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16 dezembro 2009

Criar e fabricar


Jean Staune

A Loja Nacional de Investigação da Grande Loge Nationale Française tem o nome de Villard de Honnecourt, um arquiteto gaulês do século XIII. Esta Loja publica trimestralmente Les Cahiers Villard de Honnecourt. No decorrer da minha recente visita à Respeitável Loja Fraternidade Atlântica, o seu Venerável Mestre teve a amabilidade de me oferecer o último volume então publicado, o n.º 69, dedicado genericamente ao tema Aspetos do sagrado.

Logo nas páginas iniciais deste volume, encontrei e li uma interessante entrevista concedida por Jean Staune, fundador da Universidade Interdisciplinar de Paris e professor convidado em duas Universidades Pontificais em Roma e na Universidade de Shandong, na China. Considera-se um filósofo das ciências, trabalhando na encruzilhada entre a filosofia, a teologia, as ciências e a gestão. O seu último livro foi um sucesso editorial em França e tem um título significativo: A nossa existência tem um sentido?

Na entrevista, toca temas como a a necessidade humana da transcendência, em pleno século XXI, o papel de Deus no seu pensamento filosófico, o choque de civilizações, a busca iniciática, a Tradição.

Uma passagem da sua entrevista chamou-me particularmente a atenção e aqui a publico, em tradução livre minha:

A minha conceção de Deus foi muito influenciada por autores judeus, como Hans Jonas e o seu O Conceito de Deus depois de Auschwitz. Ele demonstra bem que a ideia de um Deus Omnipotente é contraditória com a ideia de uma verdadeira liberdade. Deus abdicou de uma parte da sua omnipotência, dando-nos uma verdadeira liberdade. Se Deus pudesse agir permanentemente para nos impedir de fazer esta ou aquela coisa, é claro que não seríamos livres. E se Ele não pode intervir, não é Omnipotente. Ele pode intervir, mas não pode suprimir a nossa liberdade, entre outras, a de fazer o mal.

Este conceito da abdicação parcial da Omnipotência em virtude da Criação não o tinha ainda encontrado e, na sua simplicidade, parece apto a responder ao paradoxo invocado a propósito dos atributos de Deus (Deus Omnipotente e Deus Omnisciente são conceitos incompatíveis entre si: se Deus, tudo sabe, sabe o que acontecerá até ao fim da eternidade e então não pode mudar o que vai acontecer; se pode mudar, não pode saber o que vai acontecer) e, sobretudo, ao entendimento de que só o ateísmo é compatível com o Livre-Arbítrio, pois a crença no Criador e na Criação implica que aquele, tendo Criado e podendo Mudar, a seu bel-prazer, tudo determina e, portanto, impede que haja verdadeiro Livre-Arbítrio.

Criar não é sinónimo de fabricar. Fabricam~se artefatos, que deverão ser como nós queremos, enquanto quisermos, como quisermos. O ato da criação implica algo mais profundo, mais dinâmico (muito mais interessante...): implica que o que criamos não fique sob o nosso absoluto controlo, que cresça e evolua por si, mesmo contra a nossa vontade.

Fabricam-se automóveis ou frigoríficos ou colheres. Tudo que se fabrica é estático. É e será o que foi fabricado, como foi fabricado, para o que foi fabricado. Nem mais, nem menos, nem diferente.

O que é criado tem potencial de evolução próprio e independente do seu criador. Uma criança como um cachorro, como uma planta, como uma obra de arte, que será vista, entendida e interpretada por mil maneiras diversas e imprevistas pelo seu criador (ou então não será uma obra de arte, antes qualquer coisa verdadeiramente não criada, apenas fabricada...).

O ato de criar implica então abdicar da possibilidade de determinar, do controlo, da decisão. Implica admitir que a criatura vai desenvolver-se, não como nós quereríamos, mas como ela própria se desenvolver, vai agir, não como gostaríamos, mas como ela própria decidir agir. Para o bem e para o mal.

Criar é, inevitavelmente, um ato de Liberdade e, mais do que isso, um hino à Liberdade. Porque usamos a nossa Liberdade para possibilitar que algo exista com Liberdade própria.

Deus só pode ter sido Omnipotente ANTES da Criação. Continuaria a ser Omnipotente se nada tivesse criado. Quando muito, se tivesse apenas... fabricado... Mas, quando optou por Criar, aceitou (quis aceitar, usou o seu poder de aceitar, sabendo qual a sequela de o fazer e querendo e aceitando essa sequela) a inevitável consequência de que tal ato implicava a abdicação da sua Omnipotência, em favor do Livre Arbítrio que criava e do que criava.

Este conceito não se me tinha ainda mostrado e descobri-o com esta passagem da entrevista de Jean Staune. Os ateus continuarão a dizer que nada prova sobre a existência de Deus. Eu continuarei a defender que a melhor prova da existência do Criador é a simples e mera observação do que está por cima da nossa cabeça ao ar livre numa noite de Verão sem nuvens... Aos que acenam com o Big Bang, continuarei eu a inquirir-lhes sobre o que e quem o despoletou... Esta ideia que encontrei nada resolve, sobre nada é definitiva. Mas, para mim, serviu para pensar um pouco, sob uma perspetiva em que não tinha ainda pensado.

Esta ideia que encontrei é apenas uma pedra que, por si só, nada constroi, nada acaba. Mas é uma pedra que encontrei e pontua o MEU caminho. Tanto me basta!

Rui Bandeira

17 junho 2009

Blogueirólico nada anónimo

("Blogueirólico" acabei de inventar. Significa "escrevinhador compusivo de textos de blogue". Se a palavra pegar, se se tornar neologismo, se porventura chegar a, ainda que de forma obscura, ter lugar no vocabulário da língua portuguesa, já sabem: reivindico a paternidade da sua invenção. Para que conste na Enciclopédia dos Conhecimentos Inúteis...)

