Elegia a um homem bom
Chegámos, a minha mulher e eu, ao hospital ao fim da tarde. Íamos visitar o pai de uma amiga que sabíamos estar gravemente doente. Encontrámo-lo rodeado pela família - a mulher e as duas filhas. Um olhar atento e alguns momentos chegaram-me para perceber que o seu estado não era apenas grave. A agonia começara. Não obstante, o homem doente estava lúcido. Fraco, muito fraco, mas lúcido. Não sei se consciente de que a travessia do umbral da eternidade estava próxima, mas lúcido.
Escondi o meu pensamento, proferi as palavras de conforto e encorajamento que devem ser levadas por quem visita quem está doente - esperando que às mesmas conseguisse conferir um pouco de credibilidade. Como é meu hábito (defesa?) nestas situações, procurei orientar a conversa para temas ligeiros e lançar um par de larachas que, por momentos embora, desanuviassem o ambiente. Senti-me grato por ter conseguido vislumbrar um par de sorrisos no homem doente. Pensei que, quando chegasse a altura de ser eu a fazer a mesma viagem que adivinhava que aquele homem não demoraria muito a fazer, também gostaria que alguém conseguisse fazer-me sorrir - a tal viagem é certa para todos nós, já que todos temos que a fazer, que se faça bem-disposto...
Da família que rodeava o homem, uma das filhas já se apercebera da iminência da partida. A outra guardava ainda uma réstia de esperança que a técnica médica ainda pudesse adiar o momento que a irmã já sentia chegando. A mãe de ambas, companheira de toda uma vida, incansavelmente acompanhava o seu marido, refugiando-se em pequenas coisas, não querendo pensar nem encarar o que temia sucedesse.
Uma hora depois, deixámos o homem doente. Outras solicitações de uma vida sempre atarefada nos aguardavam.
Na manhã seguinte, a notícia! O homem bom que tínhamos visitado, partira para o além desconhecido durante essa noite. A minha mulher soltou a sua emoção. Eu pensei - mas reservei para mim esse pensamento - que fora uma felicidade que a agonia tivesse sido breve. Vim a saber depois que a viagem fora feita durante o sono - e de novo dei graças por tal. A minha mulher, imersa na sua emoção, perguntava, insatisfeita, porque eram os bons que partiam quando tantos maus ficavam por aqui atormentando os seus semelhantes. Perguntei-lhe se sabia ela que se estava melhor aqui do que para onde se seguia...
Gostaríamos que os bons estivessem connosco sempre mais. Lamentamos a sua partida. Principalmente a família experimenta a orfandade da separação, o desgosto do desaparecimento. E tem de fazer o luto pela sua perda.
Quem não é crente, não tem, nestas ocasiões, arrimo para o sentimento de perda. Já quem crê em algo mais do que a materialidade que nos rodeia, sem deixar de sofrer o choque, tem a possibilidade de se consolar com a noção de que o fim deste caminho não é o fim do caminho, que, para além do que vemos e sentimos e sabemos, mais e diferente caminho existe para caminhar, não sabemos de que forma, como - mas existe.
O maçom confronta-se com a ideia do seu desaparecimento físico e aprende a não o temer, a entender que o momento inescapável é apenas uma passagem - um fim, mas também um novo princípio.
Um homem bom terminou a sua caminhada entre nós. Como todos os que gostam da companhia de quem é bom, lamento que essa companhia tenha cessado. Mas creio que a razão porque a sua presença física cessou foi apenas porque a sua missão aqui foi cumprida. Nova missão, novo desafio, nova jornada, encetou - como todos nós havemos de encetar. Foi cedo de mais? Poderia a Providência ter-lhe dado, a ele e aos seus e a todos nós um pouco mais de tempo para apreciarmos a nossa mútua companhia? É humano que o desejemos. Mas a hora foi esta porque a sua missão aqui fora ultimada, cumprida, realizada - e com êxito! Já o homem bom era, porventura, mais necessário onde seu espírito agora prossegue a sua caminhada.
Os bons vão primeiro? Pudera! É por serem bons que melhor e mais depressa cumprem a sua missão aqui!
