30 outubro 2008

Deísmo, teísmo, ateísmo

Em peças anteriores, procurei chegar às definições de deísmo e teísmo, resultando, por contraste, também a de ateísmo. Hoje, pretendo relacionar estes conceitos.

Recordemos primeiro as definições que se utilizarão, para que se saiba sempre do que se está a falar:

Deísmo - posição filosófica que pretende enfrentar a questão da existência de Deus, através da razão, em lugar dos elementos comuns das religiões teístas tais como a "revelação divina", os dogmas e a tradição.

Teísmo - posição que resulta da crença na existência de Deus através da fé, designadamente por via da crença na Revelação em textos sagrados e ou nas profecias de portadores de mensagens tidas como oriundas da Divindade.

Ateísmo - posição que postula a inexistência de Deus.

Em termos de oposição polarizada, ateísmo opõe-se a teísmo e deísmo. Quem postula a inexistência de Deus insanavelmente se opõe a quem postula a sua existência, seja pela fé, seja pela razão.

Entre teísmo e deísmo não existe uma relação de género - espécie, segundo o qual aquele contém este e este é uma das modalidades daquele.

Partilhando um elemento fundamental - a crença em Deus - teísmo e deísmo não são opostos entre si. Também não se relacionam em termos de um conter o outro. São, no entanto, conceitos manifestamente diferentes. Como se relacionam então entre si? E algumas destas posições partilha algo com o ateísmo? O quê?

Na minha opinião, existe uma relação de derivação, de acrescento, de evolução. A questão coloca-se entre crença (fé) e razão. Entre acreditar para além de ou sem evidência e acreditar em resultado de evidência. Entre instinto e raciocínio.

Quer em termos de Humanidade, quer em termos individuais, o instinto é um elemento básico de sobrevivência. Há muitas coisas que fazemos porque estamos geneticamente programados para o fazer. Não se pensa nisso.

Desde os primórdios dos tempos que a Humanidade se confrontou com o mistério da existência do Universo e da Vida. E não o consegue decifrar. Se hoje a Ciência nos esclarece sobre a forma como a Vida evoluiu e evolui, se nos fornece uma teoria sobre como evoluiu o Universo, desde o que se costuma designar por Big Bang, ainda não nos consegue elucidar sobre a Força que causou esse Big Bang e, portanto, esclarecer-nos como de nada se fez tudo. Relativamente à origem do Universo, hoje a ciência pode dizer-nos, com razoável acerto, o que e o quando, mas não consegue (ainda?) elucidar-nos sobre o como e muito menos sequer arranhar o porquê nem o para quê...

No entanto, este mistério primordial sempre preocupou e estimulou a curiosidade da Humanidade. Que, não podendo saber, inventou e acreditou, mas também especulou, analisou e racionalmente concluiu. Uns que não existia Divindade, porque nenhuma prova da sua existência descortinam. Outros concluindo que o próprio problema é a prova da existência de algo superior, de uma Força Criadora, em suma, de Deus.

Deísmo e ateísmo partilham entre si a Razão. Só que, pela Razão, chegam a conclusões opostas...

Deísmo e teísmo partilham entre si a Crença. Só que o teísmo prescinde da Razão para obter a Crença e aquele obtém esta em resultado daquela.

Deístas e ateus utilizam o mesmo meio de se transportarem, mas chegam a destinos diferentes.

Deístas e teístas usam diferentes meios para viajarem, mas chegam ao mesmo destino.

O teísta crê e, porque crê, racionaliza essa crença.

O deísta usa a razão e chega à crença.

Historicamente, ouso dizê-lo, primeiro a Humanidade, as sociedades, os indivíduos foram teístas. Depois, alguns dos indivíduos, partes das sociedades e da Humanidade, evoluíram para o deísmo, não se conformando em acreditar, procurando e obtendo fundamento racional para a crença.

