18 junho 2012

O que se faz numa sessão maçónica - II




Na sequência do meu texto da semana passada o Streetwarrior comentou:

"As sessões colocadas desta maneira, parecem ser uma coisa muito chata ! Gostaria de perceber estes 3 aspectos que sempre me deram muita curiosidade.
Visto que desde os primordios das nossas civilizações, tudo o que nos rodeia, é ligado á religião tudo é politica, o que sobra para se discutir numa sessão?
Se não se pode discutir religião, qual o interesse então de uma maçonaria ser Crente ou não numa entidade religiosa?
Por fim...qual a razão do Mestre andar em angulos rectos, terá isto a ver com (Anjos = Angulos ) bom e maus, visto que a nivel Astro-teológico existem bons angulos e maus angulos?"

Comecemos pelo fim. "Ângulos" vem do latim angulus, “canto, área remota". "Anjos" vem do latim eclesiástico angelus, derivado do grego antigo άγγελος ("ángelos"), e significa "mensageiro". Em comum têm apenas alguma similaridade fonética. Já no que diz respeito à maçonaria e aos ângulos retos, é questão que nada tem que ver com anjos. Aqui, uma referência ao ângulo reto constitui, quase sempre, uma referência ao conceito de "retidão moral", simbolizada pelo esquadro que serve para traçar e aferir os ditos ângulos. A própria linguagem do dia-a-dia consagra, já, esse simbolismo, ao chamar "enviesado" (de "viés": oblíquo, torto) a algo que tenha contornos pouco direitos, e chamando "pessoa reta" a quem cumpra os princípios morais. Assim, as deslocações em loja são feitas em linhas e ângulos retos, recordando-nos que um maçon deve, no seu deambular pelo mundo, agir de forma reta e evitar percursos (moralmente) oblíquos e enviesados.

Quanto ao interesse de uma maçonaria crente numa Entidade Superior, e o facto de essa mesma Entidade não poder ser discutida, é fácil de explicar e de entender. Não é difícil de imaginar que um judeu, um hindu, um cristão, um animista e um muçulmano tenham em comum entre si coisas que não têm em comum com um ateu ou com um agnóstico: todos eles creem no sobrenatural, e na existência de uma Entidade Superior a quem devem a existência e cuja vontade procuram satisfazer. Agora, não tentemos ser mais específicos do que isto, ou estaremos condenados a intermináveis discussões sobre o número de anjos que cabem na cabeça de um alfinete... A diversidade de crenças deve ser enriquecedora, e permitir que cada um tenha a oportunidade de se aperceber de posições diversas da sua, sem ter sequer que defender a sua posição de uma posição diferente; pretende-se, isso sim, que constitua uma circunstância pedagógica da alargamento dos horizontes e de aumento da tolerância em face das diferenças.

Por tudo isto é que creio que a proibição de discussão política e religiosa em loja é frequentemente mal entendida. Em maçonaria aprende-se a favorecer a paz em detrimento do conflito; a preferir a fraternidade à facciosidade; e a privilegiar o estabelecimento de consensos e evitar a dissenção. Por outro lado, a maçonaria constitui um espaço de respeito pela liberdade de cada um como dificilmente se encontra nos nossos dias, nomeadamente no que concerne a liberdade de expressão. Precisamente como garante dessa liberdade de poder dizer-se o que se pensa, por vezes como exercício de exploração interior, sem que tal se repercuta fora da loja, é que em cada sessão se jura guardar silêncio do que na mesma se passou. Ora, dificilmente se encontra uma posição com que todos se identifiquem, pois a procura do bem comum raramente passa pela satisfação dos desejos individuais, o que é tão mais verdadeiro quanto mais fraturante for a questão em causa. Como conciliar estes dois princípios estabelecendo um equilíbrio é algo que se vai aprendendo todos os dias.

É por isto que - no meu entender, note-se - a proibição de discussão política e religiosa em loja não se esgota nos seus termos, que são essencialmente exemplificativos e ilustrativos de um princípio maior: o de que a concórdia entre os homens deve prevalecer sobre a liberdade de expressão. Esta posição nada tem ou pretende ter de totalitário. "Discutir" não é a única forma de abordar um tema ou falar sobre o mesmo. Na loja Mestre Affonso Domingues, por exemplo, pode falar-se de praticamente tudo, desde que em absoluto respeito pela posição dos demais, no sentido de que deve procurar-se que estes não se sintam de modo algum  agredidos com aquilo que se diz.