O solstício de inverno - que hoje decorre - lembra-nos que a escuridão, o frio, a noite longa e o dia breve, o fim, afinal são um recomeço e, a partir do ponto de transição, a escuridão pouco a pouco de novo cede o lugar à luz, o frio desaparece, a noite se encurta e o dia se alonga, o fim é afinal um novo princípio.
É disto que nos devemos lembrar sempre que vemos partir um homem bom.
(Homenagem a um homem bom que partiu).
Rui Bandeira
Escondi o meu pensamento, proferi as palavras de conforto e encorajamento que devem ser levadas por quem visita quem está doente - esperando que às mesmas conseguisse conferir um pouco de credibilidade. Como é meu hábito (defesa?) nestas situações, procurei orientar a conversa para temas ligeiros e lançar um par de larachas que, por momentos embora, desanuviassem o ambiente. Senti-me grato por ter conseguido vislumbrar um par de sorrisos no homem doente. Pensei que, quando chegasse a altura de ser eu a fazer a mesma viagem que adivinhava que aquele homem não demoraria muito a fazer, também gostaria que alguém conseguisse fazer-me sorrir - a tal viagem é certa para todos nós, já que todos temos que a fazer, que se faça bem-disposto...
Da família que rodeava o homem, uma das filhas já se apercebera da iminência da partida. A outra guardava ainda uma réstia de esperança que a técnica médica ainda pudesse adiar o momento que a irmã já sentia chegando. A mãe de ambas, companheira de toda uma vida, incansavelmente acompanhava o seu marido, refugiando-se em pequenas coisas, não querendo pensar nem encarar o que temia sucedesse.
Uma hora depois, deixámos o homem doente. Outras solicitações de uma vida sempre atarefada nos aguardavam.
Na manhã seguinte, a notícia! O homem bom que tínhamos visitado, partira para o além desconhecido durante essa noite. A minha mulher soltou a sua emoção. Eu pensei - mas reservei para mim esse pensamento - que fora uma felicidade que a agonia tivesse sido breve. Vim a saber depois que a viagem fora feita durante o sono - e de novo dei graças por tal. A minha mulher, imersa na sua emoção, perguntava, insatisfeita, porque eram os bons que partiam quando tantos maus ficavam por aqui atormentando os seus semelhantes. Perguntei-lhe se sabia ela que se estava melhor aqui do que para onde se seguia...
Gostaríamos que os bons estivessem connosco sempre mais. Lamentamos a sua partida. Principalmente a família experimenta a orfandade da separação, o desgosto do desaparecimento. E tem de fazer o luto pela sua perda.
Quem não é crente, não tem, nestas ocasiões, arrimo para o sentimento de perda. Já quem crê em algo mais do que a materialidade que nos rodeia, sem deixar de sofrer o choque, tem a possibilidade de se consolar com a noção de que o fim deste caminho não é o fim do caminho, que, para além do que vemos e sentimos e sabemos, mais e diferente caminho existe para caminhar, não sabemos de que forma, como - mas existe.
O maçom confronta-se com a ideia do seu desaparecimento físico e aprende a não o temer, a entender que o momento inescapável é apenas uma passagem - um fim, mas também um novo princípio.
Um homem bom terminou a sua caminhada entre nós. Como todos os que gostam da companhia de quem é bom, lamento que essa companhia tenha cessado. Mas creio que a razão porque a sua presença física cessou foi apenas porque a sua missão aqui foi cumprida. Nova missão, novo desafio, nova jornada, encetou - como todos nós havemos de encetar. Foi cedo de mais? Poderia a Providência ter-lhe dado, a ele e aos seus e a todos nós um pouco mais de tempo para apreciarmos a nossa mútua companhia? É humano que o desejemos. Mas a hora foi esta porque a sua missão aqui fora ultimada, cumprida, realizada - e com êxito! Já o homem bom era, porventura, mais necessário onde seu espírito agora prossegue a sua caminhada.
Os bons vão primeiro? Pudera! É por serem bons que melhor e mais depressa cumprem a sua missão aqui!
