25 setembro 2017

O ofício de Venerável Mestre


Em regra anualmente, as Lojas maçónicas elegem um dos Mestres do seu Quadro para assumir a função de Venerável Mestre. 

O Venerável Mestre tem a incumbência de dirigir administrativamente a Loja, com o auxílio, designadamente, do Secretário, do Tesoureiro, do Arquivista e do Orador (este com a expressa função de dirimir e/ou tentar fazer com que se ultrapassem eventuais litígios e de instruir qualquer procedimento disciplinar que porventura se mostre necessário). Deve também providenciar pela adequada instrução e formação dos Aprendizes e Companheiros da Loja, a daqueles sob a direção do Segundo Vigilante, a destes mediante a coordenação do Primeiro Vigilante. Deve ainda assegurar a adequada e correta execução do ritual praticado pela Loja, contando, para isso, com o especial contributo do Mestre de Cerimónias, do Experto e do Guarda Interno. Deve mais garantir que, quando se justifique, a solidariedade da Loja perante qualquer dos seus obreiros seja efetiva e atempadamente praticada e que o dever social da Loja de auxílio, na medida das suas possibilidades, a quem disso necessita, ou a instituições que o assegurem, não seja descurado, contando, para isso, com a indispensável colaboração do Hospitaleiro. Deve igualmente zelar pelo bom ambiente, paz, tranquilidade e concentração da Loja enquanto em sessão, em muito sendo, para tal, auxiliado nisso pelas oportunas intervenções da Coluna da Harmonia e pelas acertadas escolhas e seleções de trechos musicais efetuadas pelo Mestre da Harmonia, também designado por Organista. Deve, em acréscimo, assegurar as iniciativas especiais ou extraordinárias da Loja, podendo, para isso, contar com o auxílio de um Oficial encarregado de preparar cada uma dessas iniciativas, o Porta-Estandarte. Deve, finalmente, coordenar toda a atividade da Loja, e do seu Quadro de Oficiais, dirigir as sessões da Loja e representá-la na Grande Loja.

Para tudo isso, que não é pouco (e a dimensão do parágrafo anterior ilustra-o bem...), conta com o auxílio, o conselho e a experiência, recente, do Ex-Venerável e, principalmente, com a colaboração e o empenho de todos os obreiros da Loja. O sucesso de um Veneralato depende, claro, da capacidade de organização, gestão e coordenação do Venerável Mestre, mas essencial e inevitavelmente da resposta, da dedicação, do compromisso de cada um dos obreiros da Loja e do conjunto dela. Pode uma Loja suprir razoavelmente uma eventual menor qualidade de desempenho de um Venerável; mas o melhor, mais qualificado, mais empenhado, mais imaginativo, mais bem preparado, mais bem organizado Venerável do mundo nada conseguirá fazer de jeito sem o contributo, o respaldo, o empenhamento de toda a Loja.

A função de Venerável Mestre é complexa e exigente. Ele tem de, qual maestro, dirigir e coordenar toda uma equipa e motivar toda uma Oficina, para que seja possível ter um gratificante ano de trabalho. Mas há um aspeto dessa função em que o coletivo pouco releva: quando há que decidir! Decidir é responsabilidade exclusiva e solitária do Venerável Mestre. Para o bem e para o mal, é para isso também que os seus pares lhe confiaram o ofício. Na hora da decisão, não há democracia, não há maiorias. O Venerável Mestre tem o encargo de, sempre que for necessário decidir, tomar a melhor decisão possível, em face dos elementos de que dispõe. E a melhor decisão possível pode muito bem não ser a que teve a preferência expressa de uma conjuntural maioria. Por exemplo, não poucas vezes - arrisco dizê-lo - a melhor decisão possível é um misto da preferência da maioria com algo dos contributos de uma ou mais minorias...

