05 outubro 2010

5 de Outubro, revolução e maçonaria


Não pode deixar-se passar a data de 5 de Outubro - aniversário da implantação da República em Portugal - sem se falar na Maçonaria. É público e conhecido o papel que a maçonaria teve neste evento. De facto, a revolução não só terá sido promovida, arquitetada e executada - pelo menos em parte - por maçons, como a maçonaria terá na mesma participado ativamente de forma institucional.

O que poucos saberão é que tal modo de atuação é daqueles que distingue a Maçonaria Regular da Maçonaria Liberal. Não se questiona o mérito da causa, mas a forma e os meios utilizados. De facto, as razões invocadas para a revolução - o despotismo político-religioso, a ausência de liberdade de culto e da liberdade de consciência que se viviam no regime de então - são válidas e meritórias, e pode mesmo dizer-se que pertencem ao ideário maçónico. Todavia, algumas questões de fundo separam inexoravelmente as duas correntes da Maçonaria - Regular e Liberal - e podem ser apreciadas neste contexto.

Por um lado, tomemos a questão da discussão de política e religião em loja. Pelo que se sabe, esta revolução - como outras - foi preparada durante sessões de loja. Forçosamente se discutiu o mérito desta política sobre aquela e - sabendo-se que havia maçons quer na fação republicana quer na monárquica - certamente houve vozes minoritárias que viram os seus Irmãos, a sua Loja, e mesmo a sua Obediência, agirem como um corpo na prossecução de objetivos e de ideias contrários aos seus. Por fazer prevalecer, na escala dos valores, a harmonia fraterna, é que a maçonaria regular proíbe essas discussões, para que não se estabeleçam partidos opostos dentro das lojas, para que estas não escolham lados, e para que as grandes lojas não manifestem preferências que poriam, em qualquer dos casos, uns "de dentro" e outros "de fora".

Por outro lado, atente-se a que a maçonaria regular exige dos seus membros que sejam cidadãos cumpridores das leis do país. Ora, esta questão tem duas consequências. Por um lado, de forma mais imediata, implica que caso um maçon seja condenado pelo sistema judicial civil por um crime que tenha cometido, sofrerá quase que por certo uma sanção disciplinar no seio da sua Obediência, sanção essa que poderá mesmo constituir a sua expulsão (mas, evidentemente, ninguém é expulso por algo como uma multa de estacionamento). Por outro lado, esta exigência reflete-se nas Obediências, não sendo reconhecidas a nível internacional aquelas que, para existirem, impliquem que os seus membros cometam algume ilegalidade; por exemplo, se as leis do país passarem a proibir a Maçonaria, e mesmo assim uma Grande Loja continue a existir - cometendo uma ilegalidade - ser-lhe-á retirado o reconhecimento internacional por parte das outras Grandes Lojas regulares. 

Tais condicionantes - a proibição de discussão política e religiosa, e a obrigação de cumprimento da lei do Estado - não se verificam na Maçonaria Liberal. Cada maçon que pertença a uma Obediência da Maçonaria Regular é livre de agir como a sua consciência lhe dite e continuar a ser maçon - desde que não cometa nenhum crime. Participar de  - e, especialmente, promover - uma revolução, atentando contra os órgãos do Estado, é um crime contra o mesmo Estado, e não é considerado pela Maçonaria Regular uma forma aceitável de se agir. Entendimento diametralmente oposto tem a Maçonaria Liberal, que argumenta que uma lei injusta não tem legitimidade, que crime seria observá-la, e que promove o seu derrube.

Dois pontos de vista.
Duas formas de agir.
Duas Maçonarias.

Paulo M.

02 outubro 2010

Poema à Amizade


Pode ser que um dia deixemos de nos falar...

Mas, enquanto houver amizade,
Faremos as pazes de novo.

Pode ser que um dia o tempo passe...
Mas, se a amizade permanecer,
Um de outro se há-de lembrar.

Pode ser que um dia nos afastemos...
Mas, se formos amigos de verdade,
A amizade reaproximar-nos-á.

Pode ser que um dia não mais existamos...
Mas, se ainda sobrar amizade,
Nasceremos de novo, um para o outro.

Pode ser que um dia tudo acabe...
Mas, com a amizade construiremos tudo novamente,
Cada vez de forma diferente.
Sendo único e inesquecível cada momento
Que juntos viveremos e nos lembraremos para sempre.

Há duas formas para viver a sua vida:

Uma é acreditar que não existe milagre.
A outra é acreditar que todas as coisas são um milagre.

Albert Einstein

01 outubro 2010

Correlação e causalidade (III)



Por esta hora estarão já uns quantos a pensar: "Podia ter-lhe dado para pior. Falar de coisas que nada têm que ver com a Maçonaria num blogue sobre Maçonaria..." Quem assim pensar está rotundamente equivocado, por três razões.

Em primeiro lugar, porque, como disse já, confundir estes dois conceitos leva-nos a conclusões precipitadas e, frequentemente, erradas e afastadas da verdade, porque ilógicas; e o estudo da Lógica é parte integrante da formação de um maçon. De facto, o estudo das Artes Liberais - base da formação para o gentlemanship - é promovido e incentivado entre os maçons.

Em segundo lugar porque um meio a que os maçons recorrem para se aperfeiçoarem consiste, precisamente, na exposição aos demais das sua próprias conquistas, das suas próprias conclusões e do seu próprio aperfeiçoamento, para que cada um possa dela retirar os ensinamentos que tiver por convenientes. Neste caso, estes textos, decorrentes da minha própria pesquisa e especulação, refletem o meu percurso na busca de algumas razões que quero agora partilhar convosco.

Como sabeis, uma das diferenças entre a Maçonaria Regular e a Maçonaria Liberal consiste na obrigatoriedade - numa - e a sua ausência - na outra - de crença num Ser Supremo, a que chamamos, para não dar prevalência à terminologia de nenhum credo religioso, "Grande Arquiteto do Universo". Começando por ser estritamente cristã, a Maçonaria Regular alargou o âmbito das fés "aceites", até aceitar qualquer crença em qualquer Ser Supremo, desde que não fosse a crença em coisa nenhuma. A Maçonaria Liberal aceita no seu seio quem tenha ou não qualquer crença. A Maçonaria Regular proíbe a discussão ou controvérsia religiosa ou política em loja; a Maçonaria Liberal promove ambas.

Mas porquê estas restrições? Não poderá surgir uma discussão sadia sobre religião entre pessoas de entendimentos religiosos distintos? Não poderá ser útil a discussão política entre irmãos de facções opostas, quiçá promovendo um entendimento que em mais contexto algum seria possível? E não poderia um ateu aperfeiçoar-se e auxiliar outros no seu respetivo aperfeiçoamento, com respeito pela crença dos demais? Claro que sim! Então porque é que nem um Grão-Mestre, com a unanimidade de toda a sua Obediência,  pode mudar alguns princípios da Maçonaria Regular?

Estas questões colocavam-se-me há já algum tempo, quando me surgiu uma resposta: os Landmarks da Maçonaria nada explicam, apenas enunciam, e isso basta. Não é necessário saber-se de que é feita uma aspirina - e muito menos entender-se como interage com o nosso organismo - para que ela nos livre de uma dor de cabeça. Não precisamos de provar a causalidade para nada - basta-nos constatar a correlação. Toma-se a aspirina e - puf! - lá se foi a dor de cabeça. Mesmo sem se perceber porquê.

