24 setembro 2010

Correlação e causalidade (I)

 
O governo de um país, preocupado com as assimetrias verificadas no rendimento escolar dos seus cidadãos mais jovens, encomendou um estudo que permitisse determinar uma forma eficaz e eficiente de aumentar os níveis de literacia da porção mais desfavorecida dessa faixa populacional. A metodologia adotada era simples e, aparentemente, inatacável: pretendia-se estudar as famílias cujos filhos tivessem melhor rendimento escolar, e isolar as variáveis determinantes para as diferenças verificadas. Notou-se, durante o estudo, que havia, nas casas dos miúdos com melhores notas, determinados livros que pautavam pela ausência nas famílias dos miúdos com resultados mais baixos: clássicos da literatura, livros infantis e juvenis, dicionários e enciclopédias, entre outros.

Face a isto, o que decide o governo fazer? Ora, muito apropriadamente, estabelecer uma "biblioteca familiar básica" com base nos livros detetados, adquirir milhões de livros e, semanalmente, enviar um diferente para cada uma dessas famílias cujas crianças tinham piores notas. Excelente ideia - no papel. E o resultado? Zero. Os livros não tiveram qualquer impacto mensurável.

"- Mas como é possível?!" - perguntarão. Muito simplesmente - especulou-se depois - porque não era dos livros que decorriam as boas notas, mas de toda uma cultura familiar de que os livros eram um mero sintoma. Assim, nas famílias cujos pais detinham um nível de escolarização superior, ou um nível cultural mais elevado, era natural que existissem livros que lhes interessassem ou que achassem que interessariam aos filhos. Os bons resultados adviriam do tipo de contacto, de atividades, do estilo de educação que os pais imprimiam nos filhos, e quem nem um milhão de livros poderia substituir.

Mas não nos fiquemos por aqui. Já todos ouvimos certamente dizer que "um ou dois copos de vinho tinho por dia tomados às refeições fazem bem ao coração". De facto, há estudos que apontam para uma fortíssima correlação entre o consumo moderado e regular de vinho tinto e uma boa saúde cardíaca. O que poucos saberão é que, estudo clínico após estudo clínico, as farmacêuticas têm - em vão - tentado isolar as substâncias do vinho responsáveis por esse efeito. Parece que o efeito se desvanece assim que o vinho é separado nas substâncias que o constituem. Pior: se o vinho tinto, por si mesmo, foi administrado como se de um medicamento se tratasse, de forma controlada e medida, deixa de apresentar qualquer efeito.

Uma vez mais, conjetura-se que quem pratica esse consumo moderado - os tais dois copitos por dia de vinho tinto - é quem, por um lado, tem algum poder económico que lho permita, e por outro lado não caia em exageros ou em excessos de consumo. Em suma: alguém com dinheiro para investir na sua própria saúde e bem-estar, e com um estilo de vida descontraído que lhe permita fazer refeições sem pressas, quiçá em boa companhia, mesmo que não consuma vinho, terá certamente menos problemas cardíacos do que a média... Uma vez mais, o consumo de vinho seria um sintoma, um indicador, e não uma causa.

Estes exemplos são bem ilustrativos da diferença entre "correlação" e "causalidade". Para haver correlação entre dois fenómenos basta que se detete que quando um se verifica mais, ou outro também se verifique mais (ao que se chama uma correlação positiva), ou se verifique menos (caso em que passa a ser uma correlação negativa). No primeiro caso havia uma correlação entre os livros e o sucesso escolar; no segundo, entre o consumo de vinho e a doença cardíaca. Contudo, para que haja causalidade, é necessário que se prove que uma das ocorrências foi causada pela outra - o que nem sempre é fácil, pois obriga a que se descubra, com perfeita clareza, os mecanismos que leva de um estado ao outro.

De facto, a indústria farmacêutica desconhece as razões por detrás do funcionamento de muitos medicamentos à venda no mercado; não fazem ideia de qual seja o nexo de causalidade, apenas conhecem a existência de uma correlação. Para estabelecer a correlação basta observar e reter; contudo, para determinar a causalidade é necessário, através do raciocínio, procurar a regra, a fórmula, a razão por detrás dos fenómenos ocorridos. Especulativa que é, cada uma dessas regras pode sempre ser refutada caso se encontre um caso concreto à qual ela se não aplique; tem, então, que se encontrar uma nova regra de que decorram os mesmos resultados para o que foi já estabelecido, mas que comporte ainda os resultados dos casos novos.

