A propósito de saldos
Há dias, foi divulgada a notícia de que o Governo preparava legislação no sentido de antecipar o início das épocas de saldos de Inverno e de Verão.
Na prática, muitos comerciantes vêem contornando a determinação legal quanto ao período de saldos, recorrendo a "promoções", "liquidações", "ofertas especiais" e quejandas expressões, todas com o significado de colocação à venda de mercadorias com desconto antes da época legalmente prevista para tal, mas sem usar a denominação de "saldos", porque tal não o permitia a Lei. É mais uma manifestação da pouco saudável tendência da sociedade portuguesa de cumprir formalmente a Lei, mas substancialmente violando-a com toda a acalma e desfaçatez.
Se a legislação que fixa os períodos de saldos é tão fácil e corriqueiramente violada, se, como parece ser o caso, o mercado - entendido como o conjunto de vendedores e compradores - pacificamente pratica a antecipação das vendas com desconto, isto é, dos saldos, apenas com a prudência de não utilizar a palavra, então afigura-se-me que a legislação não está em correspondência com o sentir da sociedade e deve mudar em conformidade. Não é que a actuação do mercado vá mudar substancialmente por causa disso (só vai passar a utilizar abertamente a expressão "saldos" mais cedo do que antes), mas, pelo menos, sempre se evita a sistemática violação da Lei...
A anunciada alteração legal é, pois, uma normalíssima medida tomada pelo Poder político, sem uma especial relevância. Só trago aqui o tema a propósito de um comentário que ouvi na rádio, acerca da intenção governamental, formulado por um representante de uma associação de comerciantes. Manifestou o senhor a discordância da sua associação em relação à medida, fundamentando tal desacordo em que o projectado (antecipação do início dos saldos de Inverno e de Verão) só ia beneficiar as grandes superfícies e que tudo não passava de uma bizantinice do Secretário de Estado do Comércio e dos Consumidores, aliás demonstrativa de quão contra natura era essa função, já que tutelava interesses opostos e não era lógico que a mesma pessoa atendesse aos interesses dos comerciantes e dos consumidores.
Esta posição é de pasmar, a três títulos diferentes!
Em primeiro lugar, porque um representante de uma associação de comerciantes tem o desplante de manifestar oposição a uma medida que vem legalizar a prática de muitos dos associados da dita associação. É o exemplo típico de a cúpula estar em oposição às bases que diz representar!
Em segundo lugar, não é nem entendível, nem saudável o continuado acenar com o papão das grandes superfícies. Não é entendível, porque, em matéria de preços e margens, as grandes superfícies, pela sua dimensão, levam vantagem durante todo o ano. A época de saldos é aquela em que o comércio tradicional pode mais facilmente competir com elas. Não é saudável, porque continua a mostrar que o comércio tradicional ainda não entendeu que não é ao abrigo de guarda-chuvas administrativos que conseguirá competir com as grandes superfícies, antes através de diferenciação em termos de qualidade, segmentação de mercado, inovação e criatividade.
Em terceiro lugar, porque a afirmação quanto aos interesses opostos de comerciantes e consumidores demonstra que quem a proferiu ainda não entendeu que os comerciantes só têm sucesso se estiverem em sintonia com os consumidores e com as tendências do consumo. Ainda não percebeu que o comerciante só tem êxito se atender aos interesses dos seus clientes. Os interesses dos comerciantes não são opostos, antes complementares. Enquanto o comércio tradicional não entender isto, vai estar sempre a lamentar-se das grandes superfícies e... a ver os consumidores a irem ali adquirir os produtos de que necessitam.
Rui Bandeira
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