Do mesmo modo, determinadas regras - algumas velhas de três séculos - não precisam de se justificar.  Passaram já a prova do tempo, e este tem-lhes dado razão. São como são, e moldam a Maçonaria de um modo com que os maçons se identificam. Como a aspirina, funcionam sem que saibamos muito bem porquê. Se compreendermos como funciona a aspirina, e com base nesse conhecimento a alterarmos de modo que atue de outra forma, tenha outros efeitos, trate doutras patologias, obteríamos talvez um medicamento melhor - mas não era aspirina. Também podíamos passar a aceitar que se jogasse futebol com a mão - mas o jogo,  ao sofrer tal alteração de dinâmica, deixava de ser futebol. E também como é evidente, muita coisa se poderia mudar na Maçonaria - mas deixava de ser, de certeza, a Maçonaria que conhecemos e, quem sabe, deixaria, de todo, de ser Maçonaria. E por isso, mudar por mudar, fica como está.

Paulo M.

29 setembro 2010

André Franco de Sousa, maçom nacionalista angolano

André Franco de Sousa passou ao Oriente Eterno em 17 de agosto de 2010.

Foi um dirigente nacionalista angolano, nos anos 50 do século passado, e um dos fundadores do MPLA.

Foi um dos envolvidos no "processo dos 50" e esteve preso no Tarrafal. Depois do 25 de Abril, com Aurora Verdades, fundou um partido político, que não vingou. Depois do Acordo do Alvor, assinado entre Portugal e os três movimentos de libertação reconhecidos, tomou posse o Governo de Transição e André Franco de Sousa partiu para Portugal.

Aqui escreveu e publicou, em 1998, o livro “Angola, o Apertado Caminho da Dignidade” onde explicou as razões pelas quais era um opositor ao partido que fundou, o MPLA.

Foi um dos fundadores da Mestre Affonso Domingues. Ainda me recordo de com ele ter estado em várias reuniões de Loja. Depois, fundou outra Loja, para onde se transferiu, e raramente o passei a ver, normalmente em assembleias de Grande Loja.

Conheci-o já idoso. Manteve sempre o seu apreço pela Democracia, que o levara a cortar com a organização que fundara. Dele guardo uma imagem de completa serenidade e enorme simpatia.

Contou-se, embora brevemente, entre os obreiros da Mestre Affonso Domingues. Foi um dos nossos e como um dos nossos é aqui recordado. Foi um dos veteranos que criaram as condições para a Loja ser o que ela é. Estamos-lhe gratos pelo seu contributo.

Há já alguns anos que a doença o afastara do nosso convívio e o André se encaminhava para o nicho das recordações. Das boas recordações. Agora ali encontrou, em definitivo, o seu lugar.

Rui Bandeira

28 setembro 2010

Terminando um periodo

Chega ao fim um período. Foram três anos e meio de mandato (2 + 1 ½), mas na verdade foram 4 anos desde o anuncio formal da candidatura do Mário ao cargo de Grão Mestre.

Foram muitas conversas, muitas opiniões trocadas, muitas idas à Mexicana para “despacho” (ou só mesmo para um café).

Foram muitas gargalhadas, sorrisos, cumplicidades, e mesmo algumas preocupações. O lema era, temos que nos divertir a fazer isto.

Foi também muito trabalho feito, por todos os que receberam as várias incumbências, que apareciam sempre numa chamada telefónica simpática e preferencialmente com estes termos “ não achas que seria importante….”. Impossível recusar.

Duas hipóteses se me põem para continuar este texto. Torná-lo longo e extenso, ou curto e conciso.

Opto pela segunda porque enumerar o que aconteceu ao longo destes últimos anos seria impossível.

Apesar de cada vez que falamos o Mário me dizer que eu tenho mais 4000 anos de sabedoria que ele, na verdade foi ele que me ensinou quase sempre, mesmo quando discordávamos, e se discordámos.

Quero pensar que fizemos uma boa equipa, e que o resultado final sendo positivo, se resume a uma Grande Loja melhor e mais estruturada, mais muito mais por intervenção do Mário.

Mário, Muito Respeitável Irmão, Antigo Grão Mestre, mas para mim e para mais uns quantos – Tio Mário ou melhor Muito Respeitável Tio – obrigado pelo trabalho que fizeste e que proporcionaste fazer.


José Ruah

27 setembro 2010

Correlação e causalidade (II)



Quando, ainda pequenos, começamos a aperceber-nos do mundo que nos rodeia, tudo é inesperado, e o controlo que temos sobre a nossa realidade imediata é muito reduzido. Com a repetição dos acontecimentos em circunstâncias semelhantes vamo-nos apercebendo de padrões, coisa que o nosso cérebro está especialmente "afinado" para detetar. Apercebemo-nos, deste modo, que logo após uma coisa sucede, normalmente, uma segunda e, ao fim de algumas repetições, quais cães de Pavlov, começamos a salivar logo que ouvimos a sineta.

Pode ser impossível memorizar todas as ocorrências de um fenómeno frequente, mas muito fácil recordar uma regra que as traduza e resuma. A questão que se coloca é, por um lado, a da fiabilidade da regra para explicar os acontecimentos passados, e por outro a capacidade de prever os acontecimentos futuros. E, mesmo quando a encontramos - a regra perfeita que explica a correlação perfeita - nada fica explicado, apenas registado.

Suponhamos que eu pego num copo de água e o provo. Não sabe a nada - ou não deve saber, pois a água pura é insípida e inodora. Agora pego num pouco de açúcar, deito-o na água e provo. A água passou a "saber a doce"! Posso repetir esta experiência as vezes que quiser, até chegar a uma conclusão: de todas as vezes que deitei açúcar na água a água ficou doce. A partir desta constatação vou inferir uma regra que, espera-se, seja universal: sempre que alguém deitar açúcar na água, esta fica doce. Estabelecemos uma correlação.

Esta informação é útil? Claro que sim. Perguntem-no a qualquer pessoa que trabalhe numa cozinha. Mas explica verdadeiramente alguma coisa? Claro que não. Ficamos a saber que a água fica doce, mas não sabemos porquê. Para isso, teremos que estudar as papilas gustativas, os recetores que detetam os iões presentes no açúcar, e os estímulos gerados nas mesmas para o cérebro. Aí, sim, podemos dizer que entendemos o fenómeno, e que, da correlação, passámos à causalidade: o açúcar é, de facto, a causa do sabor a doce. Com base nesta informação, e cientes de como funciona a nossa língua, podemos, agora, inventar coisas novas, como adoçantes que não tenham as propriedades do açúcar. E que nos adianta isso sobre o conhecimento inicial de que o açúcar adoça a água? Por vezes, muito; as mais das vezes, nada para além da satisfação de entendermos um pouco melhor o nosso mundo.