Certamente à luz desta interpretação foi, há um par de anos, apresentada uma prancha sobre a condenação da maçonaria pela igreja católica ao longo da história, e recentemente, dias antes da lei sobre o "testamento vital" ser unanimemente aprovada pelo nosso parlamento, uma prancha sobre esse mesmo tema apresentada por um mestre da nossa loja que conhece o assunto a fundo. Seria impossível falar da primeira sem falar de religião, e da segunda sem falar de política. O que foi feito, num e noutro caso, foi apresentar-se factos inquestionáveis por qualquer pessoa de boa fé, e eventualmente um ou outro comentário pessoal - devidamente identificado como tal - no meio ou no fim do texto, sempre com o devido cuidado de se evitar o conflito entre diversas posições. Não foram "artigos de opinião", e muito menos de propaganda. Num e noutro caso os obreiros presentes manifestaram a sua satisfação pela qualidade e forma como as pranchas foram apresentadas, e ninguém manifestou qualquer desconforto.

Termino respondendo à primeira observação, de que as sessões maçónicas deverão ser uma coisa muito chata. Depois do que acabei de expor, será inesperado que eu responda que... não são?!

Paulo M.

13 junho 2012

Regras Gerais dos Maçons de 1723 - VII

É uma boa prática que todo novo Irmão, aquando da sua Iniciação, presenteie a Loja, isto é, todos os Irmãos presentes, e faça uma oferenda para socorro dos indigentes e Irmãos em desgraça, de acordo com o que o novo Irmão ache apropriado, mas superior e acima do mínimo que esteja estabelecido pelo Regulamento interno da Loja; tal oferenda deve ser entregue ao Mestre, Vigilante, ou Tesoureiro, para ser entregue a uma instituição, se os membros acharem apropriado escolher alguma. O candidato deve jurar solenemente que se submeterá à Constituição, Deveres e Regulamentos e todos os costumes que lhe forem comunicados, em hora e lugar convenientes.

Conforme logo no início do texto desta sétima regra se acentua, a contribuição nela referida não é obrigatória - apenas considerada uma "boa prática".

Na Maçonaria Regular dos tempos atuais, o novel maçom não é estimulado ou aconselhado a fazer uma doação particular, muito menos em valor superior ao valor mínimo constante de Regulamento, desde logo porque inexiste fixação de qualquer valor mínimo para "oferendas" - nem tal faz sentido: o que constitui obrigação não pode logicamente ser considerado oferta; e concomitantemente, o que voluntariamente se dá não constitui obrigação...

O recém-iniciado é informado que, tal como os demais, quando circular na reunião aquilo a que os maçons chamam o Tronco da Viúva, deverá no respetivo recipiente (em regra, um saco) depositar, discretamente, aquilo que entender e de que possa dispor, sem colocar em risco o cumprimento das suas obrigações civis e familiares, nem, obviamente, a satisfação das suas necessidades e as dos seus. Aliás, se necessitar retirar, em vez de colocar, tal é-lhe lícito e essa decisão, tal como a referente ao montante que em cada dia resolva colocar, depende exclusivamente do seu critério, sem ter de prestar contas ou pedir autorização a ninguém. Felizmente, o que seria certamente uma dolorosa decisão é extremamente rara... Menos rara - embora pouco frequente - é a situação em que um dos obreiros presentes numa sessão maçónica declara reclamar o produto recolhido pelo Tronco da Viúva, normalmente indicando para que auxílio concreto destina esse produto. Quando tal sucede, embora ritualmente a reclamação se faça só após a circulação do Tronco da Viúva, é habitual que seja anunciada essa intenção antes dessa circulação, para que os presentes saibam que o produto da recolha que se vai efetuar se destina a auxiliar alguém ou algo em concreto e possam, se assim o entenderem, adequar o montante do seu donativo em conformidade.

O Tronco da Viúva é administrado pelo Hospitaleiro da Loja, segundo as orientações desta e do seu Venerável Mestre.

O candidato à Iniciação, imediatamente antes do início desta deve, por outro lado, satisfazer o pagamento de uma joia de iniciação (na Loja Mestre Affonso Domingues, montante referido aqui), para custeio das despesas administrativas e com o material que lhe será entregue. O montante da joia - tal como o da quota, mensal ou anual, varia de Loja para Loja e de Obediência para Obediência. Cada Loja é soberana.

