unir a Deus (as leis de Deus estão inscritas na consciência de cada homem e não nos Livros Sagrados).
  • O respeito das regras morais ditadas pela consciência é essencial para a salvação do homem
  • A prece a Deus é livre e espontânea
  • A relação do homem com Deus é direta (através do pensamento) e sem intermediários.

Lidos os princípios ditos doutrinais do deísmo, verificamos então que a falada "ação permanente de Deus no Universo" traduz-se nas "suas obras" e que estas têm a ver com a Criação e as Leis instituídas aquando dela - a natureza, a vida, o cosmos, a consciência humana (esta, necessariamente quando a evolução, decorrente das Leis Universais instituídas, determinou que surgisse a espécie humana - eis como um Crente Deísta pode perfeitamente conciliar o seu entendimento com a teoria evolucionista...). Ou seja, a "ação permanente" a que alude a versão em francês da Wikipedia corresponde à... ausência de ação reclamada pela versão em inglês! Mais uma vez, em ambas as versões diz-se a mesma coisa com palavras diferentes e, até, aparentemente inconciliáveis. Só entendendo o que se entende por "preto" se percebe que, afinal... se está a chamar preto ao que outros chamam branco...

Fica, assim, explicada a aparente contradição. E evidenciadas as carências da Wikipedia, que não deixa, no entanto, de ser um instrumento útil, mas apenas se não aceitarmos acriticamente o que em cada uma das suas versões está escrito...

Para terminar este texto, que já vai longo, insisto: no meu entendimento, a definição que se aproxima mais da verdadeira noção de deísmo é a da versão em português da Wikipedia: O deísmo pretende enfrentar a questão da existência de Deus, através da razão, em lugar dos elementos comuns das religiões teístas tais como a "revelação divina", os dogmas e a tradição.

Este o alcance do conceito. Se é com este significado, e só com ele, que o mesmo é utilizado, mesmo em Maçonaria, isso é outro problema. Mas, para com ele lidar, temos que previamente dedicar a nossa atenção ao conceito de teísmo, à relação entre deísmo e teísmo e ainda à relação de ambos estes conceitos com ateísmo. Ainda há muita pedra para partir até que se consiga obter uma pedra devidamente aparelhada para se colocar na edificação que o pensamento constrói sobre o significado do Mundo e da Vida...

Rui Bandeira

23 setembro 2008

Deísmo - I


Quando se fala em deísmo ou deísta, é necessário estar-se ciente de que o nosso interlocutor ou os nossos ouvintes ou leitores utilizam tais palavras com o mesmo significado que nós lhes damos. Com efeito, há grande probabilidade de duas ou mais pessoas utilizarem estas mesmas palavras com significados mais ou menos diferentes. Daqui à confusão e à incapacidade de entendimento da real posição que se está a procurar transmitir vai um passo muito curto... Facilmente demonstro esta minha afirmação.

Se recorrermos à edição em inglês da Wikipedia, verificamos que a noção de deísmo (deism) que ali se transmite é a seguinte (tradução livre minha):

Deísmo é a crença teísta que existe um Deus Supremo e que criou o Universo físico, mas que não intervém no seu normal funcionamento.

Porém, reorrendo em seguida à edição em francês da Wikipedia, verificamos que a noção ali dada de deísmo (déisme), surpreendentemente, é a oposta da versão inglesa (de novo tradução livre minha):

O deísmo, do latim deus, é uma crença ou doutrina que afirma a existência de um Deus e a sua influência no Universo, quer quanto à sua criação, quer quanto ao seu funcionamento.

É fácil ver como é possível estabelecer-se a confusão entre duas pessoas que usam a mesma noção, com significados opostos consoante verificam uma fonte em inglês ou em francês!

Mas não fiquemos por aqui e consultemos agora a Wikipedia em português. Eis a noção de deísmo que ali se encontra:

O deísmo pretende enfrentar a questão da existência de Deus, através da razão, em lugar dos elementos comuns das religiões teístas tais como a "revelação divina", os dogmas e a tradição.

Agora, aparentemente é que a confusão se tornou absoluta: em inglês, diz-se branco, em francês diz-se preto e em português... não se fala de cor, olha-se para a forma...

Aparentemente...

É fácil estabelecer-se a confusão ao utilizar estes conceitos, porque as suas definições nas três fontes são imperfeitas. Quando nos limitamos a consultar a fonte e não a efetivamente verificá-la e a analisar a sua pertinência, origem da afirmação e motivo dela, é fácil passar a utilizar noções imperfeitamente definidas e vê-las confrontadas com outras noções, também padecendo do mesmo defeito, que divergem da que obtivemos. Daí à confusão, à extrema dificuldade de entendimento, à desarmonia, o passinho é realmente muito pequeno, repito...