Preparar, coordenar, decidir, motivar, fazer, propiciar que seja feito e tentar errar o menos possível: essas a tarefa e a função cometidas ao Venerável Mestre. É por isso que costumo dizer que ser Venerável Mestre equivale a ter duas alegrias: uma, de satisfação pela confiança em si depositada, quando é eleito para o ofício; a outra, de alívio, quando passa o malhete ao seu sucessor!

A responsabilidade do ofício de Venerável Mestre é evidentemente grande. Por isso mesmo, deve ser exercida por um período não muito longo (um ano é, para mim, o período ideal) e, sobretudo, deve a Loja estar organizada de forma a possibilitar que seja exercida, sucessivamente, pelo maior número possível de Mestres do seu Quadro. Porque a responsabilidade é grande, mas não é exclusiva de "iluminados". Porque o essencial princípio da Igualdade implica que todos os Mestres têm potencialmente capacidade para exercer tal ofício. Porque, sendo a responsabilidade grande, há muitas formas de a cumprir e cada Venerável Mestre inevitavelmente que a assegurará à sua maneira e deixando a sua pessoal marca. E, ao longo do tempo, a assunção da mesma grande responsabilidade com a diversidade resultante das diferentes caraterísticas pessoais dos sucessivos Veneráveis é uma rica lição para todos os obreiros da Loja.

O exercício do ofício de Venerável Mestre, pela sua complexidade e exigência, é fator de evolução, de crescimento, de melhoria, de quem o exerce. Por isso também deve o ofício ser exercido pela maior quantidade de obreiros possível. Afinal de contas, o principal objetivo da Maçonaria é o aperfeiçoamento dos seus obreiros... 

Rui Bandeira

19 setembro 2017

Porque só um crente pode ingressar na Maçonaria Regular



Um dos requisitos para se ingressar a Maçonaria Regular é a "crença no Grande Arquiteto do Universo". Ora, quem não esteja inteirado do significado de tal expressão nunca poderá, de boa fé, responder afirmativamente. A pergunta que daí inevitavelmente decorre é: "Mas quem é o Grande Arquiteto do Universo?" E daqui costuma advir uma longa explicação, mais ou menos complicada, e mais ou menos extensa, referindo a tolerância religiosa, a história da maçonaria e os valores de harmonia e paz que à maçonaria são caros. Vou tentar outra abordagem.

Em muitos países - e o nosso não é, infelizmente, exceção - perde-se o nome quando se é investido de um cargo; passa-se de "João", "Bruno" ou "António" a "Senhor Professor", "Senhor Diretor" ou "Senhor Ministro". Não que se perca o nome; este fica é reservado àqueles que nos são mais próximos. Os restantes tratam-nos pelo nome do cargo.

É comum, em muitas organizações, ter que se pedir autorização a um superior hierárquico para, por exemplo, se mudar um dia de férias. Isso pode, mesmo, constar de regulamento interno, que dirá algo como "A alteração de férias carece de aprovação pelo respetivo diretor". Não diz o nome do diretor, nem o nome do funcionário; nem sequer refere o departamento. Mas toda a gente saberá o que deve fazer, e o que esse artigo do regulamento significa.

Situação semelhante se passa, num contexto maçónico, com as divindades em que cada um de nós crê. Entre maçons, é consensual que a expressão "Grande Arquiteto do Universo", frequentemente reduzido à sigla "GADU",  simboliza o Ser Supremo em que cada um acredita; por outras palavras, para os cristãos GADU é Deus; para os muculmanos, Allah; e por aí fora. Não é, de modo algum, o nome de um qualquer hipotético (e inexistente...) deus maçónico; não é o nome de um Deus, mas o "posto", o "cargo" que ele ocupa. Longe de se permitir que cada um manifeste a sua crença num ser que designa de forma diferente, usa-se uma expressão que a todos serve, ao mesmo tempo que salienta as semelhanças e esbate as diferenças.