Quanto à frase final da regra, referente ao juramento solene que o candidato deve efetuar, importa esclarecer que - e disso é informado o candidato antes da sua realização - a Constituição, os Deveres, Regulamentos e costumes cuja observância se jura cumprir em nada contendem com as leis em vigor nem com os costumes e moral sociais. Os maçons integram-se na sociedade e, pela sua melhoria e pelo seu exemplo, procuram contribuir para a melhoria desta, mas atuam sempre no respeito da Legalidade vigente, pois para um maçom regular ser livre e de bons costumes implica ser um bom cidadão, cumpridor dos seus deveres e das normas em vigor.

Fonte:
 
Constituição de Anderson, 1723, Introdução, Comentário e Notas de Cipriano de Oliveira, Edições Cosmos, 2011, página 137.

Rui Bandeira

10 junho 2012

O que se faz numa sessão maçónica



Para se entender o que se faz numa sessão maçónica é necessário entender-se, antes do mais, que muito do que aí se faz é ensaiado, teatralizado ou, como nós dizemos, ritualizado. Há vários rituais diferentes, correspondentes a cada um dos ritos, com muitos pontos comuns entre si mas cada um com a sua especificidade. Quando se diz que uma loja "trabalha num determinado rito", isso significa, essencialmente, que segue um determinado "guião" nas suas sessões, que executa sempre um determinado ritual. Este pouco mais determina que, de forma algo mais solene, se faça o que se faz numa simples reunião de condóminos:

- saber-se quem dirigirá a reunião e quem desempenhará outros papéis, como o de secretariar;
- confirmar se o local reune as condições para se efetuar a reunião: se há luz, cadeiras, documentação (livros de atas, de tesouraria, etc.) entre outros;
- verificar se os presentes são condóminos ou mandatados por algum condómino (ou seja: se têm lugar na reunião ou se lá estão por engano);
- verificar se há quorum, cruzando-se a  lista dos condóminos com a dos presentes;
- ler e votar a aprovação da ata da reunião anterior;
- executar a ordem de trabalhos de forma ordeira e respeitando o regulamento;
- dar a palavra a quem deseje prestar alguma informação, apresentar alguma questão ou suscitar tema de  reunião futura;
- fazer as despedidas dos demais condóminos;
- arrumar a sala, apagar a luz e sair.


Atos equiparáveis sucedem numa sessão maçónica, em que podem considerar-se três partes: a abertura dos trabalhos, o desenvolvimento dos trabalhos, e o encerramento dos trabalhos. Destes três momentos, a abertura e o encerramento são ritualizados. Também parte do que se passa na ordem de trabalhos o é, o que torna as sessões maçónicas mais uniformes e homogéneas na sua forma, e ajuda a que cada um saiba o que pode esperar e como deve agir.

De acordo com cada rito, há lugares pré-determinados para cada um dos oficiais, bem como para os aprendizes, companheiros e demais mestres. Há regras que são transversais a todos os ritos, como a do silêncio dos aprendizes e companheiros (a quem está vedado intervir em loja) ou a necessidade de se pedir a palavra e de que esta seja concedida antes de se poder falar (o que não sucede em qualquer momento). Há momentos específicos para se pedir a palavra, falando cada um apenas uma vez sobre cada assunto (ou seja: não há direito de resposta e muito menos de interrupção), e há uma ordem para se falar; se é passada a vez, perde-se a possibilidade de intervir. Há momentos para se estar de pé e momentos para se estar sentado, e apenas se circula em loja precedido ou acompanhado do mestre de cerimónias, que é o único que se pode movimentar livremente - e mesmo assim sempre acompanhado do seu bastão, e movimentando-se à roda da sala sempre em linhas e ângulos retos, e sempre no mesmo sentido. O cumprimento do ritual não só confere solenidade às sessões como as torna previsíveis e harmoniosas.

Os rituais maçónicos são secretos, mas apenas na medida em que cada maçon jurou não os revelar. O segredo sobre os rituais é, na verdade, um mero símbolo do segredo que cada maçon deve saber guardar em circunstâncias que, de facto, o exijam, e da confiança de que deve ser merecedor. Nada nos rituais é verdadeiramente "secreto", no sentido de que nada trazem de novo a quem os leia procurando descobrir um qualquer "segredo maçónico".

O que se faz nos trabalhos pode ser, simplesmente, a leitura e comentário de uma prancha, uma iniciação ou um "aumento de salário" (passar-se um aprendiz a companheiro ou um companheiro a mestre), ler-se um decreto do grão-mestre, combinar uma atividade da loja (que pode ser, por exemplo, uma refeição, uma palestra ou uma dação de sangue), ou mesmo não se fazer mais nada, passando-se da abertura para o encerramento!