Então, o que é afinal o Deísmo? Qual das definições está correta, se é que alguma o está? Vou agora aumentar a confusão: na minha opinião, nenhuma delas está incorreta! Nem as aparentemente opostas! Cada uma delas, lida e analisada com cuidado, mostra uma faceta do conceito. O que estão é - todas!- deficientemente formuladas. Adianto, desde já, que, no meu entendimento, das três a que se aproxima mais do conceito correto é a definição em português, que privilegia o seu cerne: o que é importante no conceito de deísmo não é se o Criador intervém ou não no normal funcionamento do Universo. O que interessa nele, o seu cerne, o seu traço verdadeiramente distintivo, é o que afirma a definição portuguesa: o deísmo enfrenta a questão da existência de Deus através da Razão. Para além disto, está-se a extrair corolários que, se não devidamente justificados, induzem em erro.

Reanalizemos a versão inglesa da Wikipedia. Prossegue esclarecendo (de novo tradução livre minha): Relaciona-se com uma filosofia e um movimento religiosos que afirmam que é através da Razão que se apreende a existência e natureza de Deus (cá está!). Não toma posição em relação ao que Deus possa fazer fora do Universo. Isto em contraste com o fideísmo, que se encontra em muitas formas dos ensinamentos cristãos, islâmicos e judaicos, que defendem que a religião se baseia na Revelação nas Sagradas Escrituras ou nos testemunhos de outros, tanto quanto no raciocínio.
Os Deístas tipicamente rejeitam a maior parte (sublinhado meu) dos eventos sobrenaturais (profecias, milagres) e tendem a assentar em que Deus não intervém nos assuntos da vida humana nem nas leis naturais do Universo. O que as religiões organizadas veem como revelação divina e escrituras sagradas, a maior parte (outra vez sublinhado meu) dos deístas vê como interpretações humanas, mais do que como fontes autorizadas (da vontade de Deus). Os Deístas acreditam que a maior oferta que Deus deu à Humanidade não é a religião, mas a capacidade de raciocinar.

Como se vê, também na versão em inglês da Wikipedia, no conceito de deísmo o enfoque está afinal na apreensão da existência de Deus através da Razão; a questão da atividade ou não de Deus no Universo após a sua criação é um corolário extraído por muitos (não por todos) deístas - acrescento eu que devido a dois muito respeitáveis motivos: o primeiro será que, se através da Razão se apreende a noção do Criador, perfeito por natureza, que perfeitamente criou o Universo, então não precisa, e seria errado e contraproducente, voltar a intervir (mexer no que é perfeito só pode piorar, nunca melhorar, por definição; e o Ser Perfeito nunca cometeria esse erro); o segundo, pela contraposição à noção teísta da apreensão de Deus através da Fé, que faz ver como milagres (intervenções divinas) o que a Razão vê apenas como incapacidade sua em perceber, ou ausência de conhecimento suficiente para entender, a lei natural originariamente criada por Deus que motiva o evento supostamente milagroso: o milagre não será, assim, uma ação pontual divina, antes um sucesso decorrente das Leis Naturais fixadas aquando da Criação, só que (ainda) não explicável pela Razão, devido ao desconhecimento da globalidade dessas Leis Naturais. Em suma, Deus não intervém após a Criação, porque não há necessidade que intervenha, dado que esta é uma Obra Perfeita e tudo se resolve e é resolúvel através das Leis Naturais perfeitas e perfeitamente determinadas.

Insisto: o cerne da noção de deísmo está na apreensão do conceito de Deus através da Razão. O resto são corolários que alguns, talvez a maior parte, dos deístas extraem da afirmação inicial. Não se vincule a definição ao corolário - até porque, estando este porventura errado, tal não significará que a asserção que o originou também o esteja: pode o corolário simplesmente ter sido mal extraído!

Este texto já vai longo. No próximo, procurarei analisar a noção de deísmo transmitido pela versão francesa da Wikipedia e demonstrar como a aparentemente contraditória definição nela existente não é, afinal, tão contraditória como isso.

Mas, entretanto, retenhamos então que a noção mais correta, aquela que devemos utilizar, para evitar confusões, de Deísmo respeita, simplesmente à apreensão do conceito do divino pela Razão.

Rui Bandeira