22 dezembro 2010

Elegia a um homem bom


Chegámos, a minha mulher e eu, ao hospital ao fim da tarde. Íamos visitar o pai de uma amiga que sabíamos estar gravemente doente. Encontrámo-lo rodeado pela família - a mulher e as duas filhas. Um olhar atento e alguns momentos chegaram-me para perceber que o seu estado não era apenas grave. A agonia começara. Não obstante, o homem doente estava lúcido. Fraco, muito fraco, mas lúcido. Não sei se consciente de que a travessia do umbral da eternidade estava próxima, mas lúcido.

Escondi o meu pensamento, proferi as palavras de conforto e encorajamento que devem ser levadas por quem visita quem está doente - esperando que às mesmas conseguisse conferir um pouco de credibilidade. Como é meu hábito (defesa?) nestas situações, procurei orientar a conversa para temas ligeiros e lançar um par de larachas que, por momentos embora, desanuviassem o ambiente. Senti-me grato por ter conseguido vislumbrar um par de sorrisos no homem doente. Pensei que, quando chegasse a altura de ser eu a fazer a mesma viagem que adivinhava que aquele homem não demoraria muito a fazer, também gostaria que alguém conseguisse fazer-me sorrir - a tal viagem é certa para todos nós, já que todos temos que a fazer, que se faça bem-disposto...

Da família que rodeava o homem, uma das filhas já se apercebera da iminência da partida. A outra guardava ainda uma réstia de esperança que a técnica médica ainda pudesse adiar o momento que a irmã já sentia chegando. A mãe de ambas, companheira de toda uma vida, incansavelmente acompanhava o seu marido, refugiando-se em pequenas coisas, não querendo pensar nem encarar o que temia sucedesse.

Uma hora depois, deixámos o homem doente. Outras solicitações de uma vida sempre atarefada nos aguardavam.

Na manhã seguinte, a notícia! O homem bom que tínhamos visitado, partira para o além desconhecido durante essa noite. A minha mulher soltou a sua emoção. Eu pensei - mas reservei para mim esse pensamento - que fora uma felicidade que a agonia tivesse sido breve. Vim a saber depois que a viagem fora feita durante o sono - e de novo dei graças por tal. A minha mulher, imersa na sua emoção, perguntava, insatisfeita, porque eram os bons que partiam quando tantos maus ficavam por aqui atormentando os seus semelhantes. Perguntei-lhe se sabia ela que se estava melhor aqui do que para onde se seguia...

Gostaríamos que os bons estivessem connosco sempre mais. Lamentamos a sua partida. Principalmente a família experimenta a orfandade da separação, o desgosto do desaparecimento. E tem de fazer o luto pela sua perda.

Quem não é crente, não tem, nestas ocasiões, arrimo para o sentimento de perda. Já quem crê em algo mais do que a materialidade que nos rodeia, sem deixar de sofrer o choque, tem a possibilidade de se consolar com a noção de que o fim deste caminho não é o fim do caminho, que, para além do que vemos e sentimos e sabemos, mais e diferente caminho existe para caminhar, não sabemos de que forma, como - mas existe.

O maçom confronta-se com a ideia do seu desaparecimento físico e aprende a não o temer, a entender que o momento inescapável é apenas uma passagem - um fim, mas também um novo princípio.

Um homem bom terminou a sua caminhada entre nós. Como todos os que gostam da companhia de quem é bom, lamento que essa companhia tenha cessado. Mas creio que a razão porque a sua presença física cessou foi apenas porque a sua missão aqui foi cumprida. Nova missão, novo desafio, nova jornada, encetou - como todos nós havemos de encetar. Foi cedo de mais? Poderia a Providência ter-lhe dado, a ele e aos seus e a todos nós um pouco mais de tempo para apreciarmos a nossa mútua companhia? É humano que o desejemos. Mas a hora foi esta porque a sua missão aqui fora ultimada, cumprida, realizada - e com êxito! Já o homem bom era, porventura, mais necessário onde seu espírito agora prossegue a sua caminhada.

Os bons vão primeiro? Pudera! É por serem bons que melhor e mais depressa cumprem a sua missão aqui!

O solstício de inverno - que hoje decorre - lembra-nos que a escuridão, o frio, a noite longa e o dia breve, o fim, afinal são um recomeço e, a partir do ponto de transição, a escuridão pouco a pouco de novo cede o lugar à luz, o frio desaparece, a noite se encurta e o dia se alonga, o fim é afinal um novo princípio.