A maioria do conhecimento que temos é meramente correlacional, e não estabelece qualquer prova quanto à causalidade. Uma correlação consegue-se pegando nos dados, na observação dos fenómenos repetidos muitas vezes, e inferindo, através de métodos matemáticos, uma ligação entre eles. A correlação, contudo, nada demonstra por si mesma. Peguemos, por exemplo, no crescimento semanal, em centímetros, das tulipas de uma certa estufa, ao longo de alguns meses; e no preço, em euros, das botas de neve numa loja de desporto.  Poderia suceder, por mero acaso estatístico - ou por qualquer outra razão - que houvesse um a correlação perfeita entre ambas as medidas. Uma correlação é algo de objetivo e indesmentível por definição: contra factos não há argumentos, como se costuma dizer.

Já o mesmo não pode dizer-se das conclusões de causalidade supostamente decorrentes de tal correlação. Seria, por exemplo, pouco sensato dizer-se que "o crescimento das tulipas torna as botas mais caras", ou que "as tulipas crescem tanto melhor quanto mais caras estiverem as botas de neve". Pior, ainda, seria aumentar-se o preço das botas esperando que isso aumentasse a taxa de crescimento das tulipas... Já, por outro lado, dizer-se que "quanto mais alta a temperatura, mais crescem as tulipas por um lado, e mais raras são as botas de neve nas lojas - pois terão sido vendidas na época fria - o que as torna mais caras" pode ter todo o cabimento - mas carece de demonstração para se poder estabelecer uma causalidade.

Contrariamente à correlação, estritamente objetiva, a causalidade implica sempre uma dose de especulação e de juízo sobre os dados objetivos que lhe darão suporte. Estabelecer uma correlação é, muitas vezes, trivial; provar uma causalidade é, por outro lado, frequentemente um desafio, para não dizer impossível. É, quase sempre, um trabalho árduo. Contudo, provar-se uma causalidade permite-nos chegar mais fundo, entender melhor, alargar o conhecimento dos conceitos em causa, coisas que a mera correlação não garante. Deveremos, por isso, abandonar as correlações e focar-nos nas causalidades? Claro que não. Devemos é saber distingui-las, dar a umas e a outras o devido valor e, acima de tudo, não tomar por causalidades o que não passa de meras correlações - falácia que muitos órgãos de comunicação social, ávidos da nossa atenção, repetem vezes sem conta.

Paulo M.

26 setembro 2010

O dia foi bom para a Mestre Affonso Domingues

Ontem o dia foi bom para a Loja Mestre Affonso Domingues.

Ficou demonstrado que o trabalho arduo é o caminho a seguir.


José Ruah

O Sexto Grão Mestre

Foi ontem, perante uma assembleia de varias centenas de irmãos portugueses e estrangeiros, instalado o Sexto Grão Mestre da GLLP/GLRP, José Francisco Moreno de seu nome.

O MRGM J.Moreno, é obreiro da Grande Loja há muitos anos e o seu CV maçónico foi já aqui publicado por ocasião do processo eleitoral.

José, como o trato, perdão Muito Respeitavel José, é um companheiro de caminho desde 1992, quando foi iniciado na Loja Mestre Affonso Domingues, da qual sempre foi obreiro e Veneravel Mestre.

A sua instalação enquanto Grao Mestre é um corolário do seu caminho maçónico de então a até hoje.

Pessoa de poucas palavras e muitos actos, nele ficam agora depositadas as esperanças de um mandato tranquilo e proficuo.

E como muito bem disse o actual VM da Mestre Affonso Domingues, Irmao José Moreno vais daqui emprestado ao oficio de Grão Mestre mas concluido que for o teu desempenho queremos-te de volta na Loja.

Votos de bom trabalho

José( como ele me chama a mim)

24 setembro 2010

Correlação e causalidade (I)

 
O governo de um país, preocupado com as assimetrias verificadas no rendimento escolar dos seus cidadãos mais jovens, encomendou um estudo que permitisse determinar uma forma eficaz e eficiente de aumentar os níveis de literacia da porção mais desfavorecida dessa faixa populacional. A metodologia adotada era simples e, aparentemente, inatacável: pretendia-se estudar as famílias cujos filhos tivessem melhor rendimento escolar, e isolar as variáveis determinantes para as diferenças verificadas. Notou-se, durante o estudo, que havia, nas casas dos miúdos com melhores notas, determinados livros que pautavam pela ausência nas famílias dos miúdos com resultados mais baixos: clássicos da literatura, livros infantis e juvenis, dicionários e enciclopédias, entre outros.

Face a isto, o que decide o governo fazer? Ora, muito apropriadamente, estabelecer uma "biblioteca familiar básica" com base nos livros detetados, adquirir milhões de livros e, semanalmente, enviar um diferente para cada uma dessas famílias cujas crianças tinham piores notas. Excelente ideia - no papel. E o resultado? Zero. Os livros não tiveram qualquer impacto mensurável.

"- Mas como é possível?!" - perguntarão. Muito simplesmente - especulou-se depois - porque não era dos livros que decorriam as boas notas, mas de toda uma cultura familiar de que os livros eram um mero sintoma. Assim, nas famílias cujos pais detinham um nível de escolarização superior, ou um nível cultural mais elevado, era natural que existissem livros que lhes interessassem ou que achassem que interessariam aos filhos. Os bons resultados adviriam do tipo de contacto, de atividades, do estilo de educação que os pais imprimiam nos filhos, e quem nem um milhão de livros poderia substituir.

Mas não nos fiquemos por aqui. Já todos ouvimos certamente dizer que "um ou dois copos de vinho tinho por dia tomados às refeições fazem bem ao coração". De facto, há estudos que apontam para uma fortíssima correlação entre o consumo moderado e regular de vinho tinto e uma boa saúde cardíaca. O que poucos saberão é que, estudo clínico após estudo clínico, as farmacêuticas têm - em vão - tentado isolar as substâncias do vinho responsáveis por esse efeito. Parece que o efeito se desvanece assim que o vinho é separado nas substâncias que o constituem. Pior: se o vinho tinto, por si mesmo, foi administrado como se de um medicamento se tratasse, de forma controlada e medida, deixa de apresentar qualquer efeito.

Uma vez mais, conjetura-se que quem pratica esse consumo moderado - os tais dois copitos por dia de vinho tinto - é quem, por um lado, tem algum poder económico que lho permita, e por outro lado não caia em exageros ou em excessos de consumo. Em suma: alguém com dinheiro para investir na sua própria saúde e bem-estar, e com um estilo de vida descontraído que lhe permita fazer refeições sem pressas, quiçá em boa companhia, mesmo que não consuma vinho, terá certamente menos problemas cardíacos do que a média... Uma vez mais, o consumo de vinho seria um sintoma, um indicador, e não uma causa.

Estes exemplos são bem ilustrativos da diferença entre "correlação" e "causalidade". Para haver correlação entre dois fenómenos basta que se detete que quando um se verifica mais, ou outro também se verifique mais (ao que se chama uma correlação positiva), ou se verifique menos (caso em que passa a ser uma correlação negativa). No primeiro caso havia uma correlação entre os livros e o sucesso escolar; no segundo, entre o consumo de vinho e a doença cardíaca. Contudo, para que haja causalidade, é necessário que se prove que uma das ocorrências foi causada pela outra - o que nem sempre é fácil, pois obriga a que se descubra, com perfeita clareza, os mecanismos que leva de um estado ao outro.