Dos assuntos discutidos em lojas da Maçonaria Regular estão, como se sabe, proibidos quer a discussão religiosa quer a discussão política, pelo que estas questões têm de potencialmente fraturante e contrário ao ideal maçónico de tolerância, fraternidade e harmonia. Quem quiser saber, concretamente, de que tipo de coisas se fala, pode consultar o site da Respeitável Loja Mestre Affonso Domingues, onde se encontra publicado um considerável acervo de  pranchas apresentadas e discutidas em loja.

Paulo M.

06 junho 2012

Regras Gerais dos Maçons de 1723 - VI

Nenhum homem pode ser considerado Irmão de qualquer Loja, ou admitido membro desta, sem o consentimento unânime de todos os membros da Loja presentes quando o candidato é apresentado; e estes devem expressar seu consentimento ou dissensão de sua própria e prudente vontade, virtual ou ritualmente, mas unanimemente; este procedimento não pode ser objecto de exceção, porque os membros de uma Loja são os melhores juízes; pois se lhe fosse imposta a admissão de um candidato de mau comportamento, isto poderia minar a sua harmonia, ou obstruir a sua liberdade, ou mesmo dividir ou dispersar a Loja; o que deve ser evitado por todos os bons e verdadeiros Irmãos.

A regra da unanimidade na admissão de um candidato é uma regra essencial da Maçonaria, que perdura desde tempos imemoriais. A própria transcrição da regra contém a sua justificação.

Esta regra da unanimidade constitui um poderoso cimento agregador dos obreiros de uma Loja. Quem nela entra, entra porque todos os que já lá estavam assim o permitiram. Todos são responsáveis pelo novo elemento. Ele não, foi, assim, apenas admitido. Foi verdadeiramente cooptado.  Se a integração do novo elemento do grupo falhar, não há necessidade de determinar culpas, de as lançar sobre o novo elemento ou sobre quem o propôs ou o inquiriu. Todo o grupo assume a responsabilidade do fracasso, como todo o grupo se regozija com os êxitos das boas integrações.

Convém ter presente que também na Maçonaria o voto relativo a pessoas é sempre prestado de forma secreta. No caso, mediante o sistema maçónico de bola branca e bola preta, pelo qual a cada votante é entregue uma bola de cada uma dessas cores. O voto favorável de cada um é expresso através da introdução da bola branca na urna de voto principal (chamada de "urna branca") e, como contraprova, da bola preta na urna secundária ou de contraprova (chamada de "urna preta").

Depositados todos os votos, a verificação, sempre que exigida a regra da unanimidade, é fácil: se a urna branca apresentar todas as bolas dessa cor, o resultado é favorável; se apresentar uma ou mais bolas negras, o resultado é desfavorável. Logicamente, a urna de contraprova deverá apresentar as bolas todas negras, se a votação foi unânime, ou o número de bolas brancas correspondente ao de bolas pretas introduzidas na urna principal. 

A votação de aprovação é designada por uma votação pura e sem mácula, por apresentar todas as bolas da mesma cor.

A regra da unanimidade, porém, sendo geradora de grande coesão, não é isenta de efeitos perniciosos. Basta ter presente que, ainda hoje, em meia dúzia de Grandes Lojas do sul dos Estados Unidos, pura e simplesmente não são admitidos candidatos cuja cor da pele seja negra. Neste caso concreto, a regra da unanimidade acaba por potenciar o racismo e os sentimentos racistas que imperaram naquela região do globo e que a evolução social das últimas décadas não logrou ultrapassar totalmente.

Este sistema de aprovação unânime permite que basta que exista na Loja um elemento racista que, anonimamente, deposite sempre o seu voto contrário, para bloquear a admissão de candidatos negros. Foi isto que sucedeu nos Estados do sul dos Estados Unidos e que, numa meia dúzia deles, ainda hoje sucede.

Mesmo não tendo em conta esta perversão do sistema, o certo é que o sistema de aprovação unânime, favorecendo enormemente a coesão do grupo, é tendencialmente um sistema altamente conservador, tendente a bloquear a entrada de diferentes, o que é obviamente muito perigoso para a instituição, por dificultar a sua evolução e o acompanhamento das mudanças sociais.

A meu ver, este sistema de voto unânime quanto à admissão, tendo as óbvias vantagens que tem, é também um importante causador de declínio da Maçonaria, sempre que as sociedades evoluem com mais rapidez. Por outro lado, obriga as Lojas a estarem atentas às evoluções sociais e os elementos que as constituem a não se deixarem enquistar em conceções retrógadas, sob pena de inelutável definhamento.

