Há quarenta anos, dia por dia, eu era um jovem de dezoito anos que alcançara, à custa de muito trabalho, uns quantos sacrifícios e bastantes privações dos meus pais, o que era então o verdadeiro privilégio de ser estudante universitário. Estudava que me desunhava, não porque fosse especialmente dedicado, mas porque sabia que os meus pais - ele, operário eletricista, ela doméstica - não podiam sustentar vilegiaturas académicas sem aproveitamento. O curso era para se fazer o mais depressa que fosse possível, que os tostões eram parcos e contadíssimos e havia que deixar de ser fardo para a família e começar a contribuir para o seu sustento. Por outro lado, não bastava tirar o curso depressa: havia que procurar ter boas notas, única forma de diferenciação possível de quem provinha de classe modesta e não dispunha de pedigree, conhecimentos ou auxílios da elite que dominava este país.
Há quarenta anos, dia por dia, o sentimento que perpassava por toda a sociedade, por praticamente toda a população, era de medo. Medo de ir ou de que o seu filho fosse para a guerra, medo de ser tomado por algum polícia, PIDE ou bufo (informador da polícia política) como desafeto ao regime, pois isso implicaria, no mínimo, uma condução a instalações policiais e sujeição a interrogatório "musculado" com uns valentes tabefes, eventualmente uma estada, gratuita, mas frequentemente sem direito a dormir e com direito a uma estátua (mas quem fazia de estátua e não podia dormir era o "hóspede"...) nas temidas instalações da polícia política, na Rua António Maria Cardoso, ou mesmo umas "férias" mui pouco agradáveis na estância muito pouco termal de Caxias.
Há quarenta anos, dia por dia, eu, que até me considerava atento e bem informado, só sabia o que os detentores do poder político entendiam que me era permitido saber, pois a Imprensa (então não se costumava ainda dizer Comunicação Social...) estava sujeita a um férreo regime de censura, crismada com o cognome de "exame prévio", que só permitia que fosse publicado o que não lhes causasse inconveniência - e o principal "desporto" dos jornalistas da época dava pelo nome de "finta à Censura"; e que grandes craques havia nessa interessantíssima "modalidade desportiva", felizmente extinta, por desnecessidade, espero que para sempre!
Há quarenta anos, dia por dia, a sina de qualquer jovem adulto fisicamente apto (e mesmo de alguns nem sequer tão aptos como isso...) era ir perder quatro anos da sua vida (ou perder a sua vida no horizonte de quatro anos...) numa "comissão de serviço" na Guiné, em Angola ou Moçambique, combatendo não sabia quem, porquê, para quê e até quando. A não ser que optasse por se exilar e conseguisse fazê-lo ou que fosse filho de algum dos próceres do regime, que esses tinham garantido confortável cumprimento dos seus deveres militares na "Metrópole", isento de riscos e de sacrifícios, integrantes da casta dominante que eram.
Há quarenta anos, dia por dia, não se escolhiam os líderes políticos, nem se opinava sobre as políticas a seguir. Os detentores do poder detinham-no e pronto! As funções políticas eram exercidas por escolhidos em circuito interno e à generalidade da população cabia obedecer e não refilar.
Há quarenta nos, dia por dia, não se podia sair legalmente do país sem autorização "de quem de direito", os direitos cívicos e políticos existiam no papel (num célebre art. 8.º da Constituição de 1933), mas o mesmo papel elencava tantas exceções e restrições ao exercício desses direitos que, na prática, não existiam, ou só existiam se, quando e na medida em que o poder entendesse permitir que fossem existindo.
Há quarenta anos, dia por dia, eu era um jovem universitário vivendo num ambiente de medo, sem perspetivas, sem direitos realmente dignos desse nome, sem nada que não fosse vegetar e esperar, esperar, esperar que um dia, talvez, algo mudasse. Era um jovem comum, um entre milhões que não tinha atividade política relevante, ao fim de dezenas de anos de condicionamento de todo um povo para que não ousasse "meter-se em política".
Há quarenta anos, dia por dia, eu, como todo um povo, sentia-me asfixiado pela falta do ar da Liberdade.
Há quarenta anos, dia por dia, eu, como todo um povo, vivia no momento de maior negrume de uma noite que se prolongava por mais de outros quarenta anos.
Há quarenta anos, dia por dia, eu, como todo um povo, à exceção de umas centenas de heróis que estavam na ponta final da preparação do que iria finalmente mudar as coisas, não sabia ainda que o maior negrume da noite é a altura que precede imediatamente o momento do nascer da aurora - e que esse momento estava a menos de quarenta e oito horas de distância.
Hoje, relembrando como estávamos há quarenta anos, dia por dia, deixo aqui um simples, emocionado e sincero MUITO OBRIGADO àqueles heróis que, menos de quarenta e oito horas depois, me iam ensinar que também se chora de alegria - e que se chora de alegria precisamente quando essa alegria é enorme, imensa!
Hoje relembro como era este país há quarenta anos, dia por dia, porque muitos e muitos há que, felizmente, já não viveram esses tempos. Vivemos hoje tempos de dificuldade - mas sabemos que vamos, mais tarde ou mais certo, ultrapassá-la. Expressamos hoje a nossa insatisfação - mas podemos fazê-lo. Não concordamos com muito do que aqueles que nos dirigiram nos últimos anos decidiram ou fizeram - mas podemos, individual e coletivamente, criticar, decidir e executar o que se decidir fazer para se corrigir o que de errado se fez. Duvidamos das capacidades, da competência, dos motivos de alguns dos que nos dirigiram ao longo destes quarenta anos - mas sabemos que fomos nós, coletivamente, que lhes entregámos essa liderança e sabemos que podemos escolher quem colocamos a dirigir-nos, procurando não cometer os mesmos erros de avaliação do passado.
Hoje, digo e afirmo: por muito mal que as coisas andem, por muito descontentes que estejamos, lembrem-se todos, mas principalmente aqueles que tiveram a felicidade de não ter vivido aquele tempo, que estamos muitíssimo, incomparavelmente melhor do que estávamos há quarenta anos, dia por dia. Porque ao longo destes quarenta anos, tudo o que de certo e de errado (e muito de errado houve também, sem dúvida) se fez, foi, em última análise, feito ou permitido POR NÓS TODOS, enquanto povo LIVRE. Livre mesmo cometendo erros, mesmo fazendo ou permitindo disparates, mesmo escolhendo por vezes mal os seus líderes. Mas LIVRE de aprender, de melhorar, de corrigir, de opinar, de debater, de escolher os seus caminhos.
Que cada um faça as suas escolhas. Que todos debatamos os caminhos, Que, por vezes, nos zanguemos até uns com os outros, no calor das discussões sobre as escolhas a fazer. Mas que todos sempre prezemos e defendamos o essencial (que ninguém o duvide!) que este povo há quarenta anos, dia por dia, estava a menos de quarenta e oito horas de recuperar: a LIBERDADE e a possibilidade de, exercendo-a, viver a sua vida com dignidade!
Há quarenta anos, dia por dia, não sabia ainda que estava prestes a finalmente ter direito a uma vida digna de ser vivida. Com erros e acertos. Com coisas boas e coisas más. Mas com as escolhas feitas por mim. Eu e todos os meus compatriotas. Que nunca mais neste país se perca o direito de cada um fazer as suas escolhas. Que nunca mais este Povo volte a perder a sua LIBERDADE, alfa e ómega de tudo o que coletivamente vale a pena ser vivido!
Rui Bandeira