Quando a forma engana a essência
"Quem acolhe um lobo julgando tratar-se de cão, descobrirá tarde demais que não é o latido que o define, mas os dentes."
Às vezes, abrimos a porta a alguém que não iniciou pelo nosso caminho iniciático., chega por transferência de outra, tudo regular, tudo conforme. Inquirido e Iniciado por outros irmão. Confiamos, porque queremos confiar, porque a confiança é parte do que somos e, talvez, porque baixamos a guarda quando um Irmão nos é apresentado por outro.
O processo foi cumprido, não houve irregularidade formal, mas falhámos no essencial. Devíamos ter esperado, devíamos ter observado, devíamos ter conhecido antes de acolher. Não o fizemos. Era prático, parecia seguro, mas principalmente porque confundimos silêncio com humildade, e dicção com profundidade.
Esse Irmão, ou ex irmão, antigo irmão, "reprofano", lia actas como ninguém, também pranchas o deveria fazer, mas nunca o ouvi. Tinha boa voz, tom grave, ar seguro, mas não construía um pensamento, não ligava ideias, nunca debateu para aprender, apenas para minar.
Maltratava Aprendizes, deixava Companheiros desmotivados, e guardava sempre os comentários mais venenosos para os bastidores. Era cortês com os Mestres, mas pelas costas afiava cada palavra.
Os mais novos sentiam-se expostos, por vezes até aterrorizados, vi-me obrigado a intervir para que situações não escalassem. E durante demasiado tempo, deixámos andar. Porque a Loja estava habituada a confiar, porque ninguém queria ser o primeiro a desconfiar. Até que as mensagens se acumularam, e a serpente revelou a pele.
Quando decidiu sair, fê-lo sem confronto. Tentou voltar, por outra porta, para outra Loja E aí, não hesitámos. A votação foi rápida, clara, unânime, definitiva, sem dúvidas. Não pelo que foi, mas pelo que sabíamos que voltaria a ser, não poderíamos permitir que outros Irmãos passassem pelo que nós passámos, não seríamos cúmplices de não fazer nada quando o deveríamos ter feito, já tínhamos tido uma oportunidade e desperdiçamo-la, desta vez em vez de esperar para ver se o fogo ateava, não demos fosforos para que
Procurou depois abrigo noutro espaço, fora da nossa Obediência, onde as regras são outras. Aí já nada podemos fazer, mas a nossa lição está aprendida.
Este texto não é sobre ele, é sobre nós. Sobre como até uma Loja experiente pode falhar., sobre como até entre colunas bem assentes pode rastejar o que nos divide. E sobre como há momentos em que proteger a cadeia é saber dizer não, meter uma bola preta e encerrar a questão.
Como é do conhecimento de todos, cada macieira dá fruto em abundância, mas de vez em quando também uma maçã podre. É da sua natureza. A nossa tarefa é saber colhê-las com discernimento. e quando a serpente aparece, não é com violência que se responde, mas com firmeza, vigilância e memória.
Que esta lição nos fique gravada. A forma engana, mas a essência, mais cedo ou mais tarde, revela-se.
João B. M∴M∴