Os rituais maçónicos referem, em certos momentos, o Grande Arquiteto do Universo; os maçons dedicam os trabalhos que fazem e apresentam em Loja "À Glória do Grande Arquiteto do Universo"; ouve-se, frequentemente, invocações como "Que o Grande Arquiteto do Universo ilumine o nosso caminho" ou "Receba-o o Grande Arquiteto do Universo no Oriente Eterno." Estas expressões têm claras implicações por parte de quem as profere, mas não vinculam forçosamente quem as ouve. Por outro lado, são uma clara referência às características que quem as profere atribui à Divindade em Quem acredita.

Cada um sabe qual é o nome do "seu" GADU - como cada funcionário conhece o nome do seu diretor. Não precisa de estar sempre a dizer aos outros quem ele é. Quem não seja crente rapidamente se sentirá um corpo estranho - que é, acima de tudo, o que se pretende evitar com este requisito.

Monoteístas, deístas, teístas, panteístas, e mais uma infinidade de outros -istas, são todos bem vindos desde que, esclarecidos, com verdade, e com convicção, se afirmem crentes no Grande Arquiteto do Universo. Dito isto, se alguma vez tiverem que responder a esta pergunta, cada um de vós saberá, no seu íntimo, se é ou não crente no Grande Arquiteto do Universo, sem necessidade de mais explicações - e ninguém vos pedirá que elaborem mais do que isso mesmo.

Paulo M.

11 setembro 2017

O Vigésimo Sexto Venerável Mestre


No ano maçónico de 2014/2015, a Loja Mestre Affonso Domingues teve como seu Venerável Mestre o Irmão Luís N. C..

Luís N. C. é um gentleman, de uma polidez a toda a prova. mantendo sempre uma calma olímpica e uma impertubável serenidade que, no entanto, não prejudicam uma segura determinação no cumprimento das tarefas que se propõe realizar. Tomou conta do leme da Loja após um período anómalo na sua gestão, pois, no ano anterior, a Loja tivera um Venerável que, muito pouco tempo após a sua instalação, teve que se ausentar, um largo período de substituição assegurada interinamente e, por fim, um novo Venerável para um mandato reduzido. Havia que procurar retomar a normaliddade e foi isso que Luís N. C. providenciou.

A Loja retomou as suas rotinas. Foi dada atenção à regularização da situação administrativa e financeira. Retomaram-se as tarefas de formação dos mais recentes elementos da Loja. Tudo isso Luís N. C. assegurou e assegurou bem. Aparentemente, a Loja retomava a sua normal evolução. E a todos, então, isso pareceu.

Visto agora, à distância de algum tempo - e conhecendo a evolução futura... -, porém, algo subtilmente estava em mudança. Como sempre acontece, as pequenas alterações passam despercebidas e vão-se acumulando e interagindo até que chega o momento em que uma mudança se manifesta.  Visto agora, à distância de algum tempo, acumulavam-se desde os tempos dos Vigésimo Quarto e Vigésimo Quinto Veneráveis Mestres os indícios e sinais de mudança a caminho e prosseguiu, ainda impercetivelmente, tal processo no decurso do mandato de Luís N. C..

Da geração dos primeiros tempos da Loja restavam já apenas uns quantos elementos. A Loja era agora essencialmente constituída por uma nova geração, que não vivera os tempos da implantação da Loja e, sobretudo, não passara pelo ordálio da cisão de 1996/1997. Todo um conjunto de formas de trabalhar, de equilíbrios, de cuidados eram agora praticados e vividos por quem não vivera os tempos e não passara pelos acontecimentos que forjaram essas formas, esses equilíbrios, esses cuidados. E seguramente não é o mesmo ter vivido situações e, por saber de experiência feito, ter a noção da razão de ser de certas escolhas, de determinadas práticas, ou apenas ouvir a informação do facto ou da ocorrência que subjaz a uma escolha ou à implantação de uma prática. Acresce ainda que os tempos passam, as memórias são falíveis e certamente haverá opções tomadas há mais de vinte ou vinte e cinco anos que agora nem sequer se sabe muito bem porquê... Para além de os tempos mudarem e as coisas evoluirem...