Reconhecendo o benefício para a coesão do sistema de voto unânime, mas procurando ultrapassar os seus malefícios, várias Obediências têm procurado adotar estratégias que, temperando a regra da unanimidade, permitam ultrapassar bloqueios perniciosos. Um dos meios utilizados é, na prática, acabar com a regra da unanimidade, exigindo uma maioria reforçadíssima, por exemplo, considerando votação favorável aquela que tenha apenas um ou dois votos contra. Compreendendo-se o propósito, o certo é que não há meios termos: ou se segue a regra da unanimidade ou não se segue. A exigência de apenas uma quase-unanimidade, se é certo que ultrapassa bloqueios, também liquida a responsabilidade global da Loja e permite que ocorra o que a Regra procura impedir, que surja uma situação passível de minar a sua harmonia, ou obstruir a sua liberdade, ou mesmo dividir ou dispersar a Loja; o que deve ser evitado por todos os bons e verdadeiros Irmãos.

 A Loja Mestre Affonso Domingues utiliza um sistema que concilia os dois propósitos, defender a coesão e evitar bloqueios indesejáveis: um sistema que denomino de unanimidade justificável. Consiste esse sistema na manutenção da exigência da unanimidade, mas impondo, em certas condições, a justificação de votos negativos. Assim: efetuada votação, se esta for pura e sem mácula, o candidato está aprovado; se houver três ou mais bolas negras, o candidato está rejeitado, independentemente do número de votantes e mesmo que esses votos negativos sejam uma muito pequena minoria; se se verificar a existência de uma ou duas bolas negras, o Venerável Mestre anuncia que, até à sessão seguinte, fica suspenso o apuramento do resultado e que, até lá, aquele ou aqueles que votaram negativamente, devem, em privado, comunicar-lhe as razões da sua oposição.

Se quem votou negativamente não se apresentar a comunicar as suas razões, conclui-se que o voto contrário foi fruto de mero lapso e, assim, é desconsiderado. Comunicando (sempre em privado e guardando o Venerável Mestre sigilo da sua identidade) o ou os opositores as razões da sua oposição, se estas forem fúteis ou irrazoáveis, o voto negativo é desconsiderado; se as razões apresentadas forem, ainda que meramente do ponto de vista individual de quem votou contra, consistentes e razoáveis, o Venerável Mestre, mesmo que delas discorde, tem de considerar o voto negativo válido - porque não decorrente de um mero lapso ou de motivo fútil ou irrazoável - e, portanto, o candidato não é admitido.

Assim se consegue manter a regra da unanimidade, mas evitar a sua perversão por mero lapso, futilidade ou irrazoabilidade. A Loja Mestre Affonso Domingues tem-se dado muito bem com este sistema, mantendo-se aberta à inovação e à diferença e preservando a sua coesão. Também é verdade que raramente um candidato tem bola negra na sua votação, mas isso deve-se a outra razão: é que o processo de seleção de candidatos da Loja Mestre Affonso Domingues é tão cuidadosamente seguido (e também muito morosamente seguido; mas isso acaba talvez por ser inevitável, se se quer ter cuidado com o que se faz), em etapas eliminatórias atentamente observadas, que raramente um candidato sobre o qual se coloquem dúvidas pertinentes chega à fase da votação; normalmente, nessa situação, perante essas dúvidas, o processo termina sem sequer se atingir essa fase...

Fonte:

Constituição de Anderson, 1723, Introdução, Comentário e Notas de Cipriano de Oliveira, Edições Cosmos, 2011, página 137.

Rui Bandeira

02 junho 2012

Conhece-te a ti mesmo



Morre o autor, vive a obra. Mesmo apócrifa, sabe-se ou supõe-se que a expressão conhece-te a ti mesmo terá sido proferida pela primeira vez na antiga Grécia há mais de vinte séculos. A tradição diz-nos que estaria gravada nos pórticos do Oráculo de Delfos, e atribui-a a uma multiplicidade de autores. Qual ditado popular, o γνῶθι σεαυτόν grego dá origem ao nosce te ipsum latino, e terá sido depois apropriada por uns e por outros, e sucessivamente redescoberta.