De facto, a indústria farmacêutica desconhece as razões por detrás do funcionamento de muitos medicamentos à venda no mercado; não fazem ideia de qual seja o nexo de causalidade, apenas conhecem a existência de uma correlação. Para estabelecer a correlação basta observar e reter; contudo, para determinar a causalidade é necessário, através do raciocínio, procurar a regra, a fórmula, a razão por detrás dos fenómenos ocorridos. Especulativa que é, cada uma dessas regras pode sempre ser refutada caso se encontre um caso concreto à qual ela se não aplique; tem, então, que se encontrar uma nova regra de que decorram os mesmos resultados para o que foi já estabelecido, mas que comporte ainda os resultados dos casos novos.

É esta a base do conhecimento e do método científicos: a observação - e mensuração - repetida dos fenónenos, a especulação das regras a partir dos resultados, e a validação das regras ao longo do tempo. E que tem isto que ver com maçonaria, perguntareis? Tudo! Um maçon é um homem tendencialmente esclarecido e completo, e distinguir estes dois conceitos - correlação e causalidade - é essencial para a compreensão de muitos argumentos, e para o desmontar de muitas falácias e desonestidades intelectuais que tolhem e limitam a nossa capacidade de escolha - pois que, só na medida directa em que estamos de posse da verdade, é que podemos verdadeiramente agir com liberdade.

Paulo M.

22 setembro 2010

O Visitante, o Viajante e o Turista


Três homens decidiram deslocar-se a uma grande cidade, uma daquelas cidades que todos desejamos conhecer, com história, dimensão, vida, monumentos, museus, teatros, cinemas, enfim, uma metrópole moderna. Todos eles dispunham de tempo e meios para por lá ficarem um mês e todos eles iam decididos a fazer a "viagem da sua vida" e a ficar a conhecer aquela cidade o mais profundamente possível. Esses três homens eram, como é natural, diferentes e cada um preparou e realizou a expedição à sua maneira.

O primeiro homem, chamemos-lhe Visitante, contratou através da sua agência de viagens os serviços do melhor operador turístico da cidade, que lhe preparou meticulosamente a estada. Chegado a essa cidade, o Visitante tinha preparado um completo programa de trinta dias de visitas guiadas a tudo o que a cidade de melhor tinha para oferecer aos seus visitantes. Foi uma visita inesquecível! O Visitante foi guiado pelos melhores museus da cidade, onde lhe foram mostradas as mais significativas obras de arte que aí havia e as mesmas foram explicadas, enquadradas histórica e artisticamente. Foi guiado nas visitas aos mais relevantes monumentos, sendo-lhe chamada a sua atenção para o seu significado histórico, os detalhes da sua construção e a sua utilização nos dias de hoje. O operador reservou-lhe bilhete para assistir ao melhor espetáculo da cidade, proporcionou-lhe um guia para o conduzir pelas mais esconsas vielas da Cidade Antiga, pelos mais pitorescos recantos, pelos mercados mais tradicionais, apresentando-o a interessantes pessoas que ali viviam ou trabalhavam. Também ao Visitante foram mostradas as mais deslumbrantes paisagens da cidade e proporcionados demorados e agradáveis passeios nos mais agradáveis parques e jardins ali existentes. Claro que foi conduzido também às melhores, mais concorridas, completas e diversificadas zonas comerciais da cidade, onde o Visitante pôde admirar a maior variedade de objetos e bens de consumo e adquirir o que lhe interessou adquirir. Visitou a Universidade e as Bibliotecas, guiado por um culto guia que o operador contratou para o efeito. Visitou o Parlamento e os mais emblemáticos edifícios onde funcionavam os representantes políticos da urbe e do país, ouvindo as explicações de um guia especializado, que o esclareceu sobre as circunstâncias e a prática política ali vigentes. Maravilhou-se com a grandiosidade dos edifícios religiosos, enquanto ouvia as informações e explicações proporcionadas pelo guia especialista em Arte Sacra que o operador turístico contratou para o efeito. Enfim, foram trinta dias de algum cansaço, muitas visitas, muitos conhecimentos novos para digerir, mas foi realmente uma viagem extraordinária! No regresso, o Visitante pensava na melhor forma de elucidar os seus conterrâneos sobre as maravilhas, as riquezas, as belezas, que existiam naquela deslumbrante metrópole.

O segundo homem, designemos-lhe por Viajante, preparou e realizou a sua viagem de forma muito diferente. Não contratou os serviços de qualquer operador turístico, dispensou excursões e visitas guiadas. Preparou a sua viagem lendo tudo o que conseguiu descobrir sobre a cidade, a sua história, os seus monumentos e locais de interesse, as suas gentes. E mal desembarcou na cidade e se instalou no hotel escolhido, lançou-se numa contínua exploração da cidade. Também visitou, mas por si só, museus. Não viu tudo. Não teve ninguém que lhe chamasse a atenção para as melhores obras. Mas viu o que antecipadamente lera que era importante ver, apreciou demoradamente aquilo de que gostou, passou mais brevemente pelo que achou menos significativo. Também visitou e fotografou os monumentos da cidade, descobrindo ângulos curiosos, vestígios do passado interessantes. Falou com os guardas dos monumentos e descobriu curiosas e picarescas histórias, do passado e do presente, por eles contadas. Perguntou aos habitantes locais que espetáculos interessantes havia e acabou por ir ver um par de espetáculos que não constavam dos circuitos turísticos, que o elucidaram sobre a genuinidade das gentes daquela terra. Vagabundeou pela Cidade Antiga e ali se perdeu horas esquecidas, recanto aqui, conversa acolá, absorvendo a atmosfera da cidade e da sua história e da sua vida. Provou o que se vendia nos mercados, comeu as comidas típicas da cidade, confraternizou à roda de uns copos com genuínos habitantes da cidade, apercebeu-se dos seus anseios e desilusões, das suas alegrias e tristezas, do seu labor e do seu ócio. Passeou por agradáveis jardins, observando as brincadeiras das crianças e nelas se intrometendo. Conheceu muita gente, conversou, ouviu histórias interessantes, soube onde adquirir as mais genuínas coisas da cidade ao melhor preço, visitou fábricas e locais de trabalho, escolas e locais de culto. Em descontraída manhã de domingo, ousou mesmo jogar com um grupo de jovens o desporto preferido na cidade e - claro! - perdeu... Falou com taxistas e polícias, vendedores e ardinas, artesãos e comerciantes, enfim embrenhou-se no coração da cidade, misturou-se com as suas gentes, viu e visitou a cidade e tudo o que de bom e bonito ela tinha pelos olhos dos seus habitantes. Quando findou o tempo que tinha reservado para aquela visita, o Viajante quase se sentia um novo habitante daquela urbe, dela partia com alguma pena. Na sua máquina fotográfica, tinha mais fotografias de pessoas do que de monumentos, mas cada imagem de cada pessoa recordava-lhe um momento único, uma história curiosa, um episódio pitoresco. Na viagem de regresso, pensava de si para si que ficara mesmo a conhecer a cidade e as suas gentes e que talvez fosse interessante elucidar os seus conterrâneos como se vivia naquela importante urbe.

