01 novembro 2010

A liberdade na interpretação da simbologia maçónica


Magritte pintou, entre 1928 e 1929, um célebre quadro em que representa um cachimbo sob o qual escreveu "Ceci n'est pas une pipe." ou, em português,  "Isto não é um cachimbo". De facto, a pintura não é um cachimbo, mas a imagem de um cachimbo - e transmitir essa ideia era o intuito de Magritte. "O famoso cachimbo", viria ele a confessar, "Quanto me censuraram por causa dele! E porém, alguém poderia encher o meu cachimbo? Não, pois é só uma representação, não é verdade? Por isso, tivesse eu escrito no meu quadro «Isto é um cachimbo», estaria a mentir."

Um símbolo - do grego σύμβολον (sýmbolon) - pode ser um objeto, uma imagem, uma palavra, um som ou uma marca particular que represente algo diferente por associação, semelhança ou conceção. Deste modo, pode substituir-se um conceito complexo por um símbolo simples. O significante é evidente - constitui o símbolo em si mesmo; contudo, o seu significado pode ser obtuso, ou mesmo variável com o tempo, pois reside naquele que o descodifica, e cada um acaba por fazê-lo de forma pelo menos ligeiramente diferente dos demais. Por isto, é quase certo que, uma vez estabelecidos, os símbolos "adquiram vida própria", alterando-se o seu significado com o passar do tempo. Por exemplo, a Estrela de David é um símbolo que começando por constituir - de acordo com a tradição judaica - uma marca aposta nos escudos com que os guerreiros do rei David se protegiam, adquiriu, a partir de certa altura, um caráter místico, passando a ser gravado como amuleto ou proteção, e acabando por ser adotada como símbolo do Estado de Israel.

Não pode falar-se de simbolismo maçónico sem citar a velha definição de maçonaria: "É um sistema de moral velado por alegorias e ilustrado por símbolos". De facto, a maioria dos símbolos usados em maçonaria é evocativa dos princípios morais com que a maçonaria se identifica. O importante são os princípios; os símbolos são apenas os meios usados para que não os esqueçamos. E, uma vez que cada um recorda de forma diferente, e interioriza o princípio de forma única e pessoal - pois que único, individual e irrepetível é cada indivíduo e a sua experiência de vida - seria um exercício de futilidade tentar-se exigir que o significado dos símbolos fosse sempre o mesmo para todos. De facto, nem tal seria proveitoso.

Uma das frequentes utilizações dos símbolos é como oportunidade e meio de auto-análise - e também por isso se diz da maçonaria ser especulativa - que permita a cada um determinar as suas próprias "asperezas" no sentido de as "polir". Sendo as "rugosidades do espírito" diferentes de pessoa para pessoa - apesar da universalidade dos princípios, que podem aplicar-se a todos - cada um vê, sente e aplica o princípio a si mesmo de forma distinta da de todos os demais. Cada um pode, então, especulando, dar ao símbolo os significados que entenda, pois o símbolo é meramente instrumental - não tem nada de sagrado ou de "conspurcável" com este processo - para além de que atribuir novos significados a um símbolo não implica a perda dos significados mais convencionais, pelo que o diálogo sobre os mesmos continua a ser possível.

Dou-vos um exemplo que se passou comigo. Diz-se das lojas maçónicas serem "Lojas de S. João". Mas de qual? A resposta convencional é dizer-se que de dois: de João Batista - conhecido pela sua retidão e verticalidade, implacável consigo mesmo e com os outros, a ponto de fazer com que lhe cortassem a cabeça - e de João Evangelista - apóstolo do amor, cultor da fraternidade, e promotor da tolerância. Ambos se celebram por volta dos solstícios - João Evangelista no de Verão, João Batista no de Inverno. Isto são as premissas. Os princípios a transmitir são os que foram expostos: o da retidão e verticalidade de espírito por um lado, e o do amor fraterno pelo outro. Estes significados são mais ou menos universais na maçonaria. Há quem refira, ainda, que os raios de sol no solstício de Verão estão no seu ponto mais próximo da vertical, e no solstício de Inverno no seu ponto mais próximo da horizontal. Partindo desta pista, ávido de explorar estes símbolos e de fazer boa figura ao apresentar a respetiva prancha, o aprendiz que eu era então não se ficou por aqui; procurou especular mais ainda. Notou que João Batista - o da Verticalidade - era celebrado por entre uma Luz predominantemente horizontal, e que João Evangelista - o do amor fraterno entre pares - o era quando a Luz Solar era mais vertical. Conclusão? "Devemos ser equilibrados e equilibrantes: retos e justos quando à nossa volta todos falem de fraternidade e tolerância, e tolerantes e fraternos quando insistam na aplicação dos princípios de forma implacável."