Mesmo perdida a fonte, chegou a nós a ideia, que é a pedra de toque da filosofia e método de Sócrates. A busca do autoconhecimento é essencial, instrumental e inevitável ao homem que procura saber mais. Afinal, a importância do que aprendemos reflete-se no quanto nos confronta connosco mesmos, na medida em que nos torna diferentes, em quanto abala do que temos sido para acomodar o que passamos a ser. Aprender não é só confirmar, incrementar e consolidar; é também - e sobretudo - questionar, derrubar e destruir, não só a ignorância, mas sobretudo algum saber já incrustado e inquestionado pela sua idade que, de repente, nos apercebemos não se harmonizar num todo equilibrado com o novo conhecimento que laboriosamente viemos a adquirir. É, por isso, imprescindível que nos recolhamos de vez em quando, paremos de acumular, olhemos para o que temos e tentemos aperceber-nos do que temos de bom, útil e belo - e deitar fora o que não serve.

Tudo isto a propósito do meu "desaparecimento". Escrevi o primeiro texto aqui no "A-partir-pedra" em Julho de 2010 - há quase dois anos, portanto. Tinha acabado de ser elevado a Mestre Maçon, e podia, por fim, escrever! De facto, durante três meses, com as palavras a brotar forte, escrevi dois textos por semana. Porém, a fonte começou a secar, deixando-me com algumas dificuldades em manter o ritmo. Bem me tinham avisado que isto não era um sprint, mas uma maratona... Nesse contexto, foi-me sugerido que passasse para um texto por semana, ritmo que mantive durante mais nove meses. Fechava-se, assim, um ano de textos, no fim do qual fiz uma paragem de um mês - de férias! Todavia, ao retomar a publicação de textos no blogue esperava-me o vazio. As ideias esvaiam-se, as palavras teimavam em não se perfilar, e os textos resistiam à sucessão das linhas, tornando a escrita de umas poucas linhas num extenuante parto semanal. Teimoso, lutei contra ele ainda durante quatro meses - de setembro a dezembro - período ao fim do qual tive que parar. Enquanto a transição do escrever por prazer para o escrever por obrigação fora suportável - deixando até um certo sabor a "dever cumprido" - não consegui persistir quando se tornou, afinal, num enorme sacrifício. Parei, sem data de regresso marcada.

Seis meses de silêncio fizeram-me bem. Tive tempo para trabalhar algumas ideias sem pressa de as apresentar. Tive tempo para, simplesmente, saborear as sessões de Loja sem a preocupação de procurar  tema para os textos seguintes. Tive, por fim, tempo para consolidar o que fora apreendendo, para colocar em prática as conclusões a que fui chegando, e para me avaliar em face dos meus propósitos. Pude identificar o que preciso de trabalhar a seguir, as falhas que devo corrigir, as lacunas que devo suprir com mais estudo. E, fruto talvez deste serenar, recobrei a vontade de escrever. Vamos ver quanto dura.

Paulo M.

30 maio 2012

Regras Gerais dos Maçons de 1723 - V

Nenhum homem pode ser Iniciado ou admitido como membro de uma Loja sem prévia comunicação, à mesma, com antecedência de um mês, para que se faça uma investigação sobre a reputação e capacidade do candidato, a não ser com autorização como a do número anterior.

Esta quinta regra determina dois princípios que ainda hoje continuam a ser escrupulosamente seguidos e que, sem dúvida, constituem pontos essenciais no processo de admissão de qualquer novo elemento: a Inquirição e a Exposição nos Passos Perdidos.

A Inquirição é o processo de tomada de conhecimento pela Loja de quem é aquele que se lhe quer juntar, quais os seus propósitos. Ou seja, de averiguação e certificação de que se trata efetivamente de alguém livre e de bons costumes, que de boa fé procura aceder e prosseguir no caminho do autoaperfeiçoamento, segundo o método maçónico. Ou ainda dito de outro modo, que se está perante um homem bom passível de se tornar um homem melhor.

Mas outros elementos são verificados no processo de inquirição, designadamente o enquadramento social e familiar do candidato e sua compatibilização com a atividade maçónica e as caraterísticas do candidato e sua capacidade de harmoniosa integração no grupo pré-constituído. Com efeito, muito difícil será que, por muito desejoso disso que esteja o candidato, proficuamente se trilhe um caminho maçónico com a oposição do cônjuge ou dos familiares próximos. A Maçonaria pressupõe sempre a prioridade que cada um dos seus elementos deve dar à família e, consequentemente, procura evitar conflitualidade entre a Família e a Maçonaria que, mais tarde ou mais cedo, obrigue à opção por uma ou por outra. A regra é a da harmonização entre as obrigações familiares (e também sociais e profissionais) e as obrigações maçónicas, não a do conflito entre ambas. Busca-se a coexistência e que cada vertente contribua para a melhoria do homem, assim mais bem integrado em cada uma das realidades. Sem a presença das necessárias condições de coexistência, o percurso maçónico, o propósito de melhoria, tornam-se impossíveis de concretizar. Por outro lado, a busca maçónica pressupõe que aquele que a deseja possua ideias próprias, assertividade e autoconfiança, mas implica também a necessária flexibilidade para se adaptar a um grupo que já existe e, oportunamente, poder contribuir para o seu fortalecimento, coesão e melhoria, não para ser fonte de conflitos, dispersões, enfraquecimento global.

