18 outubro 2011

Solidariedade na escassez



Não é novidade que os tempos que vivemos são duros, e que tempos mais duros se avizinham. Onde ontem se gastava displicentemente uma nota inteira, hoje despende-se parcimoniosamente apenas algumas moedas. Se a diminuição de rendimento disponível é uma contrariedade para uns, para outros é um verdadeiro problema - e para alguns, mesmo, um desastre. Hoje, mais do que nunca, é importante saber gerir, procurar alternativas, e estabelecer prioridades que salvaguardem o essencial.

Há que buscar formas mais eficientes de obter talvez não o mesmo, mas pelo menos algo que se lhe assemelhe. Não se pode ir jantar fora com uns amigos? Convide-se os amigos para a nossa casa. Não se consegue oferecer uma refeição? Ofereça-se um café e umas bolachas - ou então, que cada um traga qualquer coisinha, de preferência feita em casa... Não se consegue manter a conta do ginásio, da gasolina e da explicação do miúdo? Faça-se exercício na rua ou num parque, e salvaguarde-se o que é mais importante a longo prazo. Entre umas férias fora e um curso de valorização profissional, especialmente no contexto atual, mais vale deixar as férias para depois...

São tempos de se ser mais generoso, e de se dar não apenas aquilo que nos sobra, mas mesmo um pouco das comodidades a que nos fomos habituando. Não obstante, também na solidariedade se deve ser mais cuidadoso: dar, sim, mas de forma mais inteligente, mais direcionada, mais eficiente. É que as solicitações de auxílio, já antes inúmeras, cada vez aumentam mais, tornando ainda mais difícil escolher-se a quem ajudar - e saber bem aplicar a ajuda que se pretende prestar.

Com a escassez aumentam as dificuldades de sobrevivência, e as circunstâncias levam a que, tantas vezes, até os mais retos soçobrem ao peso da carência e se socorram de expedientes menos claros para chegar ao dia seguinte. Torna-se mais difícil distinguir o "ladrão" de supermercado que só queria dar de comer aos filhos que não comiam desde a véspera daquele que rouba um telemóvel ou uma roupa de marca... porventura para os vender e acudir, com a receita, às despesas da casa.

Por outro lado, multiplicam-se as mesinhas nos hipermercados e centros comerciais com a maior variedade de brindes a oferecer a quem apoie as mais diversas causas. Se algumas são geridas por voluntários, e 100% das receitas revertem para a causa anunciada, outras retiram uma parte - 10, 20 ou 30 por cento - para cobrir as despesas da campanha; noutros casos, recorre-se mesmo a empresas especializadas que, mediante uma parte da receita - que pode chegar a metade, dois terços ou mesmo mais - tratam de toda a logística, incluindo a publicitação do evento e a contratação do pessoal que faz os peditórios. Por fim, há quem venda um bem, anunciando oferecer uma pequena parte do preço a uma causa anunciada. Antes, quando se dava, sabia-se que se dava e quando; e quando se comprava, sabia-se ser uma compra. Hoje, a este respeito, o mundo está muito mais cinzento e menos "a preto e branco".

É conhecido o gesto de Warren Buffett - um dos homens mais ricos do mundo - quando se inteirou da forma como o dinheiro da Fundação Bill e Melinda Gates era gerido: passou a apoiar a Fundação, e deixou-lhe em testamento mais de 80% da sua fortuna. O dinheiro que metemos na mão de quem o pediu para si mesmo seria, talvez, mais bem gasto, menos desperdiçado e  mais eficazmente distribuído se fosse, antes, entregue a quem sabe geri-lo e o faz de facto em prol daqueles a quem se dedica. A moeda de dois euros pode servir para comprar uma sandes - ou quatro refeições num abrigo de crianças. Pelo preço de um pastel podemos providenciar meia dúzia de pães. Pelo custo de uma refeição de comida rápida podemos alimentar meia dúzia de pessoas numa "sopa dos pobres". E em vez de comprarmos um objeto (de que, ainda por cima, não precisamos) por 5 euros, dos quais se calhar apenas um ou dois euros, quando muito, reverterão para a causa que pretendemos apoiar, mais vale enviarmos os 5 euros diretamente para a instituição em causa.

