03 agosto 2011

Maçonaria e Poder (III)



No tempo das Lojas Operativas, a relação entre os construtores em pedra e o Poder era de simbiótica subordinação. Os construtores em pedra detinham o exclusivo conhecimento - ou quase - de técnicas de construção baseadas em princípios geométricos há muito descobertos, mas perdidos, na sua aplicação, no obscurantismo da Idade Média. A sua associação em núcleos profissionais, Lojas, que asseguravam a formação e treino de novos elementos e a transmissão dos conhecimentos e técnicas herdados de gerações e gerações de profissionais, buscava também garantir a manutenção do conhecimento dessas técnicas e conhecimentos no restrito círculo de profissionais.

Esse desiderato, porém, só era possível de atingir e manter, com o beneplácito dos senhores detentores do Poder - a nobreza -, que assegurava as condições e práticas legais que garantissem o quase monopólio das Lojas operativas nas grandes construções. Em troca, os construtores tinham de bem servir os senhores que lhes encomendavam os trabalhos, executando-os segundo a sua vontade, utilizando as suas técnicas e conhecimento em benefício de quem os contratava.

Também os detentores do Poder religioso, particularmente os bispos - católicos ou Reformistas - influenciavam claramente os maçons operativos. A construção de uma catedral durava e, mesmo, ultrapassava o tempo de vida útil de um oficial construtor. Mas só bons cristãos eram admitidos a trabalhar na construção desses templos. E não só. Também os construtores tinham de se conformar e adotar as normas morais e estilos de vida impostos pelos detentores do Poder religioso. Ou não trabalhavam ali...

Durante séculos, subsistiu esta relação simbiótica, mas subordinada, entre as Lojas operativas e os detentores do Poder - político, económico e religioso.

Mas os tempos iam, primeiro lentamente, depois cada vez mais aceleradamente, mudando. O obscurantismo da Idade Média começou a ser rompido pelo Renascimento, regressando o interesse pelos conhecimentos que a Humanidade obtivera já na Antiguidade. A cultura da Antiguidade Clássica voltou a ser estudada. E muito se descobriu que, mesmo já se sabendo, afinal não se sabia durante séculos e séculos. Os postulados e teoremas da Geometria foram uns dos aspetos redescobertos. E, da redescoberta, em termos públicos e não apenas reservado a uns quantos, poucos, cultores de conhecimentos oralmente transmitidos, necessariamente que resultou a divulgação geral das técnicas de construção que anteriormente só os maçons operativos detinham e guardavam para si.

A Imprensa foi descoberta. Os morosos e caros livros copiados à mão foram, a pouco e pouco, dando lugar a livros impressos, mais baratos, abundantes e dedicados às mais variadas matérias. Conhecimentos e técnicas incluídos...

O que dantes era reservado e monopólio, ou quase, das Lojas passou, num espaço de tempo relativamente curto, a ser habilidade acessível a muitos mais. Era já possível aprender-se as técnicas da construção sem ser no seio de uma Loja operativa. Era já possível trabalhar-se na construção fora da tutela de uma Loja operativa. Surgiam e espalhavam-se os que, nas Ilhas Britânicas, eram depreciativamente denominados pelos maçons operativos de "cowans".

As Lojas operativas lentamente declinavam. A concorrência de profissionais a elas alheios diminuía-lhes o trabalho e os rendimentos. Os construtores em pedra integrados em Lojas operativas deixavam de ser os únicos operadores no mercado. Para procurar manter a sua supremacia, ou simplesmente a sua presença no mercado, dependiam cada vez mais dos senhores terratenentes e das suas encomendas. A relação entre os construtores agrupados em Lojas operativas e os detentores do Poder deixou de ser simbiótica, passou, claramente, a ser subordinada e, com o prosseguir do declínio - os ventos da História não se mudam pela mera vontade de grupos ou indivíduos... - , chegou mesmo a ultrapassar o umbral da subserviência.

As Lojas operativas declinaram economicamente, feridas pela perda da sua exclusividade no mercado. Mas, centenárias, mantendo tradições próprias e um espírito de união resultante de gerações de transmissão de conhecimentos e de vivência em comum, não deixavam de ser atrativamente misteriosas para quem estava de fora (há coisas que, pelos vistos, não mudam...). Os senhores podiam escolher dar os seus trabalhos de construção a Mestres de Lojas operativas ou a "cowans". Mas continuavam a interrogar-se que conhecimentos exclusivos seriam esses que os operativos reservavam para si mesmos. Se outros sabiam também construir, que fazia os operativos manterem-se em Lojas? Que algo mais, ou algo de diferente, havia?

Durante séculos,o que havia no interior das Lojas operativas era só para quem nelas estava. Mas os tempos foram mudando e eram cada vez mais difíceis. Primeiro um senhor, depois outro, logo mais uns quantos, começaram a pôr condições para dar trabalho aos maçons das Lojas e para os continuar a proteger: queriam ter acesso aos conhecimentos próprios deles. Ou então, acabar-se-ia a proteção e havia agora mais quem quisesse trabalhar na construção...

Pouco mais havia a salvar do que a dignidade. Se os senhores exigiam saber o que eles sabiam, não havia já meios de o impedir. Mas podiam e deviam manter os seus compromissos de gerações e não revelar fora de Loja o que à Loja era reservado. A solução foi evidente: admitiram-se os senhores nas Lojas!

Entrou-se assim na transição - mais rápida do que seria de supor - entre a estrita Maçonaria Operativa e o que viria a ser a Maçonaria Especulativa.

