07 outubro 2008

Deísmo - II


Vimos já que, na versão francesa da Wikipedia, a definição de deísmo, em aparente contradição com o que se escreve na versão inglesa, postula (tradução livre minha):

O deísmo, do latim deus, é uma crença ou doutrina que afirma a existência de um Deus e a sua influência no Universo, quer quanto à sua criação, quer quanto ao seu funcionamento.

Mas, tal como fizémos em relação à versão inglesa da enciclopédia virtual, olhemos um pouo mais fundo. Verificamos que o artigo prossegue, do seguinte modo (sempre em tradução livre minha):

Para o pensamento deísta, certas caraterísticas de Deus podem ser compreendidas pelas faculdades intelectuais do homem.

Cá está, afinal, o fio condutor, o cerne efetivamente definidor do conceito! Afinal, as versões das três línguas da enciclopédia virtual acabam por confluir no conceito de deísmo... Pena que tenham dado destaque a elementos secundários diferentes, criando a confusão onde deveria haver esclarecimento...

Mas, no anterior texto sobre este tema, deixei escrito, talvez enigmaticamente, que é possível aceitar as menções aparentemente opostas das versões em inglês e em francês ambas como não incorretas. Sabido como é que já Sócrates, o filósofo da Antiguidade grega, deixou claro que Ser e não ser não pode ser, parece impossível tarefa, mesmo para um experimentado diplomata, conciliar as duas visões. E sê-lo-ia, se nos ativéssemos à literalidade da frase da versão francesa e não buscássemos o real significado dela.

Mais adiante, a versão em francês da Wikipedia sumariza o que chama os principais pontos da doutrina deísta, mencionando que o deísmo afirma que (ainda e sempre tradução livre minha - e os comentários, obviamente, também...):

  • Tudo o que não é obra do homem foi produzido por uma fonte original e inteligente (designada por Deus) - ou, acrescento eu, por Allah, Jehovah, mil outras designações ou... simplesmente por... Grande Arquiteto do Universo...
  • Não é concebível que nada esteja na origem de tudo.
  • A essência de Deus não é material (Deus é espírito).
  • Deus tem uma ação permanente no Universo - já vejo os anglófonos a torcerem-se todos nas suas cadeiras...
  • Deus manifesta-se pelas suas obras (a natureza, a vida, o cosmos, a consciência humana...) - anglófonos: parem de se torcer e atentem bem na concretização da tal ação permanente...
  • O sentimento da ação de Deus vem do estudo da criação (contemplando-se a pintura pode compreender-se o pintor) - é favor conferir o texto Sobre o Grande Arquiteto do Universo - 2: eu, deísta, ali me confessei como tal...
  • Escutar a sua consciência é o único meio para o homem se unir a Deus (as leis de Deus estão inscritas na consciência de cada homem e não nos Livros Sagrados).
  • O respeito das regras morais ditadas pela consciência é essencial para a salvação do homem
  • A prece a Deus é livre e espontânea
  • A relação do homem com Deus é direta (através do pensamento) e sem intermediários.

Lidos os princípios ditos doutrinais do deísmo, verificamos então que a falada "ação permanente de Deus no Universo" traduz-se nas "suas obras" e que estas têm a ver com a Criação e as Leis instituídas aquando dela - a natureza, a vida, o cosmos, a consciência humana (esta, necessariamente quando a evolução, decorrente das Leis Universais instituídas, determinou que surgisse a espécie humana - eis como um Crente Deísta pode perfeitamente conciliar o seu entendimento com a teoria evolucionista...). Ou seja, a "ação permanente" a que alude a versão em francês da Wikipedia corresponde à... ausência de ação reclamada pela versão em inglês! Mais uma vez, em ambas as versões diz-se a mesma coisa com palavras diferentes e, até, aparentemente inconciliáveis. Só entendendo o que se entende por "preto" se percebe que, afinal... se está a chamar preto ao que outros chamam branco...

Fica, assim, explicada a aparente contradição. E evidenciadas as carências da Wikipedia, que não deixa, no entanto, de ser um instrumento útil, mas apenas se não aceitarmos acriticamente o que em cada uma das suas versões está escrito...

Para terminar este texto, que já vai longo, insisto: no meu entendimento, a definição que se aproxima mais da verdadeira noção de deísmo é a da versão em português da Wikipedia: O deísmo pretende enfrentar a questão da existência de Deus, através da razão, em lugar dos elementos comuns das religiões teístas tais como a "revelação divina", os dogmas e a tradição.

Este o alcance do conceito. Se é com este significado, e só com ele, que o mesmo é utilizado, mesmo em Maçonaria, isso é outro problema. Mas, para com ele lidar, temos que previamente dedicar a nossa atenção ao conceito de teísmo, à relação entre deísmo e teísmo e ainda à relação de ambos estes conceitos com ateísmo. Ainda há muita pedra para partir até que se consiga obter uma pedra devidamente aparelhada para se colocar na edificação que o pensamento constrói sobre o significado do Mundo e da Vida...

Rui Bandeira

1 comentário:

Paulo M. disse...

Não sei se o Rui vai ou não prosseguir com esta excelente série de artigos. Espero que sim, pois o tema dá, de facto pano para mangas. De qualquer modo, se mais não disser, está dito o essencial. Mas falta, de facto, ligar os conceitos abstractos à realidade da Maçonaria. Já fazê-lo sem polémica é que pode ser mais difícil!

Com o que está escrito até ao momento já dissipei, de qualquer modo, umas quantas dúvidas - e suscitei outras...

"Só entendendo o que se entende por "preto" se percebe que, afinal... se está a chamar preto ao que outros chamam branco..."

Esta frase é perfeitamente ilustrada por uma famosa ilusão óptica.

Um abraço,
Simple