Por esta altura, era assim evidente que se aproximava um tempo em que seria necessário rever opções, refrescar práticas. A Tradição da Loja preza-se e é mantida, mas não pode deixar de se atender à evolução e é sempre preciso ajuizar serenamente se e quando há que mudar algo e como.

Mas o que parece óbvio em teoria é mais complicado na prática das coisas. É fácil dizer-se que devemos estar atento à necessidade de mudanças, de atualizações. Mais difícil - muito mais! - é decidir que concretas mudanças e atualizações são convenientes e como e em que sentido devem ocorrer...

Após o ano atípico anterior, claramente que a Loja precisava de um retomar da rotina que simultaneamente constituísse um tempo de pausa para clarificação de ideias em relação à efetiva necessidade de mudanças de práticas e ou de objetivos, e quais. Isso garantiu-o, e bem, Luís N. C..

O diagnóstico que então se fazia era que a Loja estava adaptada às rotinas e aos entendimentos dos mais antigos, da Velha Guarda, práticas e rotinas essas com que os mais novos - os mais recentes na Loja - não se identificavam totalmente. Havia uma transição de gerações a fazer, necessariamente com algumas mudanças. Nesse sentido, era necessário que os elementos da Velha Guarda se fossem paulatinamente afastando da primeira linha das decisões, dando lugar aos mais novos. A transição ir-se-ia então naturalmente fazendo e as mudanças aconselháveis surgiriam também tranquilamente.

Este era o estado da arte da Loja Mestre Affonso Domingues no ano em que Luís N. C. a dirigiu Fê-lo bem., fê-lo a contento e deixou ao seu sucessor a Loja pronta para continuar a sua natural evolução.

Rui Bandeira

04 setembro 2017

Maçonaria: do passado rumo ao futuro


Convencionou-se a data de 24 de junho de 1717 como o marco de partida da moderna Maçonaria Especulativa. Sabemos hoje que nesse dia ocorreu a formalização da Grande Loja de Londres, em sessão ocorrida na taberna Goose and Gridiron, sendo essa formalização decorrente de trabalhos e contactos preparatórios entre quatro das Lojas então existentes na região de Londres e Westminter. O marco faz sentido, pois a criação da Premier Grand Lodge marcou a assinalável expansão da Maçonaria, primeiro no Reino Unido e rapidamente em toda a Europa e no resto do mundo.

Esta moderna Maçonaria Especulativa evoluiu a partir da então decadente estrutura de oficinas operativas que enfrentavam o espetro da obsolescência, em face da evolução das técnicas de construção e da própria sociedade.

Do velho e caduco fez-se novo, pujante e diferente. A Maçonaria Especulativa deu corpo, estrutura de enquadramento e divulgação e meios à ideologia racionalista, iluminista, experimentalista, que se afirmava em substituição do conhecimento escolástico herdado da Idade Média e apenas abanado pelo Renascimento. Constituiu também o cadinho de desenvolvimento da harmonização entre a Ciência e a Crença, entre a Razão e o Espírito, entre a Dedução e a Intuição.

A Maçonaria Especulativa é um dos elementos de derrube do Antigo Regime ideológico vigente na Europa, resultante de séculos de prevalência do Poder Eclesiástico sobre o Poder político, de organização política e social estratificada em classes estanques que inviabilizavam ou dificultavam a mobilidade social, assente na prevalência dos ditames religiosos sobre tudo o resto.

