03 dezembro 2007

Perfeição e perfeccionismo

(...) perfeição é virtude, mas perfeccionismo é defeito!


(Simple Aureole, em comentário ao texto Reflexão.)


A primeira reacção a esta máxima é de concordância. Mas não nos fiquemos pelas primeiras impressões.

Todo o maçon sabe que a perfeição é apanágio apenas da Divindade, do Criador, que cada religião denomina do modo que entende e que os maçons, respeitadores de todas as religiões, chamam de Grande Arquitecto do Universo. A bem dizer, não são apenas os maçons que sabem que a perfeição é apanágio unicamente do Criador. Todos os crentes, maçons ou não, o sabem.

Assim sendo, perfeição é virtude, mas virtude que se reconhece humanamente inatingível. É um arquétipo, um modelo, que deve servir para nos indicar a direcção dos nossos esforços, o que sabemos objectivo inatingível, mas de que nos devemos procurar aproximar tanto quanto humanamente for possível.

O perfeccionismo não é mais do que o desejo, a atitude, a procura, da perfeição. Ou seja, a busca, necessariamente infrutífera, do inatingível.

Nesse sentido, não podemos dizer que perfeccionismo é defeito. Não se deve considerar defeito a busca da perfeição, ainda que se saiba que é uma tarefa que, mesmo com a melhor execução possível, está sempre votada ao fracasso. No entanto, que gloriosos fracassos a Humanidade obteve! Deleitamo-nos com os fracassos da obtenção da perfeição que Leonardo da Vinci conseguiu com a sua Gioconda e que Michelangelo atingiu com a sua escultura de David. E poderia gastar centenas de linhas com imensos outro exemplos...

O perfeccionismo de Michelangelo quando, de um único bloco de pedra, extraiu a figura de David não pode ser considerado defeito!

No entanto, a impressão corrente é, efectivamente, que a máxima acima transcrita está correcta. Tal, em meu entender, deve-se ao facto de se ter negligenciado que toda a máxima tende a ser uma simplificação e que é inevitável que as simplificações acabem por dar uma ideia errada da realidade.

Penso que agora se impõe o uso de um ou dois adjectivos. Não é o perfeccionismo que é defeito, é o perfeccionismo estéril que é defeito. E o perfeccionismo paralisante.

É defeito o perfeccionismo estéril quando se busca melhorar algo que está já tão bem que a percepção humana já não conseguirá detectar a diferença obtida com a melhoria. Seria um perfeccionismo estéril se Stradivarius procurasse fabricar os seus violinos tão bem feitos que o som que um excelente executante deles tiraria não soaria apenas límpido e belo aos ouvidos humanos, mas também nas frequências de som que o ouvido humano não pode atingir. Talvez um mecanismo de captação de som demonstre claramente que na frequência de 100 Khz ocorre distorção. Mas, como o ouvido humano apenas capta som entre 20 Hz e 20 Khz, que diferença faz? Para o humano, aqueles violinos têm um som que nos parece perfeito. Mesmo que nós, intelectualmente, saibamos que não é, para quê continuar a buscar a perfeição para além da capacidade do nosso ouvido? Esse perfeccionismo é estéril, nada se ganha com ele. Esse é defeito!

Também há um tempo de criar e um tempo de terminar e mostrar. Se um pintor continuamente busca aperfeiçoar a sua pintura e se pretender só a expor quando for perfeita, nunca a exporá. Nunca a dará por concluída, porque sempre descortinará um leve, levíssimo, quase imperceptível, defeito num pequeno traço, numa pequena aplicação de cor. Esse perfeccionismo é paralisante, porque nunca permite que alguém dê por concluída a sua tarefa, que se descortine que a melhoria que seria possível obter é já tão ínfima que não merece o esforço de a obter. Esse perfeccionismo paralisante é defeito!

Mas o perfeccionismo saudável, a simples e honesta busca da perfeição, sabendo-se que esta é inatingível, mas que cada um dela se deve aproximar tanto quanto conseguir, com utilidade e no tempo asado, esse perfeccionismo nunca é defeito. É a virtude possível, em contraponto com a Virtude impossível a nós, humanos, a Perfeição.

O óptimo é inimigo do bom. Todos o sabemos. Mas isso não quer dizer que nos contentemos com o bom, que não busquemos o melhor, no caminho para o óptimo. Ponto é que não queiramos atingir o inatingível. Se o quisermos, o preço costuma ser que não se consegue o óptimo, nem o melhor, nem o bom e possivelmente nem o sofrível...