O terceiro homem, refiramo-lo por Turista, antes de viajar, comprou um guia de viagem relativo à cidade, consultou-o e assinalou meia dúzia de monumentos a visitar, viu quais os restaurantes recomendados, anotou as mais agradáveis esplanadas. Escolheu cuidadosamente o hotel onde ficaria. Chegado à cidade, instalou-se no hotel e tratou de descobrir os serviços que proporcionava. Reservou um dia para utilizar o SPA, comprou umas horas de consumo de Internet, para que, diariamente, ou quase, reservasse um pedaço do dia a ler as notícias do seu país. Contratou, para determinado dia, uma visita guiada à cidade, daquelas de autocarro aberto com guia de microfone, que vai debitando informações sobre o que se vai vendo. Visitou descansadamente a cidade. Viu os monumentos que selecionara, calma e descontraidamente. Comeu em todos os restaurantes que referenciara. Passou agradáveis fins de tarde em sossegadas esplanadas. Passeou quando lhe apeteceu, olhando para onde o seu olhar caía, falando com quem o acaso colocava perto de si, ouvindo os ruídos ou músicas que a sorte e o local proporcionavam, cheirando aqui o perfume de flores, ali o odor de comida. Enfim, descansadamente viu o que quis ver, visitou o que lhe agradou visitar. Descansou e andou, parou e avançou. Voltou aos locais que mais lhe agradaram. Nem sequer passou por onde não lhe interessava. No regresso, satisfeito e repousado, começou a germinar na sua mente algo que decidiu partilhar com os seus conterrâneos.

Caro leitor, faça agora uma pausa, pense e decida de si para si: qual dos três agiu melhor? E qual o pior?

A minha opinião é que nenhum foi melhor ou pior do que os demais. Cada um viu a cidade da e pela forma que a ele mais lhe convinha. Todos tiraram proveito da estada. Certamente proveitos diferentes - mas isso não é melhor nem pior, apenas diferente!

O Visitante, de regresso a casa, escreveu um exaustivo guia de viagem sobre a cidade, pelo qual os seus conterrâneos quase podiam saber tudo o que havia a saber sobre ela, mesmo antes de lá chegarem. O Viajante escreveu um livro de viagem, que retratou, com grande fidelidade, como era, como vivia, o que sentia, a gente daquela cidade. As suas impressões, os seus relatos permitiram a quem leu esse livro saber como é realmente, por dentro, essa cidade e como são os seus habitantes, mesmo antes de lá irem. O Turista, esse, regressado da sua despreocupada, descansada e nada exaustiva viagem... escreveu um romance passado naquela cidade. Quem o leu, admirou, além da qualidade da escrita e da trama da história, a forma como daquelas páginas se desprendia, leve mas sensivelmente, a atmosfera da cidade.

Que tem isto que ver com Maçonaria? Releia, caro leitor, o meu último texto sobre os Altos Graus. O Visitante simboliza o maçom que decide percorrer os Altos Graus, fazer a sua viagem apoiado no guia. Tudo aprende, certinho, direitinho. Compensa a falta de espontaneidade com a qualidade e quantidade do saber que recolhe. O Viajante simboliza o maçom que opta por seguir o seu caminho por si, fazendo a sua busca desenvolvendo ele as noções que aprendeu no seu percurso até à sua Exaltação como Mestre Maçom. Não tem a sua viagem tão organizada, tão completa, mas vive intensamente a sua busca. Não recolherá talvez a quantidade de ensinamentos passível de ser recolhida numa viagem organizada, mas recolheu o que lhe interessa e, no que lhe interessa, aprende a fundo. Vive a sua viagem e apreende a essência dela. E o Turista? Esse é o maçom que não se preocupa grandemente com tempos e saberes. Faz a sua viagem, segundo o seu tempo, o seu ritmo, os seus gostos. Não conhecerá tão profundamente como os outros, mas tudo vê, talvez mais de passagem, talvez mais intermitentemente, mas sempre de uma forma para si agradável. Só vai à Loja quando lhe apetece ir à Loja, uns anos exerce ofícios, noutros não está nisso interessado. Quando vai, quando está, participa e contribui. Mas nem sempre está disponível, necessita das suas pausas nas esplanadas. Faz a sua viagem como gosta, ao seu ritmo. Não aprende tanto como o Visitante, nem tão profundamente como o Viajante, mas o que aprende, aprende com gosto e por gosto e disso retira proveito. E partilha-o.

Todos fazem a sua viagem conforme preferem. Todos partilham o que aprendem com ela. Cada um à sua maneira. É útil partilhar a erudição. Mas também é útil partilhar a profundidade, a vivência, a genuinidade. E não menos útil é partilhar a Beleza, a satisfação, que se tira da viagem, seja ela mais esforçada ou mais descansada. Nenhuma forma de viajar é melhor do que a outra. São, simplesmente, diferentes.

Afinal, o Visitante, que tudo aprendeu na sua primeira estada, quando voltar, já só voltará a lugares escolhidos, para relembrar a sua beleza e terá disponibilidade para sentir a vida do povo do lugar. E o Viajante, que conheceu ao início como vive a cidade, quando voltar certamente quererá saber mais sobre os seus monumentos e sua história, dará mais atenção à erudição, mas também apreciará fazê-lo mais descansadamente, com mais pausas, para melhor apreciar a atmosfera da cidade. E o Turista, esse, sempre visitando ao seu descansado ritmo, quando volta aprende mais um pouco e mais profundamente.

Não importa como se começa, como se prefere fazer a viagem. O que importa é fazê-la e ir aliando a Sabedoria (os conhecimentos privilegiados pelo Visitante), à Força (a profundidade, a vivência, a genuinidade, em primeiro lugar buscadas pelo Viajante) e à Beleza (descansadamente privilegiada pelo Turista).

Maçonaria é vida, faz parte da vida, é uma forma de aprender e apreciar e viver o mundo à nossa volta. De evoluir com a nossa vivência. E sobretudo de partilhar a nossa vivência, os nossos conhecimentos, a nossa evolução com os demais e beneficiar da partilha do que os demais nos proporcionam. Em suma, de cada um fazer a sua viagem, da forma que prefere e de que retira mais proveito e partilhar esse proveito com os demais, pela forma como melhor o conseguir fazer.

Rui Bandeira

20 setembro 2010

Dos demónios e falsos deuses


É infelizmente frequente - e, na última década, tem-no sido mais do que nas anteriores - ouvir-se os seguidores de uma religião atacarem e denegrirem os seguidores de outras. De cada lado se vê quem, aferrado às suas "razões", esgrime argumentos teológicos, brande razões sociais e antropológicas, e por fim crava os ferros do mais baixo e vil preconceito. Em cada fação se incita o espírito de cerco, se exacerba a diferença entre o "nós" e o "eles", e se exorta ao ataque e à conquista (pela força, claro) do outro, do herege, do infiel, do adorador de demónios. Sim, que quase todas as religiões, de um modo ou de outro, reclamam a posse da Verdade, o monopólio do Caminho, a exclusividade da Luz - o que, infelizmente, é interpretado por muitos como "quem não é dos nossos está condenado".

