10 março 2010

Intolerância

Airton da Fonseca, maçom e editor do Novo Blog do Ferra Mula, escreveu, em comentário ao texto "Ansiedade":


Muito se escreve sobre a Tolerância. Gostaria muito que o Ir.'. fizesse uma peça de arquitetura sobre a Intolerância. É sabido que a Tolerância é uma virtude que deve ser praticada pelos IIr.'., mas me parece que do ponto de vista global, a intolerância é o mal do século que se findou e continua mais evidente em nossos dias.

Correspondendo ao pedido, o tema de hoje é, então, a Intolerância.

À primeira vista, intolerância é o oposto de tolerância, virtude que, como muito bem acentua Airton da Fonseca, deve ser praticada pelos maçons. Bastaria então definir esta para, por oposição, nos depararmos com aquela.

Este caminho é tentador. Recordo-me de uma frase que bastas vezes ouvi a Fernando Teixeira, Grão-Mestre Fundador: "O limite da Tolerância é a estupidez". Portanto, se a estupidez está fora da tolerância, aí temos: a Intolerância não será, então, mais do que uma estupidez!

O que apetece declarar ser uma grande verdade!

Mas, por muito tentador que seja proclamar isto, uma mais atenta meditação permite-nos apreender que, em bom rigor, o oposto da Tolerância não é a Intolerância, é o Preconceito.

O tolerante renega, rejeita o preconceito. O preconceituoso, esse, não está disponível para tolerar a diferença, o que considera erro ou o que vê como inferior.

Há mais de três anos, aqui no blogue, o José Ruah e eu mantivemos uma não totalmente desinteressante polémica sobre o conceito de Tolerância. Quem não a leu, ou dela não se recorda, poderá através do marcador "Tolerância", localizar os doze textos em que essa troca de opiniões se desenvolveu, publicados entre 16 de novembro de 2006 e 16 de janeiro de 2007.

O ponto de partida da controvérsia foi o entendimento do José Ruah de que a tolerância pressupõe uma posição de superioridade (moral, social, pessoal, conceptual, o que se quiser) do tolerante em relação ao tolerado, ao que eu contrapus o meu entendimento da igualdade essencial de planos entre ambos, no verdadeiro conceito de Tolerância.

Recordo aqui esta troca de opiniões, porque precisamente entendo que é o Preconceituoso que se pretende colocar numa posição de superioridade, não o Tolerante que nela se coloca.

Curiosamente, não me parece que essa seja, necessariamente (pode sê-la, mas não o é necessariamente) a posição do Intolerante. Este, em relação ao objeto da sua Intolerância, não se arroga necessariamente da condição de superioridade. Pode muito bem atribuir ao objeto da sua postura uma posição no mesmo plano da sua - ou pode mesmo reconhecer-lhe a prevalência - e precisamente por isso contra o objeto da sua Intolerância lutar.

Porque a Intolerância não é, nunca, conceptualmente, passiva. É sempre proativa, tendencialmente agressora, ou, pelo menos, agressivamente opositora.

A Intolerância não é, pois, a mera antinomia, oposição, à Tolerância. É bem mais do que isso, é um estado de espírito tendencialmente militante, diverso, suscetível de assumir múltiplas formas ou manifestações.

A Tolerância é sempre uma postura de ordem moral. A Intolerância não é necessariamente uma postura de que a Moral está arredada. Não se admire o leitor: não me enganei e quis mesmo escrever o que acabei de escrever! Esclarecerei porquê.

É que, ao contrário do que me parece que entende o Airton, não considero a Intolerância necessariamente um mal. Volte a leitor a não se admirar. Novamente quis escrever o que acabei de escrever. E repito: a Tolerância é sempre uma virtude, um bem; a Intolerância - ao contrário do Preconceito - nem sempre é um mal. Explico então, antes que o leitor conclua definitivamente que ensandeci de vez.

Considero-me uma pessoa tolerante. Esforço-me por sê-lo e por praticar esta virtude. Procuro banir o Preconceito da minha postura. Mas entendo - e julgo que todos também assim o entenderão - que há na Vida e no Mundo coisas e posturas e situações que não podem, não devem, ser toleradas. Em relação às quais não só podemos como devemos ser absoluta, completa e inamovivelmente INTOLERANTES.

Sou completamente INTOLERANTE em relação à pedofilia, à violação, à violência gratuita, ao abuso de poder, à opressão, aos maus-tratos dos mais fracos. Só para dar alguns exemplos e exemplos por todos pacificamente aceites.

Em termos morais, a Intolerância é, em si mesma, neutra. Não é necessariamente um mal ou um bem. Depende do seu objeto. Admito que muitas das intolerâncias com que nos deparamos são um mal. Mas são-no em função do seu objeto. A Intolerância religiosa, ou de cariz racial, ou derivada de preconceito social são obviamente más. Era certamente nisso que o Airton pensava quando escreveu o que acima se transcreveu. Mas são más EM FUNÇÃO DO SEU OBJETO, não porque intrinsecamente a intolerância seja necessariamente sempre má. Creio já ter acima elucidado convenientemente que há intolerâncias que, atento o caráter particularmente desprezível dos seus objetos, não são más - pelo contrário, são socialmente úteis e devem ser cultivadas por quem procura ser uma pessoa de bons costumes.

Portanto, e em conclusão: o oposto da Tolerância não é a Intolerância - é o Preconceito. Em termos morais, a Tolerância é boa, o Preconceito é mau, a Intolerância é neutra, sendo boa ou má consoante o objeto sobre que se manifeste.

Surpreendido?

Rui Bandeira

8 comentários:

Diogo disse...

Não concordo completamente, caro Rui,

É tudo uma questão de grau e de circunstância.