Os 300 anos desde então decorridos mostraram que a evolução em que se inseriu a Maçonaria especulativa, a ideologia que cultivou e divulgou e defende correspondeu à necessidade de evolução das sociedades. Da sociedade estratificada feudal ou pós-feudal então existente, evoluiu-se para novas formas de governo (Monarquias constitucionais e Repúblicas substituindo o Absolutismo, universalização dos princípios da separação de poderes e do exercício da soberania em representação do Povo, entendido como o conjunto englobando todos os cidadãos insertos numa dada unidade política), para novas e ainda em evolução formas de produção e distribuição económicas (Liberalismo, Capitalismo, Estado-Providêmcia, Desregulamentação, Globalização, etc.),  para novas e cada vez mais avançadas e complexas formas de aquisição e divulgação do Saber, em todos os campos da Ciência.

A evolução da Ciência criou em muitas mentes, num primeiro (mas longo…) momento, o entendimento da existência de oposição entre a Ciência, o Conhecimento Científico, o Saber de experiência feito e a Religião, a Crença, o Espiritual. Para esse entendimento, o inevitável avanço da Ciência necessariamente constituiria o recuo, o declínio, a extinção da Religião. Neste aspeto, a Maçonaria atravessou toda a recente evolução humana, social e científica com outra postura ideológica, a da Harmonização final da Ciência e da Religião, do Saber e da Crença. A dicotomia, a diferença, a aparente oposição entre Ciência e Religião resultam muito mais do que (ainda) o Homem não sabe do que daquilo que já aprendeu! Claro que o avanço da Ciência expõe os erros existentes em muitas crenças. Evidentemente que a Ciência expõe, à medida que avança, os limites da Crença e obriga a repensar ditames religiosos. Mas também existem limites à Ciência, à capacidade humana de tudo desvendar, de tudo revelar, de tudo aprender – e esses limites são expostos pela Religião, pela Crença!

Há trezentos anos atrás, as sociedades europeias laboriosamente percorriam o caminho de saída da conceção dogmático-religiosa do mundo. Hoje exploram as fronteiras do Conhecimento, buscando o horizonte para lá do horizonte, cada geração desvendando mistérios e aprofundando conhecimento como a geração dos seus pais não tomava por possível e a dos seus avós nem sequer imaginava.

A Ciência investiga o palpável, o concreto, o material. O espiritual, o intangível não é (ainda?) o seu campo. No entanto, cada vez mais cientistas vão adquirindo a noção de que esse intangível existe. Só que não (ainda?) acessível segundo os meios da Ciência.

Quanto às diversas crenças, vão evoluindo, também laboriosamente, muitas delas a contragosto, em função do que o Homem vai conhecendo.

A Maçonaria, que tem como um dos seus princípios ideológicos a compatibilização da Ciência e da Religião, deve, em cada momento, procurar efetuar essa harmonização. A Ciência avança, mas continua a ter limites que não consegue (ainda?) ultrapassar. As Crenças devem reconhecer e integrar o Conhecimento que os avanços da Ciência proporcionam, revendo as suas proposições em função disso.

No entanto, a Maçonaria, ao longo dos últimos trezentos anos, não se limitou à busca da preservação dos meios e caminhos e vontades de compatibilização entre a Ciência e a Religião. No domínio da organização das sociedades abraçou e divulgou os princípios da Liberdade e da Igualdade. Muitos dos seus obreiros lutaram para fazer vingar nas suas sociedades esses princípios. Desde o parlamentarismo europeu ao presidencialismo americano, desde a implantação de sistemas políticos favorecendo o bipartidarismo ao favorecimento de regimes privilegiando o multipartidarismo. Desde a opção pelo Regime Monárquico Constitucional até à preferência pelo Regime Republicano, em todas as latitudes a Maçonaria e os seus obreiros expressaram-se em favor da Liberdade e da Igualdade e defenderam o princípio da Separação de Poderes como meio indispensável para as concretizar.

Hoje, trezentos anos passados, temos a ilusão de que a Liberdade e a Igualdade, de que a Separação de Poderes, enfim, a Democracia estão implantadas e são irreversíveis. Continua a competir à Maçonaria alertar para o facto de que, em matéria de organização social nada é nunca definitivo e tudo tem, em cada momento, de ser defendido. A Liberdade, a Igualdade, a Separação de Poderes, a Democracia, estão hoje implantadas nos países desenvolvidos socialmente, mas cumpre alertar e providenciar para a sua defesa, para que não se perca o que a muitos custou muito sangue a obter.