Reconhecer a nossa limitação humana em atingir a perfeição divina, mas esforçar-se por se aproximar desta quanto for humanamente possível, viável e adequado - esse deve ser um lema de vida do maçon.

Rui Bandeira

4 comentários:

Paulo M. disse...

"Nunca aprendi nada com quem estivesse de acordo comigo." (anónimo?)

Dito isto, estamos de acordo em muita coisa: que a perfeição é uma virtude; que devemos tentar aperfeiçoar-nos (buscar a perfeição); que esta é inatingível (por nós); que há um ponto a partir do qual qualquer tentativa de aperfeiçoamento é inútil; que, não obstante, "o perfeccionismo saudável, a simples e honesta busca da perfeição" é algo de desejável.

A nossa diferença será, essencialmente, semântica. Eu chamo "perfeccionismo" ao empenho exagerado numa faceta em detrimento das demais; a meu ver, a diferença entre a "busca da perfeição" (virtude) e o "perfeccionismo" (defeito) é, essencialmente, uma questão de eficiência: o perfeccionista perde a oportunidade de melhorar outras coisas eventualmente mais carenciadas de atenção.

Por outro lado, o Rui fala num "tempo de criar e um tempo de terminar e mostrar". Vejo, porém, o tempo de aperfeiçoamento como algo de menos previsível. A nossa vida é efémera; não temos "todo o tempo do mundo" para nos aperfeiçoarmos. Tentamos polir a nossa pedra tosca sabendo que, a qualquer momento, Alguém chegará e dirá: "Acabou o tempo; entrega-a como está".

Nesta perspectiva, tendo uma face já plana, devemos esforçar-nos por poli-la como um espelho, deixando em bruto todas as outras, ou devemos, antes, aplanar todas as faces, e só depois começar a poli-las? Que pedra é mais perfeita: uma pedra em tudo tosca mas polida como um espelho numa face só, ou uma pedra fosca, por polir, mas razoavelmente lisa de todos os lados?

Perfeccionista que sou, reconheço que me dá muito mais gozo melhorar algo em que sou bom do que desenvolver uma faceta em que sou fraco ou medíocre mas que, eventualmente, seja uma lacuna no meu equilíbrio interior. Veja-se o exemplo que dei, do nosso Nobel: um reconhecido escritor, mas com um reconhecido mau-feitio. Como ele, a maioria das pessoas é muito boa em alguma coisa em detrimento do resto. Uma das minhas lutas passa por tentar não perder demasiado tempo com o que já está suficientemente bom, quando tenho ainda tanto em bruto...

Qual deverá ser o lema da vida do maçon? Melhorar primeiro o que já está bom, ou corrigir primeiro o que está mau? A haver diferença de opinião entre nós - e não o creio - só pode ser aqui...

Um abraço,
Simple Aureole

Paulo M. disse...

No fim do post anterior, por lapso, escrevi "lema" em vez de "estratégia". O "lema" é o fim; "estratégia" é só o meio. E, como os chapéus, estratégias há muitas...

Rui Bandeira disse...

A maçonaria é sobretudo um espaço de Liberdade.
Temos muito em comum, cooperamos para que todos e cada um melhore.
Mas cada um escolhe o seu caminho conforme melhor lhe convém.
Cada um executa o seu trabalho conforme lhe dá mais jeito.
Uns procurarão primeiro polir como um espelho a face já aplanada; outros preferirão primeiro aplanar todas as faces.
Por mim, prefiro que se transforme a pedra bruta em pedra cúbica e só depois me esforce em transformar a pedra cúbica numa pedra polida. Aliás, parece ser assim que os rituais maçónicos ensinam.
Mas isso sou eu. Não tenho o direito de opinar sobre a estratégia de trabalho dos demais. Eu sei lá se, no final do tempo de cada um, terá mais valor uma pedra bem cúbica eventualmente pouco polida ou uma pedra ainda meio bruta com uma belíssima face brilhante reflectindo como um espelho!

Paulo M. disse...

Do que tenho aprendido, a Maçonaria é espaço de liberdade, mas não é menos espaço de fraternidade. Foi nesse espírito (e por adivinhar a sua posição quanto à estratégia de fazer primeiro a pedra cúbica e só depois a polir) que fiz o reparo original, não fosse o Rui estar acometido de uma qualquer "anorexia literária" que o fizesse ver gordura feia onde os demais vêem uma escrita brilhante...

Um grande abraço,
Simple Aureole