E, já que estamos neste registo, atenção às instituições a quem fazemos doações. As que são sérias, precisam de dinheiro hoje, para a semana, daqui a um mês, ou daqui a um ano. Não nos pressionam no sentido de darmos "já". Por outro lado, as melhores testemunhas do bom funcionamento de uma instituição de apoio social são aqueles que nela se apoiam. Antes de dar, visite, pergunte, veja, fale com quem dá, com quem recebe, com quem gere. Depois de aferir a sua credibilidade, e a boa gestão que fazem do dinheiro que recebem, "apadrinhe" a instituição, e envie-lhe uma quantia fixa por mês. Melhor do que um donativo generoso mas pontual, é um compromisso de um apoio regular - mesmo que seja pouco, pelo menos é certo.

Depois de o fazer, já pode dizer, com verdade e tranquilidade, se lhe pedirem o seu donativo: "Já dei!"

Paulo M.

7 comentários:

Diogo disse...

Caro Paulo M.,

Concordo com tudo o que disse mas acho que ao post faltou a outra parte – na realidade, a parte maior.

Em primeiro lugar, devemos questionarmo-nos porque razão chegou isto a este ponto:

1 – Nunca na História da civilização dispusemos de tanta capacidade de produção como hoje. A tecnologia continua a evoluir de forma exponencial, e tecnologia significa capacidade de produção. Porque estamos, então, a regredir desta maneira economicamente?

2 –Como é que se compreendem as parcerias calamitosas parcerias público-privadas, onde os privados têm sempre garantido o seu rendimento, até à construção ininterrupta de elefantes brancos pornograficamente caros como por exemplo: o CCB, a Expô, o Euro 2004, a Casa de Música do Porto, os submarinos, as auto-estradas inúteis, os aeroportos às moscas, os TGVs, etc., etc., etc.?

3 – Porque razão, dos 78 mil milhões de euros que a Troika nos emprestou a juros agiotas (de quase 6%) para pagar uma dívida nebulosa que não sabemos de onde vem (...) nem a quem devemos, o Governo deu aos bancos 12 mil milhões de euros para a sua "recapitalização", e ainda lhes ofereceu mais 35 mil milhões de euros em garantias para que estes possam emitir dívida para se "financiarem". Bancos que continuam a ter lucros brutais todos os anos?

4 – Porque razão é que o Banco Central Europeu está proibido, pelos próprios estatutos, de emprestar dinheiro aos Estados, mas fá-lo a 1% aos Bancos Comerciais, que, por sua vez, o emprestam a juros usurários aos Estados Nacionais a 5, 6, 7 e mais por cento. Um negócio das arábias para o Poder Financeiro Internacional, de que os bancos comerciais portugueses não passam de meros balcões.

5 - Num artigo de Fernando Madrinha, no Jornal Expresso de 01-09-2007, este explicou destemidamente de que forma o Poder Financeiro controla os Estados e as populações:

a) Os poderes do Estado cedem cada vez mais espaço a poderes ocultos ou, em qualquer caso, não sujeitos ao escrutínio eleitoral.

b) A ponto de os próprios partidos políticos e os governos que deles emergem se tornarem suspeitos de agir, não em obediência ao interesse comum, mas a soldo de quem lhes paga as campanhas eleitorais.

c) Os bancos continuarão a engordar escandalosamente porque, afinal, todo o país, pessoas e empresas, trabalham para eles.


Porque razão os cidadãos assistem impávidos e serenos a todos os negócios profundamente ruinosos em que os “nossos governantes” se têm empenhado (com a justiça sempre a olhar para o lado)? Porque não pegam os cidadãos nesses “governantes” e os justiçam, enviando-os para a cadeia ou para o cemitério, consoante as responsabilidades que cada um deles teve neste estado de coisas?

Um abraço revoltado.

Nuno Raimundo disse...

Caro Diogo,
concordo com o que disse. E que quem seja culpado pela situação financeira a que o nosso país chegou seja punido de forma exemplar. Se for para cadeia tanto melhor. Agora para o cemitério?!
Não creio que existam tantos coveiros assim disponiveis...
abraço

Diogo disse...