São um significado e uma conclusão com alguma lógica? São - pelo menos, do meu ponto de vista. É um significado universalmente reconhecido? Não. E está certo? Ou está errado? Bom... para mim, parece-me certo, na medida em que foi instrumental para que aplicasse a mim mesmo os princípios referidos de forma mais eficaz. Para outros não resultará. Os símbolos são isso mesmo: instrumentos, meios, meras ferramentas coadjuvantes na prossecução de um objetivo maior. Aqui posso dizer: se da "adulteração" do significado "puro" e "convencional" do símbolo resultou  a melhor aplicação do princípio à minha vida tornando-me numa pessoa melhor, então - porque a ninguém prejudica o meu entendimento peculiar deste símbolo - o exercício foi profícuo. Se, para além disso, a alguém aproveitou para além de mim, então dou-me por muito satisfeito...

Paulo M.

11 comentários:

José Jorge Frade disse...

Esse entendimento da simbologia também para mim é proveitoso...

Jocelino Neto disse...

"O Homem é um animal simbólico"
Ernst Cassirer

A respeito da alegoria representada simbolicamente pelos "Joãos", a partir de meu prisma, decodifico como o logos universal. E desde que, estão configuradas em um cenário cristão, estas energias assumem a interpretação cruciforme. No outro cenário, o judaico, assumem a síntese visual da estrela de David. No egípcio, o ankh. No hermético, "O que está em cima é como o que está embaixo. E o que está embaixo é como o que está em cima". E assim por diante. Visões multiplas para um mesmo conceito, uma mesma verdade.

Estou equivocado?

Abraços fraternos!

Anónimo disse...

Gostei bastante do exemplo do quadro de Magritte para introduzir o assunto simbolos.´
Interessante especialemente por que Magritte era mestre em anunciar aquilo que parece mais nao é. Quando eu era pequena, meus pais me colocaram em frente a varios quadros de Magritte, versoes de uma mesma casa, em um museu em Paris, para que eu descobrisse o que havia naqueles quadros tao "comuns", de surrealismo. Eu pensei um pouco e "descobri". O céu estava claro e era dia, mas bem abaixo via-se que era noite, com sua escuridão e luzes acesas. Aquilo me fez pensar em muitas coisas, relativas a esse tema: nem tudo é o que parece a primeira vista. Uma coisa pode ser duas aos mesmo tempo. Ou ter diferentes versões, dependendo de quem observa.
Parabenizo voces por esse espaço de reflexao, esse blog. Como ja disse antes, gosto de vir aqui e ler o que voces escrevem. Sempre reflexoes inteligentes. Gente que pensa. Bom isso.
Um abraço,
Camille

Nuno Raimundo disse...

Boas...
Nem tudo o que parece, é. E nem tudo o que é, tem de parecer...
E por isso é que existem simbolos, e desde tempo imemoriais, o Homem os estuda, contempla, relativiza e os compara.

abr...prof...

Diogo disse...

Paulo M.,

E se passássemos dos «simbolismos» para os realismos?

De repente, abateu-se sobre o planeta uma «enorme crise financeira» que está a estoirar com as economias e com a vida das pessoas.

O dinheiro não é batatas, electricidade ou têxteis. Os criadores de dinheiro, os bancos centrais e comerciais, podem fabricar o dinheiro que quiserem. Já não podem fazer o mesmo com batatas.

Por outro lado, não houve nenhuma praga planetária, nenhuma guerra mundial nem nenhuma queda de um cometa gigante.

Portanto, donde é que nasceu essa «enorme crise financeira»?

Abraço

Paulo M. disse...

@Diogo: Não sei. Nem sou economista, não é área que domine, e não tenho qualquer "inside information". É uma lacuna que tenho na minha formação e que tenho tentado melhorar - mas sem objetivos demasiado ambiciosos.

Mas se calhar tenho que escrever outro texto como o do outro dia - como aquele de que ficaram todos à espera que aparecesse um comentário que não chegou.