Um dos pilares de base da maçonaria especulativa, desde que esta existe, tem sido, precisamente, a oposição a este mindset, a esta forma mesquinha de gerir a diversidade, a esta incapacidade de ver o mundo por outros olhos, de outro ângulo, sob outra luz. Num contexto histórico em que o confronto entre lados opostos tinha dado origem a uma guerra civil, a maçonaria estimulava a contenção, a tolerância e o amor fraterno entre homens que, de outro modo, nunca demonstrariam sequer um mínimo de urbanidade uns para com os outros. Estabelecendo conceitos passíveis de ser considerados um mínimo denominador comum, uma plataforma base de estabelecimento de pontes culturais e religiosas entre crentes de diversas fés, a maçonaria proibia - de modo a manter a harmonia custosamente conquistada - que cada um ultrapassasse esses frágeis compromissos e, em loja, manifestasse o que quer que fosse de próprio e exclusivo de uma qualquer denominação religiosa.

Logo vozes clamaram que a maçonaria queria destruir esta ou aquela religião, e que a maçonaria era um anátema, uma abominação, uma obra dos seguidores de satanás. Ao pretender conciliar várias crenças sob uma mesma égide, a maçonaria teria tocado num ponto nevrálgico: a maioria das pessoas não estava (e não está...) na disposição de admitir que o "outro" possa, seguindo um caminho diverso do seu, chegar ao mesmo lugar. Muitas religiões ensinam, mesmo, que os "deuses" das outras religiões são, na verdade, demónios empenhados em confundir os incautos, e que segui-los é caminho certo para a danação eterna. Esta perspetiva é, de facto, absolutamente incompatível com a maçonaria, por ser diametralmente oposta  ao conceito de tolerância que a maçonaria promove e defende. Como poderia um maçon sentar-se em loja ao lado de alguém que ele considerasse um adorador de demónios, e com ele dizer estarem ambos a trabalhar "à Glória do Grande Arquiteto do Universo", expressão que congrega os diversos conceitos de divindade de cada um dos maçons sob uma denominação comum? Por outro lado, quem tivesse a alma grande e quisesse "salvar" o seu irmão do erro em que este estivesse metido, apresentando-lhe as virtudes da sua própria fé, logo se veria remetido ao silêncio, senão voluntário, logo imposto. Como conciliar esta limitação ao proselitismo com deveres assumidos para com a sua igreja ou religião?

A resposta é simples: a maçonaria não é para esses. Quem assim pensar e quiser juntar-se a nós, melhor será que o não faça, ou rapidamente se verá confrontado com situações que lhe serão desconfortáveis e que pode entender serem contrárias aos ditames da sua fé. Nesse caso, o melhor que teria a fazer - pois nunca deveria ter sido admitido, no seu próprio interesse - seria pedir o atestado de quite e abandonar a maçonaria, pois os deveres de cada um para com a sua fé sobrepõem-se aos deveres para com a maçonaria. Quem achar que é sua obrigação converter o mundo a uma determinada fé, pois que o faça (ou que o tente...) mas sem a condição de maçon a atrapalhar. E quem, no mais fundo do seu coração, achar que todos quantos abraçam outras fés são adoradores de falsos deuses, ou mesmo de demónios, então nada tem que aprender connosco.

Mas quem aceite as limitações do seu entendimento, que a fé e a certeza são coisas distintas, e que várias pessoas podem olhar para a mesma coisa e ver coisas diferentes; quem queira ultrapassar o preconceito, praticar a virtude e tornar-se numa pessoa melhor; quem queira fazê-lo acompanhado, ajudando e sendo ajudado num espírito de fraternidade que ultrapassa as diferenças e as diversidades de pontos de vista; então encontrará entre nós verdadeiros irmãos na pessoas de uns quantos homens bons que, sob um mesmo Deus - mas respeitando as diferenças de entendimento que cada um tem d'Ele - se juntam para se tornarem melhores.


Paulo M.

17 setembro 2010

A Maçonaria incorpórea


"Ministro da Saúde acusa Medicina de incoerência". "Engenharia desacredita cursos do ensino privado". "Dança moderna na bancarrota". "Atletismo acusado de burla". "Geografia convoca eleições". "Química sobe os preços dos combustíveis". Imaginem qualquer destas frases na primeira página de um jornal. Nenhuma delas faz sentido, pois não? Agora imaginem-nas alteradas desta forma: "Ministro da Saúde acusa Ordem dos Médicos de incoerência". "Associação dos Engenheiros Civis desacredita cursos do ensino privado". "Escola Nacional de Dança Moderna na bancarrota". "Tesoureiro do Conselho Superior de Atletismo acusado de burla". "Sociedade Lisbonense de Geografia convoca eleições". "GALP sobe o preço dos combustíveis". Já se percebe melhor, não acham?

A Medicina, a Engenharia, a Dança, o Atletismo, a Geografia, a Química, não são entidades; são, quando muito, nomes de áreas do saber, de técnicas, de actividades. Dizer-se que "a Medicina" fez isto ou aquilo é desprovido de sentido, assim como o é acusar-se "a Política" de má fé. Já dizer-se que "o quadro médico do Hospital X ganhou prémo de excelência" é um discurso pelo menos coerente, como o será acusar-se "o Secretário de Estado de Z" de má fé. Por outro lado, não parece correto dizer-se que "a ponte foi construída com recurso aos mais modernos conhecimentos da Ordem dos Engenheiros", mas se dissermos "aos mais modernos conhecimentos da Engenharia" tudo muda de figura.

Entaladas entre dois conceitos ficam frases como "Igreja Católica condena o uso do preservativo", ou "O Futebol está de luto". O que não é claro, nestes casos, é a identidade do sujeito. "Igreja Católica" refere-se a quê, precisamente? Ao conjunto dos fiéis, significando que estes, na sua maioria, condenam o  uso do preservativo; ou, por outro lado, ao Papa, enquanto representante da Igreja Católica, sendo este quem condena independentemente da posição da massa de fiéis? Quanto ao futebol, pode a notícia significar que, por exemplo, a Federação Portuguesa de Futebol decretou luto oficial por uma qualquer razão; ou pode, por outro lado, querer dizer que milhões de adeptos da modalidade sofrem com a perda de uma figura de referência. Qualquer das interpretações faz sentido; traduz é realidades distintas.

Precisamente o mesmo fenómeno ocorre de cada vez que se ouve ou lê: "A Maçonaria fez...", "Maçonaria implicada em..." ou "Ligações à Maçonaria no caso...", como se a Maçonaria, à semelhança de uma Igreja, de uma Colmeia ou um Clube Desportivo, fosse uma entidade, uma soma das partes, um substantivo coletivo. E aqui, uma vez mais, há quem tenha um entendimento, e quem tenha outro, quem concorde com esta posição e quem a repudie.

Para a Maçonaria Regular - de origem Britânica, recorde-se - "a Maçonaria" não é o conjunto dos Maçons, mas o nome daquilo que eles fazem, do mesmo modo que "a Medicina" é o nome daquilo que os médicos fazem, e não o nome que se dá ao conjunto dos médicos. Da esfera da Maçonaria Regular faz parte o princípio de que a Maçonaria não deve intervir na sociedade enquanto tal, mas apenas através de cada maçon. Cada um destes pode - deve! - promover a melhoria da sociedade através do seu próprio exemplo, da sua atuação e da sua influência, seja isoladamente seja em ações conjuntas dos elementos da mesma Loja ou, mesmo, da mesma Obediência (ou seja: da mesma Grande Loja ou Grande Oriente). Assim, não se pode dizer que a Maçonaria Regular tenha um "corpo" atuante, pois cada mão, cada dedo, cada cabelo, age por si mesmo, sem que haja concertação daquilo que se faz.