Os senhores estavam já nas Lojas. Mais cultos, mais sofisticados, rapidamente se terão apercebido de que os segredos das técnicas de construção não eram já nada de especial nem de domínio exclusivo. Mas toda uma Tradição, toda uma Ética, todo um particular espírito de convivência estratificara ao longo de gerações e de séculos nas Lojas operativas. Esse era o verdadeiro acervo, próprio e único, que, insuspeitadamente, guardavam as Lojas operativas. Afinal, não eram já os segredos das técnicas de construção que interessavam - era tudo o resto!

Os senhores atraíram outros senhores, intelectuais, burgueses, para esse até aí oculto mundo, de antigas tradições, embalsamadas ideias prontas para serem desenvolvidas, notáveis formas de relacionamento a serem prosseguidos. Porventura em menos de um século, os operativos, engolidos pelo progresso, viram as suas Lojas tomadas por dentro e a Maçonaria operativa transformar-se na Maçonaria Especulativa.

O primeiro embate entre a Maçonaria e o Poder começou por ser simbiótico, passou a dependente e subordinado, raiou mesmo a subserviência, transpôs os limites da capitulação... para levar a um inesperado rumo: o Poder conquistou, pacificamente, a Maçonaria por dentro, mas, a partir desse momento, como tantas vezes na História sucedeu com fortes conquistadores, conquistado o Poder interno, podendo-se pôr e dispor... foi seduzido (afinal conquistado) pelas ideias que encontrou.

No primeiro embate entre a Maçonaria e o Poder, os homens do Poder ganharam... mas foram as ideias da Maçonaria que convenceram os vencedores!

Assim mudou a Maçonaria e mais um elemento de mudança se juntou à evolução dos poderosos e do Poder.

Era tempo do Iluminismo alumiar o caminho!

Rui Bandeira

5 comentários:

Diogo disse...

«Os senhores estavam já nas Lojas. Mais cultos, mais sofisticados, rapidamente se terão apercebido de que os segredos das técnicas de construção não eram já nada de especial nem de domínio exclusivo. Mas toda uma Tradição, toda uma Ética, todo um particular espírito de convivência estratificara ao longo de gerações e de séculos nas Lojas operativas»

«o Poder... foi seduzido (afinal conquistado) pelas ideias que encontrou. No primeiro embate entre a Maçonaria e o Poder, os homens do Poder ganharam... mas foram as ideias da Maçonaria que convenceram os vencedores!»


Caro Bandeira, que tradição???, que ética???, que espírito de convivência??? de pedreiros, pode ter atraído tanto os homens mais poderosos, cultos e sofisticados do seu tempo? Acha que isso faz algum sentido?

Abraço

Rui Bandeira disse...

@ Diogo:

Acho.

E estou cero que o Diogo também achará se despir a sua mente do meio urbano pós-modernista do século XXI em que ambos vivemos e beneficiámos da educação e das condições culturais massificadas possibilitadas pelo desenvolvimento da segunda metade do século XX e procurara entender que falo da sociedade britânica rural dos séculos XVI (em cujo primeiro ano se descobriu o Brasil e Per vaz de Caminha escreveu a sua carta célebre, onde manifestava o seu espanto por ver os indígenas nus, com "suas vergonhas" à mostra) e XVII (século em que os autos-de fé da Inquisição eram frequentes...).

Nessa época, ser culto era ter a capacidade de ir além da superstição; ser importante socialmente não era necessariamente sinónimo de ser instruído; e os "pedreiros" de então eram algo mais do que os pedreiros de hoje: eram simultaneamente construtores, arquitetos, artífices, decoradores, canteiros e escultores de imagens.

Não veja o que descrevi com olhos do século XXI - ou realmente nada verá!

Abraço.

Jocelino Neto disse...

M.´. Rui Bandeira,

Como bem explicitou nos textos introdutórios a abordagem utilizada para "construir" esta série é a de se fazer uso dos meios mais simples que permitam desenvolver uma didática leve possibilitando o entendimento de um público generalizado.

Compreendo que para isto contextualize no período medievo este "primeiro tempo" maçônico. Mas a curiosidade não me deixa tranquilo e continuamente ressoa: e Nimrod? Imhotep? Salomão? Não seriam estes bons exemplos da relação maçonaria e poder visto que possuem ambivalência dentro destes marcos? Ou deveriam ser considerados apenas dentro do âmbito simbólico?

Abraços fraternos.

À Glória do Grande Arquiteto!

Diogo disse...

«Mas podiam e deviam manter os seus compromissos de gerações e não revelar fora de Loja o que à Loja era reservado. A solução foi evidente: admitiram-se os senhores nas Lojas!»


Caro Bandeira,

Mas se todo o conhecimento das Lojas era já conhecido cá fora, e de forma muito mais profunda – por matemáticos, geómetras, físicos, químicos, arquitectos, etc. Que tinham os maçons do Iluminismo para oferecer? Tradição? Ética? Espírito de convivência?

O que é que os senhores iam para lá fazer quando tinham à mão os maiores cientistas dos seu tempo?

A sua explicação não me convence.

Abraço

Rui Bandeira disse...

@ Jocelino Neto:

Mantenho-me, nesta série de textos, dentro dos limites históricos.

@ Diogo:

Tinham então para oferecer o mesmo que os maçons têm hoje. nem mais, nem menos.

Os seus convencimentos, ou falta deles, são questões que apenas a si dizem respeito.