Dentro de um padrão global, que se poderá considerar universal, cada Loja estabelece as suas práticas, métodos e prioridades no processo de Inquirição dos seus candidatos. A diversidade da natureza humana e dos grupos humanos é quase inesgotável. Não admira assim que um candidato que se acha adequado para se integrar numa Loja fosse, porventura pernicioso se incluído numa outra, tal como a integração numa Loja pode potenciar muito mais a evolução de um específico candidato do que se essa integração ocorresse numa outra Loja.

A exposição da candidatura nos Passos Perdidos, ou seja, a afixação do pedido de admissão à Iniciação do candidato em local próprio das instalações da Obediência para tal efeito, visa permitir que, no decorrer do processo de Inquirição, o máximo de elementos, quer da Loja, quer de outras Lojas da Obediência, tomem conhecimento do propósito existente e possa, assim, se for caso disso, expor qualquer objeção que tenha por pertinente. Procura-se assim evitar surpresas na avaliação do candidato, contraponto indispensável à plena e incondicional confiança que, uma vez admitido e iniciado, o grupo lhe devotará.

Uma referência à expressão "Passos Perdidos", que julgo exclusiva da Maçonaria Portuguesa. Em Portugal, os "Passos Perdidos" são o espaço, o hall exterior à sala das sessões da Assembleia da República. Nesta Casa da Democracia, muitos entendimentos são negociados, muitas estratégias políticas discutidas, muito do que é decidido na Sala das Sessões toma efetivamente forma nos Passos Perdidos. Por analogia, nas edificações maçónicas em Portugal designa-se por "Passos Perdidos" os corredores ou o hall exterior ao Templo onde se realiza a sessão maçónica. Por norma, é num desses espaços (por regra, não utilizáveis nem utilizados para atividades administrativas ou rituais) que se afixam as propostas de candidatura, para que fiquem disponíveis para apreciação de todos os obreiros. Daí que, em Portugal se designe essa afixação por exposição nos Passos Perdidos.

Uma única exceção existe para estas cautelas e este rigoroso processo de avaliação: a faculdade que assiste ao Grão-Mestre (ou Vice-Grão-Mestre em substituição do Grão-Mestre) de "fazer maçom à vista", isto é, iniciar alguém maçom, independentemente de prazos, inquirições ou exposições nos Passos Perdidos. Numa das existentes coletâneas de Landmarks, a de Mackey (popular, designadamente, no continente americano), integra mesmo o oitavo dos Landmarks elaborados. Na Regra dos Doze Pontos, documento fundamental da Maçonaria Regular europeia, não se faz expressamente referência a esta possibilidade de o Grão-Mestre "fazer maçons à vista". Mas a segunda Regra expressamente remete para a obediência aos Antigos Deveres, ou seja, às Regras Gerais dos Maçons fixadas por Anderson na Constituição de 1723. Esta é uma dessas Regras Gerais. Por esta via também a Maçonaria Regular europeia declara a prevalência do poder conferido ao Grão-Mestre de "fazer maçons à vista".´Este poder não se resume à Iniciação, estendendo-se à Passagem (ao 2.º grau, de Companheiro) e à Elevação (ao 3.º grau, de Mestre Maçom). Constitui uma das "válvulas de segurança" do sistema de regras maçónico para possibilitar a atuação excecional perante situações excecionais. É uma  regra de aplicação muito parcimoniosa, verdadeiramente excecional, hoje em dia francamente rara... mas existe e é aplicável, sempre que necessário o seja.       

Fonte:
 
Constituição de Anderson, 1723, Introdução, Comentário e Notas de Cipriano de Oliveira, Edições Cosmos, 2011, página 137.

Rui Bandeira

23 maio 2012

Regras Gerais dos Maçons de 1723 - IV

Nenhuma Loja deve iniciar mais de cinco Irmãos ao mesmo tempo. nem nenhum homem com idade inferior a vinte e cinco anos pode ser Mestre, a não ser que tal seja autorizado pelo Grão Mestre ou seu Vice-Grão-Mestre.