Entendimento diverso tem, normalmente, quem pratica a Maçonaria Liberal - de origem Francesa - por entender ser a Maçonaria o conjunto dos Maçons, ativamente empenhados, enquanto parceiro social, na promoção dos ideais maçónicos de uma sociedade mais livre, mais igualitária e mais fraterna. A Maçonaria é, aos seus olhos, o conjunto daqueles que defendem uma mesma visão do mundo, e que se congregam enquanto grupo organizado no sentido de a tornar realidade. Deste modo, atua de forma mais ou menos concertada, mas sempre com a consciência de que fazem parte de um todo, de um corpo, com um propósito comum para o qual cada um contribui na medida da sua possibilidade.

Em Portugal, a obediência internacionalmente reconhecida no seio da Maçonaria Regular é a Grande Loja Legal de Portugal/GLRP, de que a Respeitável Loja Mestre Affonso Domingues faz parte. A maior das obediências portuguesas internacionalmente reconhecidas no seio da Maçonaria Liberal é o Grande Oriente Lusitano (GOL). Uma e outra praticam Maçonaria - mas fazem-no de forma substancialmente diferente, decorrendo esta diferença, nomeadamente, do distinto entendimento que têm da ação da Maçonaria na sociedade. Não será alheia a esta diferença de postura perante a sociedade a profusão de referências nos media ao GOL, enquanto que a GLLP/GLRP tem uma exposição mediática muito mais reduzida. A avaliação do quanto de benéfico ou de nefasto para cada uma das Obediências e para a Maçonaria advém destas distintas posturas é algo que vos deixo como exercício de especulação individual.

E a partir de agora, quando ouvirem dizer ou lerem que "a Maçonaria" fez isto ou aquilo, averiguem a quem se refere a notícia: a que maçons, a que loja, a que obediência - isto, se não for "boato". Vão ver que, se o fizerem, muitas das perguntas que aqui têm surgido ficarão rapidamente respondidas - ou saberão, pelo menos, a quem dirigi-las.

Paulo M.

(Todas as frases referidas no primeiro parágrafo são um produto de ficção e meramente exemplificativas; qualquer eventual correspondência com a realidade não passa de mera coincidência)

15 setembro 2010

Altos Graus


A formação de um maçom está formalmente concluída logo que concluída a cerimónia pela qual ele é elevado ao 3.º grau e assume a qualidade de Mestre Maçom. Todos os "segredos" lhe estão transmitidos, todas as "lições" lhe estão dadas, o método maçónico de evolução é-lhe conhecido. A partir desse momento, o Mestre Maçom é um Aprendiz que aprende o que tem de aprender, como pretende, segundo as suas prioridades e preferências. Acabou a sua aprendizagem e tem a sua "carta de condução". Mas aprender o quê? Tudo o que lhe foi exposto, apresentado, mostrado. Todos os símbolos, rituais, ornamentos, textos, que lhe foram fornecidos ao longo da sua formação. Não que tenha de saber esses textos de cor. Mas porque todos esses elementos são pistas, sinais, caminhos abertos à sua individual exploração.

Onde conduzem esses caminhos? Ao interior de si próprio! À interiorização das virtudes e normas de comportamento e princípios que devem reger a conduta de um homem bom e justo e que procura aproximar-se o mais possível do conceito de homem perfeito. Porquê? Porque crê que é esse trabalho, esse esforço, esse objetivo, o verdadeiro significado da vida, a razão de ser da nossa existência, porque o nosso caráter, o nosso espírito, a nossa alma (chame-se-lhe o que se quiser) necessita desse esforço, desse reforço, desse aperfeiçoamento, para evoluir e passar adiante (chame-se-lhe Ressurreição, ou Glória, ou Paraíso, ou Nirvana, ou o que se quiser). Complementarmente à sua crença religiosa e em reforço e desenvolvimento desta, o maçom procura assim descortinar o inescrutável, entrever o sentido da vida e o Plano do Criador, cumprir a sua vocação.

Em bom rigor, para o fazer segundo o método maçónico não necessita de mais ferramentas do que as que lhe foram dadas ao longo da sua instrução como Aprendiz e Companheiro e na sua exaltação a Mestre. Elas chegam, está lá tudo o que é necessário para que o homem bom que um dia bateu à porta do Templo se torne um homem melhor, um pouco melhor em cada dia que passa, um tudo nada melhor do que no dia anterior e um não sei quê pior do que no dia seguinte.

Para esse trabalho fazer, basta-lhe atentar e meditar e trabalhar nos conceitos e lições que recebeu, explorar a miríade de símbolos e chamadas de atenção com que se deparou. E tirar de cada meditação, de cada exploração, de cada esclarecimento, a respetiva lição e - mais e sobretudo - aplicá-la na sua conduta de vida. O Mestre Maçom tem tudo o que necessita para o seu trabalho e a obrigação de ensinar os que se lhe seguem - cedo descobrindo que será também ensinando que ele próprio aprende...

Mas alguns Mestres Maçons sentiam-se insatisfeitos, desconfortáveis. Até à sua exaltação, tinham tido um guião, uma cartilha, mentores, que auxiliavam o seu percurso. E, de repente, ainda inseguros, ainda tateando o seu caminho, os seus Irmãos largavam-nos ao caminho e diziam-lhes: "aí tens tudo o que precisas de ter para fazer o teu caminho! Procura, lê , estuda, medita, tenta, acerta, erra, quando errares volta atrás e tenta de novo até acertares." Não haveria maneira de guiar ainda o seu trabalho? Não de os conduzir, mas de fornecer como que um mapa, um guia, que facilitasse a sua tarefa? Tudo bem que tudo o que havia a explorar e aprender já lá estava no que lhe fora ensinado. Mas as alegorias têm de ser decifradas, os significados encontrados... É certo que o trabalho tem de ser individual mas... precisa absolutamente de ser tão solitário? Está certo que cada Mestre Maçom deve procurar a sua Luz e, para o fazer, tem de se abalançar ele próprio a atravessar a escuridão mas... não se pode dar-lhe nem uns fosforozitos, nem uma velinhas, para ajudar a alumiar o caminho?

Cedo se chegou à conclusão que sim, que se podia. Que, embora cada um tivesse os meios de explorar o seu caminho, não havia mal nenhum em proporcionar a quem o quisesse um mapa, um guia, um roteiro, que desenvolvesse, paulatinamente, patamar a patamar, as noções que já estavam disponíveis para serem desenvolvidas, mas que não havia mal nenhum se o fossem através de um roteiro bem organizado.

E assim se desenvolveu aquilo a que hoje se chama Altos Graus. Nas derivas do Romantismo, muitos sistemas de altos Graus foram desenvolvidos. De alguns deles ainda restam resquícios, tentativas de manutenção. Outros entretanto desapareceram. No mundo maçónico, nos dias de hoje, predominam dois sistemas de Altos Graus, do Rito Escocês Antigo e Aceite e do Rito de York. Outros são também praticados: do Rito Escocês Retificado, por exemplo.