Mas a Maçonaria não confunde, não pode nem deve confundir, a defesa destes princípios essenciais com as formas de os concretizar e aplicar. No respeito por estes princípios essenciais há uma variada panóplia de regimes, de opções, de formas de organização e gestão dos Estados e do Poder político que só aos respetivos povos e estruturas de decisão dizem respeito. Aí, a Maçonaria não se deve imiscuir. É campo, não já dos princípios essenciais, mas da Política, que, sendo nobre, implica escolhas entre várias hipóteses admissíveis no plano dos Princípios essenciais. Deve a Maçonaria resguardar-se e não se imiscuir – até porque, legitimamente, o normal é que haja maçons defensores das várias hipóteses possíveis.
  
Sem se imiscuir no plano das escolhas políticas concretas, deve a Maçonaria sempre defender, divulgar, apoiar, praticar e exigir que se pratiquem os princípios essenciais da Liberdade, da Igualdade, da Separação de Poderes, em suma, da Democracia. Este foi um profícuo campo de atuação da Maçonaria nos últimos trezentos anos. Deverá continuar a sê-lo nos próximos trezentos.

A Maçonaria, ela própria, dentro de uma matriz essencial evoluiu com assinaláveis diferenças em diferentes áreas geográficas e em diferentes épocas. No Reino Unido, cedo se afirmou integrante das instituições sociais, integrando-se harmoniosamente no establishment. Em França veio a adquirir uma conotação mais social, política, revolucionária até. Nos dias de hoje, ambos os ramos da Maçonaria assumem em França um papel mais interventivo na coisa pública do que na maior parte das outras zonas do globo. Nos Estados Unidos, a vertente filantrópica da Maçonaria assumiu uma importância notável, essencial e certamente diferenciadora em relação a outras paragens.

Após as I e II Guerras Mundiais, a Maçonaria viu crescer enormemente o número dos seus obreiros. Os soldados que sobreviveram aos conflitos, desmobilizados, encontraram na Maçonaria a camaradagem, o espírito de fraternidade que os ampararam nas trincheiras e nas duras batalhas na Europa, no Norte de África e no Pacífico. Toda uma geração se reviu na Maçonaria e nos seus princípios. Atenuada a memória desses conflitos, as gerações seguintes não se reviram com a mesma intensidade na Fraternidade que unira os seus pais e avós e, nos mesmos espaços onde a Maçonaria vira duplicar, triplicar e quadruplicar os seus obreiros, começou a definhar. Noutras paragens, porém, a Maçonaria expandia-se.
  
Qualquer observador minimamente informado repara nas diferenças de estilo e de atuação que existem dentro da realidade global e essencialmente semelhante que é a Maçonaria. Qualquer interessado anota a flutuação de número de obreiros da Maçonaria ao longo dos tempos e nas diferentes latitudes. Estas variações e flutuações têm a ver com a natureza de instituição social que a Maçonaria adquiriu e com a importância que, enquanto instituição, as várias e sucessivas sociedades nela vão reconhecendo. Sempre existiram e sempre existirão e terão mais a ver com as mudanças e condições sociais do que com a Maçonaria ela própria.