Pois é! Estava eu, como há séculos o grande Camões escreveu sobre a bela Inês (de Castro, pois claro!), naquele engano de alma, ledo e cego, gozando o meu merecido repouso de quase três anos de muitos e variegados textos, parcimoniosamente matutando na melhor maneira de ir gerindo o institucional sítio da GLLP/GLRP, quando o José Ruah - amigo da onça! - matreiramente me atira, assim como quem não quer a coisa: Olha lá, o texto do aniversário do blogue fazes tu! Isso podes, não tem nada a ver com a Grande Loja...

E eu, pobre de mim, alma ingénua e pura (pelo menos, de vez em quando, sobretudo quando estou distraído...), nem me apercebi da armadilha, da ratoeira, da rede que subrepticiamente aquela raposa lançava sobre mim, para pilhar meu sossego! E, qual confiante criancinha de olho azul e louros caracóis, disse que sim!

Oh, destino cruel! Ai, que imprudência tamanha! Como pode um momento de desatenção mudar toda uma vida!

Um certo leitor deste blogue diria - que digo eu? Insistiria, teimaria, repetiria - que assim estava destinado, que tudo está determinado. Pensando nisso, intuí porque o determinismo tantos e tão abnegados defensores tem. No fundo, é um descanso, uma paz para a alma e a consciência, uma desculpa sempre à mão: a culpa não foi minha, o disparate não fui eu que o cometi, estava determinado, escrito nas estrelas e no Livro de Todos os Sucessos desde o Big até ao Bang, entendendo-se aquele como o estoiro inicial e este como o suspiro final de tudo o que existe, existiu e existirá...

Mas, ai de mim!, eu sempre tive a - vejo-o agora! - imprudência de acreditar firmemente no livre arbítrio - e na inerente responsabilidade que tal implica para cada um de nós. Não há desculpa possível para o disparate individual. Quem o faz, fê-lo. Por si. Por sua conta e risco. Por sua imprudência, pouco siso ou menos esperteza. Não há maneira de me poder consolar. Não estava nada escrito! O disparate fi-lo eu, por minha única e exclusiva culpa e imprevidência!

E, no entanto, bem poderia eu ter evitado tamanho trambolhão, tão aziago mau passo! Bem sabia eu que o alcoólico em recuperação, aquele que, anónimo ou não, conseguiu arranjar forças para se desintoxicar e consegue - quantas vezes há anos e anos - resistir ao chamamento da traiçoeira garrafa de bebida com álcool, não cede à tentação nem de um saudoso gole, muito menos de um desejado copo, porque sabe que, se ceder, o gole não será o único e o copo será apenas o primeiro.

Bem sabia eu - ex-fumador inveterado e permanentemente saudoso do inenarravelmente saboroso cachimbo - que quem consegue deixar de fumar, ainda que os anos tenham passado depois que se sobrepôs ao doentio hábito e conseguiu parar, se ceder à tentação de "dar só uma passa" é meio caminho andado para, a breve trecho, voltar a gastar mais em tabaco do que em combustível para o automóvel, enegrecer os pulmões, estreitar as artérias e apressar o conhecimento do que está para além da Derradeira Viagem...

Bem sabia eu que o vício, traiçoeiro, espreita, manso e escondido, a oportunidade para se reapossar de nossa vontade!

Apesar disso, apesar de tudo isso saber - oh! suprema imprudência! - disse que sim! Pior! Cumpri! Escrevi mesmo o texto do terceiro aniversário do blogue. Todos são testemunhas! Mas, se alguém duvida da minha desgraça, cavada com as minhas próprias mãos, torneada com o meu próprio teclado, revelada pelo meu próprio monitor, confira aqui a prova do meu deslize, da minha imprevidência!

Pois. Cedi. Não pensei. E agora, pobre e desgraçado blogueirólico nada anónimo, para aqui estou, tremendo, com os neurónios excitados, ansiando por mais e mais textos, com os dedos frementes de excitação alongando-se para o teclado, com cãibras nos olhos de tanto os virar para o monitor e de lá os afastar! Toda a minha abstinência, todo o esforço que me convenci ter tido sucesso, crente de me ter conseguido libertar da compulsão da escrita, foi então em vão?

Cedo? Desisto? Jogo tudo no vermelho, esperando que não saia preto?

Ah! A tentação é grande! A volúpia da palavra, o veludo da frase, assolam-me todos os sentidos!

Mas eu sou maçon! E que faz o maçon? Pratica a virtude e cava masmorras aos vícios! Há que resistir ao vício! Lutar...

Mas eu não sou perfeito! Por isso sou maçon. Porque reconhecço que necessito de me aperfeiçoar. E o ótimo é inimigo do bom. Lutar contra o vício, lutarei. Mas só na medida em que seja vício. Afinal de contas, o segredo está na moderação. Não me deixar cair em excessos. Não escrever nada é fugir do vício. Escrever com moderação é combatê-lo. E os maçons combatem os vícios...

Por isso, eu blogueirólico nada anónimo me confesso: decidi combater o meu vício e... só para mostrar que não tenho medo dele... escrever este texto!

(E quem não percebeu que, como sempre, o tema da escrita é a Maçonaria, faça o favor de ler outra vez, para perceber! Há muitas maneiras de escrever sobre maçonaria. Também levezinhas. Também brincando. Porque, ao contrário do que se diz por aí, a melhor maneira de lidar com as coisas sérias é conseguir brincar com elas. Porque, às vezes, aprende-se mais a brincar do que em muitas horas de aturado estudo. Perguntem a qualquer criança!)

O blogueirólico,

Rui Bandeira