O novo texto poderia descrever, por exemplo, uma conferência de imprensa de um treinador de futebol, em que um dos jornalistas, insistindo que futebol é para alienados, fizesse constantes perguntas como "vai ao teatro?", "que livro tem na mesa de cabeceira?" ou "o que acha da política de cultura do governo?"...

Que lhe parece?

Um abraço,
Paulo M.

Diogo disse...

Paulo M, não foi isso que eu quis dizer. Sugeri apenas que abordassem também os problemas do mundo sem ficarem sempre encerrados nos limites da história, simbologia e praxis da Maçonaria.

Abraço

Paulo M. disse...

@Diogo:
Há muitos outros blogues que tratam desses assuntos. No entanto, não há assim tantos blogues que versem sobre maçonaria, para mais com a abertura com que o temos feito aqui no A Partir Pedra. Não devo ser o único dos que aqui escrevem a pensar que, se quisesse escrever sobre outros assuntos que não sobre maçonaria, o faria noutro forum que não este.

Veja o que está escrito sob o nome do blogue: "Blogue escrito por maçons da Loja Mestre Affonso Domingues" Não é escrito por vários indivíduos que, por acaso, são maçons, mas por vários indivíduos porque são maçons. Assim, espera-se que falemos... de maçonaria, pois então!

Claro que, por vezes, se fala de outras coisas. No entanto - e apenas por mim falo - reservo, frequentemente, para mim a opinião que tenho das questões contemporâneas, pelo menos aqui, por serem irrelevantes, pois ninguém quer saber o que pensa o cidadão Paulo M., indivíduo desconhecido da esmagadora maioria de quem o lê; poderão, contudo, querer saber o que pensa o maçon Paulo M., e pretender inferir a posição da Obediência a partir da opinião de um dos seus obreiros - o que estaria errado, pelo que o evito.

Espero ficar assim suficientemente explicado por que não abordo determinados assuntos: não só para que me não citem mais tarde de forma indevida, mas acima de tudo por não saber sobre os mesmos mais do que o cidadão médio que lê jornais e visita sites noticiosos na internet. A web está cheia de sites cheios de banalidades; não será pela minha mão que este blog se tornará em mais um.

Um abraço,
Paulo M.

Baltazar disse...

Certamente que os símbolos podem representar algo diferente para quem os “lê”, não existe uma barreira que limite o seu significado e este é moldado pela experiencia e vivencia de quem olha para eles. Nesse sentido o significado que cada um lhes dá é mais valioso porque é a ligação entre a pessoa e o símbolo que faz do símbolo algo que importe.
No entanto não nos podemos esquecer que a primeira forma dos humanos comunicarem entre si foi usando símbolos que mais tarde deram origem à escrita.
Os símbolos, nesse contexto, adquirem outro valor e o seu significado perde-se se a descodificação não for ensinada.
Mas ... admito, nunca tinha olhado para os símbolos nesse sentido, para mim eram apenas objectos que aguçavam a curiosidade de apreender a razão da sua existência. Encontrar na história a sua criação e entender as variações que foram tomando ao longo do tempo. Nunca me passou pela cabeça valorizar primeiramente a ligação entre o individuo e o símbolo e é apenas nesse sentido que o símbolo se pode transformar num imenso universo sem nunca passar dum mero símbolo porque o que importa mesmo não é o símbolo mas sim o princípio que este dá como ponto de partida.
E se não foi isto que quis dizer, não importa, considere o seu texto como um símbolo ….

Paulo M. disse...

@Baltazar: "Nunca me passou pela cabeça valorizar primeiramente a ligação entre o individuo e o símbolo e é apenas nesse sentido que o símbolo se pode transformar num imenso universo sem nunca passar dum mero símbolo porque o que importa mesmo não é o símbolo mas sim o princípio que este dá como ponto de partida."

Esta sua frase resume com acuidade o que pretendi transmitir, o que me leva a crer ter sido elucidativo o que escrevi. E agradeço, uma vez mais, dar-me tema para o próximo texto...

Um abraço,
Paulo M.

Candido disse...

Meu Caro Paulo
E agradável ler os seus textos, mas permita que lhe diga que gosto muito mais das resposta que dá ao Diogo.Com elevação, oportunidade e sem beatice.
Bem haja