A natureza essencial da Maçonaria é, no entanto, a mesma em todas as latitudes e em todas as épocas. Coloca em confronto o Homem consigo mesmo. O Homem com a Ética. O Homem com a noção da Perfeição, sua inatingibilidade, mas a compulsão humana para a procurar. O Homem com o Transcendente. Nesse confronto, o maçom procura, antes de mais, conhecer-se, como base indispensável para determinar o que e como tem de melhorar. Procura, sempre, aperfeiçoar-se. Em matéria de conhecimento, mas sobretudo em termos éticos. Anseia superar-se. Como pessoa, como homem de família, como ser social, como profissional. Em termos morais e espirituais. Mesmo sabendo que lhe é impossível atingir a Perfeição, busca aproximar-se dela tanto quanto lhe for possível. Porque assim a sua natureza o compele a proceder, na perspetiva do encontro e do diálogo com o Transcendente. Encontro e diálogo nos quais a valia da vida de cada um se apura em face da concretização de cada um do potencial que imanentemente lhe foi outorgado.

Este confronto essencial do Homem não é novo. Já o Oráculo de Delfos ordenava Conhece-te a ti mesmo. Inúmeras correntes místicas e escolas religiosas nasceram em torno dele. O que de diferente ele assume na Maçonaria é o particular método de o concretizar. Já não em retiro de eremita ou seguindo diretrizes de líder espiritual. Mas cada um, como entidade própria, digno, igual a todos os demais, livre, inserido no seio de iguais. Cada um trilhando o seu caminho, sem julgar os trilhos dos demais. Cada um pondo em comum o que aprende, o que conquista, o que descobre, mas também aquilo em que falhou, a dificuldade com que deparou, o obstáculo que tem de transpor. Cada um beneficiando do que os demais em comum, como ele, põem. E, agora sim, ajuizando do confronto da sua experiência com as dos demais, o melhor trilho a seguir, o próximo passo a dar, o patamar a atingir. Cada um navegando o seu próprio caminho, mas todos bolinando à vista uns dos outros.

Este método de ser único no meio da comunidade, de partilhar a sua individualidade com os demais da comunidade e de recolher em seu benefício o que de útil para si encontra nas partilhas dos demais, esse, sim, é próprio e essencial da Maçonaria. Esta é a essência que, em todas as latitudes, com todas as diferenças, a Maçonaria e cada maçom devem preservar.

Esta a essência que vem de há trezentos anos e que informou os maçons em cada tempo e em cada lugar segundo as necessidades do maçom, do tempo e do lugar. Tempos houve em que o preciso foi adquirir e treinar o conhecimento científico e deixar para trás a escolástica dos tempos medievais. Tempos houve em que o indispensável foi garantir a Liberdade, a Igualdade, a Separação de Poderes, a Democracia. Tempos houve em que o necessário foi curar profundas feridas de sobreviventes de inimagináveis horrores, manter acesa a chama da Fraternidade e apaziguar consciências com a prática da Filantropia. Tempos houve em que foi possível estudar em conjunto, especular por si e em grupo, aprender, experimentar, tentear, buscar o melhor Ser que há em si, sem atenção ao Ter de cada um. Tempos houve para tudo isso. Tempo é de tudo isso. Tempos haverá para tudo isso.

Os tempos e as sociedades mudam. Os maçons não se reúnem já nas tabernas como há trezentos anos. Hoje comunicam entre si e com as sociedades em que se inserem utilizando as Tecnologias de Informação que o engenho humano concebeu e agora disponibiliza. Desengane-se quem pensar que essas circunstâncias exteriores obrigam à mudança da Maçonaria. Desiluda-se quem pretender que a Maçonaria mude o seu rumo em face de críticas, aceitações, reservas ou discordâncias. A identidade da Maçonaria não muda – ou transformar-se-ia em outra coisa diferente, apenas porventura usando o mesmo nome…
  
Desde há trezentos anos que a essência da Maçonaria é o nobre confronto do Homem consigo mesmo, buscando a maior aproximação possível à inatingível Perfeição, em face do Transcendente, confronto esse levado a cabo por cada um no seio de um grupo com que partilha avanços e recuos, vitórias e desaires, e beneficiando das partilhas dos demais.

Isto é a Maçonaria – desde há trezentos anos. Isto será a Maçonaria – nos próximos trezentos anos, e mais!

Rui Bandeira