É esta a base do conhecimento e do método científicos: a observação - e mensuração - repetida dos fenónenos, a especulação das regras a partir dos resultados, e a validação das regras ao longo do tempo. E que tem isto que ver com maçonaria, perguntareis? Tudo! Um maçon é um homem tendencialmente esclarecido e completo, e distinguir estes dois conceitos - correlação e causalidade - é essencial para a compreensão de muitos argumentos, e para o desmontar de muitas falácias e desonestidades intelectuais que tolhem e limitam a nossa capacidade de escolha - pois que, só na medida directa em que estamos de posse da verdade, é que podemos verdadeiramente agir com liberdade.

Paulo M.

6 comentários:

jpa disse...

Os grandes negócios de carácter internacional, que se fazem na actualidade, são suportados por leis fundamentalmente correlativas.
O que leva a que algumas pessoas mais esclarecidas discordem destas situações.
Deixava no entanto este lado da discussão para o saudoso Diogo, que já á algum tempo não nos visita.

Bom fim-de-semana a todos

JPA

Unknown disse...

Muito interessante, muito didático. Parabéns mais uma vez!

Candido disse...

Quanto á forma como dissertou sobre a correlação e causalidade, não me merece discordância, embora em rigor, ter-se-ia que atribuir algum valor aos livros para formatar a equação. Mas como não estamos a falar de cálculo de probabilidades, passo adiante.
É evidente que o método de analise de quaisquer fenómenos, físicos ou não, devem obedecer á metodologia cientifica apropriada ao fenómeno. E isto tem a ver com maçons e não maçons! Onde estou em desacordo consigo é na última frase do texto que vou ver se consigo expô-la.
Quem é possuidor da verdade? Oiço a pergunta com frequência em todas as igrejinhas dos bairros pobres!
A procura da verdade é uma constante das nossas vidas, e próprio dos pensantes, mas que uns vão por um lado e outros por outro, também é verdade.
Surge-me aqui uma contradição ou uma causalidade que tenho dificuldade de avaliar e que é agir com liberdade, entendendo isso como liberdade de pensamento.
Então vejamos, quem será mais livre? O intelectual, ou não, que estuda á procura da verdade e que age de acordo os parâmetros do seu estudo que formataram a sua própria ideia (livre) ou as pessoas de uma religião ou associação que seguem determinadas obediências que lhes formatam “a sua verdade” em cada seguidor? Quem acha que são os mais livres de pensamento?
Quem é mais livre? O estudioso que procura esclarecer a dúvida (ou atingir a verdade), ou o ignorante que segue a ideia do padre ou… e que para ele não é questão que lhe tire sono? Nem se há ou não Deus lhe faz grande diferença, morre, rezam-lhe a missa e enterram-no, como a toda a gente.
Ps Não é provocação.
Abraço para si e bom fim de semana para todos

Diogo disse...

Caro Paulo, não detecto nem correlação nem causalidade no facto de se ser maçon e de se estar na posse da verdade.

Abraço

Diogo disse...

Caro JPA, tenho andado em remodelações em casa, o que me tem ocupado muito tempo. But I'am back.

Era interessante um debate sobre a finança internacional. Saber, por exemplo, porque é que o BCE, cujos estatutos o impedem de emprestar dinheiro aos governos, empresta a 1% aos bancos comerciais, que, por seu turno, emprestam aos governos a taxas muiito maiores. Fascinante, não é?

Abraço

Paulo M. disse...

@candido: Os texto aqui publicados (pelo menos os meus) não pretendem, de modo aslgum, ser tratados sobre o que quer quer seja - e muito menos sobre lógica ou estatística, mas apenas o despertar para algumas questões que, depois, cada um poderá aprofundar na medida em que o deseje.

Quanto à sua questão, permita-me que lhe recorde (pois presumo que já o terá lido...) o "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley, em que os Gamas manifestavam ruidosamente a sua alegria por terem trabalhos simples, e por não serem obrigados a fazer as coisas aborrecidas que os Alfas e os Betas faziam. A felicidade está, muitas vezes, nas coisas simples, e abdicar da liberdade de opinião para seguir uma ideia feita ou uma verdade alheia pode ser libertador, na medida em que se pode estar livre de certas preocupações. Uma vez mais, cada um escolhe (na medida em que o pode, evidentemente) o caminho que trilha.

Compare o repouso tranquilo do ignorante com o sono quantas vezes sobressaltado e angustiado do intelectual, e pense quem viverá mais descansado - e possivelmente mais feliz - o que não faz dele mais livre. São valores distintos.

@Diogo: Quanto ao estar na posse da verdade, eu também não encontro correlação ou causalidade. O que encontro é uma correlação (e, arrisco, uma causalidade) entre ser-se maçon e procurar a verdade.

Um abraço,
Paulo M.