Embora em termos lógicos, para o deísta a razão preceda a fé, em termos cronológicos, a fé precedeu a razão.

Daí a minha afirmação de que o deísmo é uma evolução do teísmo. Daí que, na minha maneira de ver, não exista uma oposição entre teísmo e deísmo, mas uma evolução de teísmo para deísmo.

No teísmo existe fé. No deísmo existe fé e razão. Aquela criando a necessidade da intervenção desta. Esta fundamentando a existência daquela.

É com base nestas considerações que, finalmente, poderei chegar onde, desde o princípio queria chegar: procurar definir e relacionar entre si Maçonaria Deísta e Maçonaria Teísta, sem esquecer que existem também aqueles que se reclamam de integrarem uma Maçonaria que não será nem deísta, nem teísta, nem ateia, antes a reclamam de ser universal (ou liberal). Mas isso ficará para um próximo escrito.

Rui Bandeira

2 comentários:

José M. disse...

Caro Rui Bandeira,

Excelente artigo que muito contribui para o esclarecimento dos conceitos de (e diferenças entre) "deísmo" e teísmo".

Permite-me discordar apenas de uma ideia que, em duas passagens, ressalta do texto e que poderá levar o leitor a confundir os conceitos de "crença em Deus" e de "Fé".

Trata-se de conceitos que estão obviamente relacionados mas que não são sinónimos.

Quer em termos religiosos (confessionais), quer em termos filosóficos (e aqui incluo as vias iniciáticas em geral e a Maçonaria Regular em particular), a Fé é mais do que uma crença.

A crença em Deus é uma situação de facto, uma mera circunstância. Ou se acredita ou não… É matéria de convicção pessoal.

Mas a Fé, que pressupõe naturalmente essa crença ou convicção da existência de Deus, é uma Virtude que se trabalha. Recordo aqui a clássica trilogia maçónica "Fé, Esperança e Caridade".

Por isso, nas vias verdadeiramente iniciáticas, como é o caso da Maçonaria (Regular), a crença em Deus é apenas um pressuposto de admissão do Candidato. É algo de que ele deve ser portador antes mesmo de ser admitido, algo que ele já traz consigo do mundo profano.

Para o Teísmo o conceito de "fé" aproxima-se mais da mera crença, sem contudo se confundir com ela. Funda-se numa convicção formada noutra crença, a crença nos textos sagrados, ou numa determinada explicação doutrinária e dogmática sobre tais textos.

Para o Deísmo a "Fé" decorre de um prévio "conhecimento" (ou, talvez melhor dizendo, "reconhecimento") individual da existência de Deus, quer por via racional, quer por via mística (aqui no sentido próprio, de via iniciática).

Deste modo, parece-me que o que em matéria de Fé separa o Teísmo do Deísmo é o facto de no primeiro caso aquela se fundar numa crença doutrinal e confessional e mo segundo não.

Em todo o caso, a Fé não é sinónimo de crença. Pressupõe-na mas distingue-se dela tal como uma árvore pressupõe um solo onde funda raízes, mas distingue-se dele.

Abraço,

José M.

Rui Bandeira disse...

@ José M.:

Nenhuma discordância. Apenas uma nota: o texto, como genericamente o blogue, procura ser de divulgação, de esclarecimento, quer a maçons, quer a profanos. Se quiser, integra uam espécie de "curso básico de Maçonaria para maçons e profanos". A este propositado nível, a utilização como sinónimos de crença e de fé permite um mais fácil entendimento de todos os potenciais leitores e, sobretudo, que não haja dúvidas por utilizações individuais de um ou outro termo.

A um nível mais profundo de análise filosófica ou de sociologia das religiões, a distinção é manifestamente pertinente e o desenvolvimento oportuno: crença e fé foram no texto, por simplificação, utilizados como sinónimos, mas, em termos conceituais rigorosos são efetivamente diferentes, nos termos em que o José M. lucidamente explicou.

Um abraço.