Caro Nuno Raimundo,

Com o desemprego que para aí grassa e com a miséria que por aí reina, arranjavam-se facilmente milhões de coveiros para enterrar os milhares de COVEIROS que por aí pululam a desgraçar um país inteiro.

Paulo M. disse...

@Diogo:

Entendo a sua revolta, e subscrevo boa parte do que expõe. Contudo, o post de hoje não era sobre isso; era apenas sobre como pode cada um maximizar o resultado do auxílio que entenda prestar, e das ineficiências e desperdícios (para não lhes chamar outras coisas mais feias...) que começam a surgir associando operadores de mercado com instituições de solidariedade.

Creia que o entendo bem: como bom informático que é, quer identificar inequivocamente as causas do problema, estancar a hemorragia nem que à força de garrote, e partir daí para uma solução transversal e consistente.

Não se esqueça é daquela história do professor de socorrismo que acabara de ensinar o que era e para que servia o dito garrote:

"- Então, se houver uma hemorragia grave num pé, o que se faz?"
"- Ora, um garrote na perna."
"- Muito bem. E se houver amputação de uma mão?"
"- Um garrote no braço."
"- E se for uma ferida grave na cabeça?"
"- Um garrote no pescoço?..."

Os grandes remédios, por vezes, matam o doente...

Abraço,
Paulo M.

Diogo disse...

Paulo M.,

Sei que me desviei um pouco do assunto do post. Mas o assunto do post deriva directamente daquilo que descrevi.

Os grandes remédios que proponho não se destinam a matar o doente (este já está a morrer). Destinam-se a matar o vírus assassino.

Abraço
Diogo

JPA disse...

Paulo M.
Os que necessitam, têm que de algum modo ajudar os que mais necessitam. Como se costuma dizer "Divide-se o mal pelas aldeias".
Quando os que mais necessitam forem quase a totalidade, o que vamos fazer, ou o que vão fazer por nós?

Um abraço
JPA

Streetwarrior disse...

Vou partilha uma coisa aqui com todos nós que só o fiz ainda com a minha mulher.

Não tenho por costume dar esmolas ou trocos a pedintes com quem me cruzo.
No entanto, como circulo muito de metro, é muito comum encontrarmos pedintes no metro.
Existe um tipo de pedinte que não consigo recusar dar e sempre que posso, tiro sempre nem que seja 10 cêntimos e coloco na caixinha.
Esse Alguém é os Cegos...não me interessa se são Alcoólicos, Drogados, moribundos ,sem abrigo ou outra conotação qualquer.
O que eu acredito é que não há dinheiro no mundo que pague a Cruz que estes carregam.
Quem conhece Lisboa, conhece o ceguinho do metro que com a Vareta e uma colher, faz musica...e digamos, tem muito jeito para percursionista.
Seu nome é Nuno.
Um dia enquanto esperavamos o metro, perto um do outro, decidi-me a chama-lo, trocamos nomes e perguntei-lhe, porque razão e com tanto jeito para percursionista, o mesmo,não tentava seguir esse caminho.
Disse-me que já o fez, há tempos atrás...mas que fora enganado e aproveitaram-se dele.
trocamos palavras e cada um segui a sua vida.
Muitos se queixam que o mesmo é rude, mal educado e cheira mal.

Cada vez que nos cruzamos, contribuo sempre com uma moeda, por vezes pequena eu sei...mas a minha disponibilidade nem sempre é a maior.
A cada vez que lhe deposito a moeda, digo-lhe;
Boa Sorte Nuno.
Ao qual me retribui sempre...Obrigado Nuno.
Ainda hoje me reconhece pela voz, apesar de termos conversado 5 minutos, há muitos muitos meses atrás.

Por vezes, nem sempre só de uma moeda precisam os mais carenciados.
Muitas vezes, por razões que a própria razão desconhece, estão na situação que estão porque a vida é madrasta e perdem fé na sociedade e na humanidade, dai expressarem-se rudemente.
Uma palavra amiga, por vezes vale mais que 1000 moedas.

Bem hajam
Nuno