É disto que nos devemos lembrar sempre que vemos partir um homem bom.

(Homenagem a um homem bom que partiu).

Rui Bandeira

12 comentários:

Canal Daniel Simões disse...

Sensível, este texto. São os últimos minutos que nos mostram (independentemente de crenças) o quão valiosa é a boa conduta. São tais experências que nos mostram que devemos viver em união, independentemente de qualquer diferença. Somos todos irmãos, filhos de um Maravilhoso Arquiteto. Que o homem bom se manifeste em todos nós em todas as áreas da nossa Vida.

Antero Neto disse...

Belíssimo texto.

Marco da Raquel disse...

Sem sombra para dúvida, algo que nos atormenta, e nos deixa cépticos da razão de ser da partida, mas o que me incomoda é o sofrimento muitas vezes inerente, e que se prolonga velhacamente como que para nos martirizar, ao próprio e aos próximos...nem tudo são cardos, nem tudo são rosas.

Alexandre disse...

"Os bons vão primeiro? Pudera! É por serem bons que melhor e mais depressa cumprem a sua missão aqui!"
Caro.`.I
Retire esta frase do texto por favor!
Pode magoar muita gente sem querer.

Guifões Super Stars disse...

Sem surpresa da parte do Rui, porque o Rui é o Rui que eu há muito conheço e, por isso sei que os textos do Rui são muito profundos e nos acalentam , são os textos do Rui, sem surpresa...

Nuno Raimundo disse...

Boas Rui...

"Os bons vão primeiro? Pudera! É por serem bons que melhor e mais depressa cumprem a sua missão aqui!"
Concordo totalmente e encaro isso como uma forma de encarar a Morte.
Os bons são chamados mais depressa para Deus pois já fizeram o seu percurso pela Terra, os restantes, estão a percorrer esse trilho de aperfeiçoamento, corrigindo os seus erros.
Ou então "sofrendo" por cá, o "mal" que vão fazendo aos outros.

Acredito que Deus ( seja ele qual for), não se quer ter ao seu redore gente má, logo escolhe para junto de si, os "melhores".
:)

abr...prof...

Unknown disse...

Obrigada Rui!

Um beijinho muito grande e obrigada por teres estado lá. Antes... e depois!

Ahhh... e olha que a outra filha também percebeu que o fim estava próximo (não tão próximo é verdade...) mas também aprendeu a NUNCA entregar os pontos antes da "batalha" terminada! ;)

Rui Bandeira disse...

@ Alexandre:

Creio que interpretou mal a frase. A Madre Teresa de Calcutá deixou-nos aos 87 anos e o infame pistoleiro Billy the Kid morreu com 20 anos. E obviamente que não pretendo dizer que este era bom e aquela má!!!

A frase não respeit ao tempo cronológico, antes ao tempo psicológico.

Psicologicamente, as pessoas tendem a entender que "os bons bvão primeiro que os maus", porque sentem mais agudamente a falta dos bons - enquanto tendem a considerar que a hora dos maus já devia ter chegado antes...

Um abraço.

Rui Bandeira disse...

@ Patrícia:

Minha linda, estamos de acordo: a "outra filha" não entrega os pontos antes da batalha terminada - porque tinha ainda uma réstea de esperança.

Um beijo.

L S B disse...

Excelente texto Ilustre Rui...
Além de nos fazer parar para pensar um pouco, é uma das passagens mais belas que li este ano...
Uma óptima quadra natalícia

Alexandre disse...

Os bons nunca partem I .`.

Streetwarrior disse...

A certo dia, um Juiz e um filosofo discutam em amena conversa a Pena de Morte.
O Juiz, imiscuido nas acções do mundo material dizia;
-Eu defendo a pena de morte, logo de seguida proferindo as razões que o levavam a pensar assim, fruto do julgamento que por si fazia das acções levadas a cabo pelos criminosos, dirigindo-se ao filosofo.
Não achas?
Respondendo o filosofo mais dado ao pensamento do que as acções.
Não sei se o posso condenar á morte.
Respondendo logo o Juiz.
Então porquê?
Filosofo;
Porque não sei o que é a morte, logo, não sei se o estarei a penalizar ou a premiar por algo que não o deveria ser.
Logo...talvez opte por não aceitar a Pena de Morte como suposto castigo.