O solstício de inverno - que hoje decorre - lembra-nos que a escuridão, o frio, a noite longa e o dia breve, o fim, afinal são um recomeço e, a partir do ponto de transição, a escuridão pouco a pouco de novo cede o lugar à luz, o frio desaparece, a noite se encurta e o dia se alonga, o fim é afinal um novo princípio.
É disto que nos devemos lembrar sempre que vemos partir um homem bom.
(Homenagem a um homem bom que partiu).
Rui Bandeira
12 comentários:
Sensível, este texto. São os últimos minutos que nos mostram (independentemente de crenças) o quão valiosa é a boa conduta. São tais experências que nos mostram que devemos viver em união, independentemente de qualquer diferença. Somos todos irmãos, filhos de um Maravilhoso Arquiteto. Que o homem bom se manifeste em todos nós em todas as áreas da nossa Vida.
Belíssimo texto.
Sem sombra para dúvida, algo que nos atormenta, e nos deixa cépticos da razão de ser da partida, mas o que me incomoda é o sofrimento muitas vezes inerente, e que se prolonga velhacamente como que para nos martirizar, ao próprio e aos próximos...nem tudo são cardos, nem tudo são rosas.
"Os bons vão primeiro? Pudera! É por serem bons que melhor e mais depressa cumprem a sua missão aqui!"
Caro.`.I
Retire esta frase do texto por favor!
Pode magoar muita gente sem querer.
Sem surpresa da parte do Rui, porque o Rui é o Rui que eu há muito conheço e, por isso sei que os textos do Rui são muito profundos e nos acalentam , são os textos do Rui, sem surpresa...
Boas Rui...
"Os bons vão primeiro? Pudera! É por serem bons que melhor e mais depressa cumprem a sua missão aqui!"
Concordo totalmente e encaro isso como uma forma de encarar a Morte.
Os bons são chamados mais depressa para Deus pois já fizeram o seu percurso pela Terra, os restantes, estão a percorrer esse trilho de aperfeiçoamento, corrigindo os seus erros.
Ou então "sofrendo" por cá, o "mal" que vão fazendo aos outros.
Acredito que Deus ( seja ele qual for), não se quer ter ao seu redore gente má, logo escolhe para junto de si, os "melhores".
:)
abr...prof...
Obrigada Rui!
Um beijinho muito grande e obrigada por teres estado lá. Antes... e depois!
Ahhh... e olha que a outra filha também percebeu que o fim estava próximo (não tão próximo é verdade...) mas também aprendeu a NUNCA entregar os pontos antes da "batalha" terminada! ;)
@ Alexandre:
Creio que interpretou mal a frase. A Madre Teresa de Calcutá deixou-nos aos 87 anos e o infame pistoleiro Billy the Kid morreu com 20 anos. E obviamente que não pretendo dizer que este era bom e aquela má!!!
A frase não respeit ao tempo cronológico, antes ao tempo psicológico.
Psicologicamente, as pessoas tendem a entender que "os bons bvão primeiro que os maus", porque sentem mais agudamente a falta dos bons - enquanto tendem a considerar que a hora dos maus já devia ter chegado antes...
Um abraço.
@ Patrícia:
Minha linda, estamos de acordo: a "outra filha" não entrega os pontos antes da batalha terminada - porque tinha ainda uma réstea de esperança.
Um beijo.
Excelente texto Ilustre Rui...
Além de nos fazer parar para pensar um pouco, é uma das passagens mais belas que li este ano...
Uma óptima quadra natalícia
Os bons nunca partem I .`.
A certo dia, um Juiz e um filosofo discutam em amena conversa a Pena de Morte.
O Juiz, imiscuido nas acções do mundo material dizia;
-Eu defendo a pena de morte, logo de seguida proferindo as razões que o levavam a pensar assim, fruto do julgamento que por si fazia das acções levadas a cabo pelos criminosos, dirigindo-se ao filosofo.
Não achas?
Respondendo o filosofo mais dado ao pensamento do que as acções.
Não sei se o posso condenar á morte.
Respondendo logo o Juiz.
Então porquê?
Filosofo;
Porque não sei o que é a morte, logo, não sei se o estarei a penalizar ou a premiar por algo que não o deveria ser.
Logo...talvez opte por não aceitar a Pena de Morte como suposto castigo.
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