A quarta Regra Geral dos Maçons constante da Constituição de Anderson de 1723 refere-se a uma condição limitativa relativa à iniciação.

A Iniciação é a cerimónia pela qual um profano que se candidatou a integrar a Maçonaria adquire a condição de maçom, no grau de Aprendiz. É uma cerimónia que, com pequenas variantes, é executada da mesma forma desde há cerca de trezentos anos pelas Lojas de todo o mundo, qualquer que seja o rito que pratiquem. O essencial da cerimónia é o mesmo, independentemente de ritos, localização geográfica, língua, costumes, épocas. É uma cerimónia destinada a marcar o espírito daquele que a ela é submetido. Para que esse objetivo possa ser atingido, é essencial que o candidato desconheça o que se vai passar. É por essa razão - e unicamente por ela! - que os maçons se comprometem formalmente a não revelar o seu teor a qualquer profano. Sem embargo desse compromisso, a que, naturalmente, estou também vinculado, já neste blogue dediquei dois textos (A Iniciação - I e A Iniciação - II) ao tema. Foram dois textos que me deram satisfação em escrever, precisamente porque, cumprindo o meu compromisso de não revelar o que não deve ser revelado, permitem ao leitor ter a noção do que é esta cerimónia. Os profanos ficam com a noção do que estruturalmente é e de qual o seu propósito. Os maçons reconhecem no seu teor o que se passou. 

A IV Regra Geral interdita que se processe, em simultâneo, mais de cinco iniciações. Este limite é, hoje em dia, na generalidade das Obediências maçónicas, muito mais severamente restringido. Por exemplo, no Regulamento Interno da Loja Mestre Affonso Domingues expressamente se interdita a iniciação em simultâneo de mais do que dois candidatos. E mesmo esta possibilidade de dupla iniciação em simultâneo deve ser entendida como exceção. A regra é de que se deve procurar iniciar apenas um candidato de cada vez. 

Estipula esta regra IV que nenhum homem de idade inferior a vinte e cinco anos deve ascender ao grau de Mestre. É uma regra que, hoje em dia, não está expressamente prevista. Mas, na prática, só muito excecionalmente poderá um maçom ser exaltado Mestre com menos de vinte e cinco anos. É requisito de admissão na Maçonaria a maioridade, pelo que só após a mesma se dá início a qualquer processo de candidatura (e deve ter-se em conta que raramente homens tão jovens se candidatam e vêm a sua candidatura viabilizada, seja por falta do amadurecimento indispensável ao real interesse e propósito de autoaperfeiçoamento, seja por falta de estabilidade económica, profissional ou social que permita que o homem se dedique a algo que ultrapassa a satisfação das necessidades básicas e essenciais, do próprio e da sua família). O processo de candidatura é moroso, não sendo inédito - muito pelo contrário - que decorra por mais de um, dois, ou mesmo três anos. O tempo de permanência no grau de Aprendiz só muito dificilmente é inferior a um ano e é corrente que dure dois anos - e já vi atingir os três e mais anos. Igual tempo, ou quase, passa o maçom no grau de Companheiro. Muito dificilmente se é exaltado Mestre Maçom com menos de vinte e cinco anos. Pelo contrário, raros são os maçons que atingem esse grau com menos de três décadas de vida - e isto numa Obediência que se carateriza por ter muita gente jovem, como é a portuguesa GLLP/GLRP! Por isso refiro frequentemente que uma das virtudes necessariamente cultivadas pelos maçons e pelos que o desejem ser é a Paciência!

A última indicação que esta IV Regra nos dá é que as condições limitativas nela expressas podem ser derrogadas pelo Grão-Mestre ou pelo Vice-Grão-Mestre. Em Maçonaria Regular, há regras estritas que nem o Grão-Mestre pode derrogar (os Landmarks) e regras que a autoridade do Grão-Mestre pode derrogar - obviamente, com caráter de excecionalidade. São poucas e cuidadosamente previstas, sempre de forma expressa. Constituem estas exceções como que válvulas de segurança para que sejam atendidas situações excecionais, que só com medidas excecionais adequadamente podem ser atendidas. E só àquele Mestre investido nas funções de Grão-Mestre (ou o seu substituto, o Vice-Grão-Mestre) é conferido o poder de, mediante o seu discernimento, e mediado pela sua prudência, determinar quando deve haver lugar a uma atuação excecional. Na prática, raramente sucede - e assim deve ser!

Fonte:

Constituição de Anderson, 1723, Introdução, Comentário e Notas de Cipriano de Oliveira, Edições Cosmos, 2011, página 137.

Rui Bandeira