A tolerância pode variar de intolerância absoluta até tolerância absoluta. Ambas as atitudes podem ser positivas ou negativas consoante as circunstâncias (conforme você demonstrou).

O preconceito é um conceito ou opinião formado antes de se ter um conhecimento adequado sobre determinada coisa. De igual forma, o preconceito pode ser negativo ou positivo.

Se eu disser que fulano, por ser sueco, deve ser um indivíduo organizado, estou a fazer um preconceito positivo (que pode ser falso). Se eu disser que um réptil que encontro no caminho deve ser venenoso (negativo sob o meu ponto de vista, que não do réptil) estou a fazer um preconceito que pode ser falso.

Portanto, e em conclusão: o oposto da Tolerância não é o Preconceito.

Paulo M. disse...

Curiosamente, desta vez concordo com o Diogo, não deixando de entender e subscrever os conceitos que o Rui apresentou. O Rui usou o termo "preconceito"; em sua substituição, proponho "fundamentalismo", que tem um significado semanticamente mais restrito.

Socorro-me da Wikipedia: "O fundamentalismo refere-se e uma crença em estrita observância de um conjunto de princípios básicos (frequentemente de natureza religiosa), por vezes como reação à perceção de compromissos entre a doutrina e a vida social e política modernas." (tradução da versão em língua inglesa).

A palavra-chave aqui é "compromisso". Uma atitude fundamentalista, contrariamente a uma atitude tolerante, rejeitará qualquer cedência, compromisso ou procura de um "common-ground". O fundamentalismo implica a existência de um preconceito, mas nem todos os conceitos prévios são de conducentes a fundamentalismos. Como referia Robert Heinlein numa das suas obras mais conhecidas, "Os usos e as tradições libertam o Homem do fardo de ter que decidir conscientemente as mais pequenas trivialidades." Ou, por outras palavras: alguns preconceitos são úteis.

Mas esta questão é puramente semântica. Uma vez mais, o Rui conseguiu apresentar-nos uma posição diferente da que esperaríamos, e que nos permitiu aprender mais qualquer coisa.

Obrigado!

Um abraço,
Simple

jpa disse...

Peço desculpa, mas deixar de tolerar uma situação é para mim intolerar essa situação.
O preconceito está no meio termo,i.e.,uma pessoa está numa atitude de alerta, podendo ou não tolerar a situação.

Cumprimentos
JPA

Rui Bandeira disse...

@ Diogo, Simple e jpa:

Aquilo a que o Diogo, no seu comentário, chama de preconceito, designo eu por generalização.

Mas concordo com ele que é tudo uma questão de grau ou circunstância.

E também com o Simple quando ele refere que aqui estamos perante mera questão semântica.

Acho "generosa" a conceção do jpa de que o preconceito é apenas uma situação de espera para definição futura, mas entendo também que no essencial ele concorda, com todos os restantes, que a chave está "no grau e na circunstância".

Designações à parte, o que eu quis enfatizar é que a intolerância não é, em si mesma, ao contrário do que tendemos a considerar, moralmente má.

Designar o oposto da tolerância por preconceito, ou fundamentalismo ou outra coisa qualquer, é apenas uma questão de encontrar o conceito mais adequado.

Ou talvez, no fundo, o mais adequado seja o alerta do Diogo de que é importante a relativização em função do grau e das circunstâncias.

Afinal, desde que ponhamos preconceitos/fundamentalismos/intolerâncias de lado, verificamos que, apesar das diferenças de designações, todos nos encontramos num plano comum de relativização.

E, quando se põem de lado preconceitos/fundamentalismos/intolerâncias, os homens de bem facilmente, através do debate e troca de ideias, identificam o campo de concordância comum - normalmente o essencial - e toleram, fácil e mutuamente, as diferenças afinal laterais que cada qual salvaguarda, em função da sua cultura, experiência, modo de pensar e remperamento.

Um forte abraço a todos!

Alexandre disse...

“Acho "generosa" a concepção do jpa de que o preconceito é apenas uma situação de espera para definição futura, mas entendo também que no essencial ele concorda, com todos os restantes, que a chave está "no grau e na circunstância".”
Esta frase adapta-se muito bem ao texto: http://a-partir-pedra.blogspot.com/2010/02/ansiedade.html
Pela minha leitura tolerante claro está.

Rui Bandeira disse...

@ Alexandre:

SE bem entendo o seu comentário, acha "generosa" a consideração que fiz sobre a ansiedade.

Embora devamos ressalvar as distâncias que vão da ansiedade à intolerância, entendo o qseu ponto de vista e acho que está, efetivamente, bem visto - sobretudo não concordando o Alexandre inteiramente com aquela consideração, como deixa evidente e já tinha anotado nos seus dois comentários àquele texto.

Talvez também aqui se justifique, como ponto de encontro dos diferentes entendimentos que temos,a oportuna consideração do Diogo: tudo depende do grau e das circunstâncias.

Um abraço - e vots de que ambos consigamos ser o mais tolerantes e o menos ansiosos possível...

Ferra Mula disse...

Rui Bandeira

Desde já , fico-lhe fraternalmente agradecido pela atenção.
Como disse o Simple - "o Rui conseguiu apresentar-nos uma posição diferente da que esperaríamos, e que nos permitiu aprender mais qualquer coisa.

Muito mais do que se possa imaginar, tanto através do texto, como dos comentários até aqui publicados e também na réplica com a qual o Rui complementou seu pensamento.

Surpreendido.

Obrigado e um grande abraço a todos, em particular ao Ir.'. Rui Bandeira.

Airton da Fonseca.

Lindemann disse...

Tolerâncias ou Intolerâncias à parte, ou não, muito bom ver um debate sem ataques.
Parabéns à todos e um ótimo final de semana.
Josiel