Mas não se engane ninguém: ao percorrer qualquer desses sistemas (ou mais do que um), não se sobe, não se fica mais alto, mais poderoso, superior. Ao percorrer cada um dos sistemas de Altos Graus está-se a utilizar um guia de auxílio no nosso caminho individual. Cada grau não é um patamar. É uma viagem de descoberta e estudo. E o grau seguinte não é um patamar superior. É apenas outra viagem de descoberta e estudo. De que se volta para de novo partir, seja para reestudar a mesma lição, para reestudar lição anterior, ou para explorar nova lição. E, a todo o momento, o Mestre Maçom pode decidir fazer nova viagem segundo o seu roteiro (e tomar novo grau) ou explorar por sua conta própria. Ou fazer ambas as coisas...

A Maçonaria é um caminho de conhecimento, iluminação e aperfeiçoamento. Que cada um percorre como quer. Às vezes com roteiro. Às vezes sem guia. Uns de uma maneira. Outros de outra. Nem sequer, bem vistas as coisas, o mais importante é o destino. Importante, importante mesmo, é afinal a viagem e o que se retém dela!

Rui Bandeira

13 setembro 2010

Prioridades


Nunca cansa repeti-lo: nas prioridades de um maçon, os deveres para com a família, os deveres para com os filhos, os deveres religiosos e os deveres civis sobrepõem-se aos deveres para com a Maçonaria. Por isso, uma das perguntas que alguém que pense pedir para ser admitido maçon deve fazer a si mesmo é, precisamente, se a família próxima - especialmente o cônjuge ou, como se diz agora, significant other - o apoiará, ou se, pelo contrário, lhe irá "cobrar" as ausências, as quotas e a disponibilidade mental. É essencial pelo menos a aceitação - e, idealmente, o apoio - do cônjuge para que se possa tirar partido da Maçonaria, sob pena de que os benefícios que esta deveria proporcionar através do melhoramento do maçon - que se tornaria numa pessoa melhor e mais passível de espalhar a felicidade em seu redor - sejam ofuscados pelas querelas conugais.

Do mesmo modo que a Maçonaria Regular não reconhece Grandes Lojas em países que proíbam a Maçonaria - decorrendo isto do facto de a Maçonaria Regular se cingir estritamente ao cumprimento das leis dos países onde está constituída, pelo que não faria sentido reconhecer uma Grande Loja que, para existir, violasse as leis do país que proíbem a sua própria existência - também, por idêntica ordem de razão, não deveria, em princípio, ser admitido à iniciação um profano que ocultasse do cônjuge esse facto, ou cujo cônjuge desaprovasse a sua admissão, uma vez que, devendo prevalecer o auxílio e a harmonia familiares sobre os deveres para com a Maçonaria, estaria a ser esta causa de desavenças e contendas, o que de modo algum é desejável.

Mesmo assim, se se conseguir fazer como defendia um dos comentadores habituais deste blogue - que, entre dois cenários alternativos, escolhia os dois - o ideal será, igualmente, conjugar ambos os deveres sem faltar a nenhum, que foi o que tentei fazer hoje, na medida das escassas possibilidades que tive, escrevendo um texto, apesar de curtinho e publicado para além da hora do costume. Desculpem-me os habituais leitores, mas deveres familiares não permitiram mais; sexta-feira cá estarei com outro texto - que se espera mais disponível e mais inspirado.

Paulo M.

10 setembro 2010

Simplicidade, lógica, razão e o comportamento humano


O mundo que nos rodeia é cada vez mais complexo. Dos telemóveis aos automóveis, dos despertadores aos computadores, dos estacionamentos aos aquecimentos, tudo nos impõe mais conceitos, mais técnicas, mais botões. O lamento pela perda da simplicidade de outrora é constante. Então, num mundo dominado por máquinas de lavar cheias de botões, luzinhas e manípulos, um conhecido fabricante de máquinas de lavar roupa desenvolve um projeto revolucionário: uma máquina que pesa a roupa, da qual determina o grau de sujidade, através dos quais doseia automaticamente a quantidade de detergente e escolhe o mais eficiente programa de lavagem.

Cúmulo da simplificação, a máquina é apresentada pelo Departamento de Engenharia com apenas dois controlos: um botão de ligar/desligar, e a escolha entre "roupa de cor ou muito suja" e "roupa de limpeza fácil"; o resto do programa é determinado pelo próprio aparelho, que dispõe de um automatismo tal que, com toda a simplicidade, parcimónia e racionalidade, reduz ao mínimo os gastos de água, detergente, tempo e energia. Contudo, esta máquina acaba por ser apresentada ao público com uma profusa quantidade de controlos adicionais, impostos pelo resultado de estudos feitos pelo Departamento de Marketing!

Pois é. Todo o racionalismo na conceção, toda a simplificação do uso, toda a sofisticação do funcionamento, esbarraram em dois factores de peso. Por um lado, a perceção por parte do consumidor, quando compara as máquinas em exposição à procura da que vai adquirir, de que quanto mais funcionalidades a máquina tiver, melhor é - e que as funcionalidades têm, forçosamente, que se traduzir em mais comandos e botões. Por outro lado, um sentimento primário absolutamente contrário aos clamores por mecanismos mais simples, e que pode ser traduzido por algo como "mas queres uma máquina que mande em ti, ou vais tu mandar na máquina?" e que deita por terra os automatismos mais argutamente desenvolvidos.

A razão é um valor que a Maçonaria muito preza. Contudo, a mente humana não paira no éter: reside no cérebro, que por sua vez está agarrado ao resto desta coisa a que chamamos corpo. E mesmo a mente humana não é, como podemos ver, um bastião de razão pura. Por isso a Maçonaria insiste na tolerância, no equilíbrio e na diversificação dos saberes enquanto medidas conducentes à harmonia entre corpo e espírito, à aceitação das diferenças, e à interiorização de que, no fundo, somos frágeis, falíveis e imperfeitos - primeiro passo para pretendermos tornar-nos melhores.

Paulo M.

Para quem tenha curiosidade quanto à história rerferida:
http://www.jnd.org/dn.mss/simplicity_is_highly.html
http://www.joelonsoftware.com/items/2006/12/09.html

08 setembro 2010

33.º = 3.º


Uma das razões pelas quais quem está de fora da Maçonaria tem dificuldade em compreender, na sua plenitude, o que esta é resulta - bem vistas as coisas, naturalmente - de aquele que vê do exterior julgar, apreciar, avaliar, a instituição segundo o paradigma da sociedade em que se insere e não através do paradigma próprio criado pela Maçonaria.

Quem vê de fora tem tendência a conceber a Maçonaria segundo o cânone da hierarquia, que é comum à maior parte das instituições humanas. O Governo é dirigido por um Primeiro-Ministro, que manda nos, ou coordena os, Ministros, que, por sua vez, mandam no seu Ministério, dando ordens aos seus Secretários de Estado, e estes aos Diretores-Gerais, que ordenam aos Diretores de Serviço, que mandam nos Chefes de Repartição, que exercem autoridade sobre os Chefes de Secção, que dão instruções aos Administrativos, que... E todo o titular de um cargo superior hierarquicamente exerce autoridade não só sobre o seu inferior hierárquico imediato, mas por todos os que hierarquicamente estão abaixo deste e de si.

Se pensarmos nas Forças Armadas, idem, aspas, apenas com a diferença de o superior ter o título de General, aquele que está na base da pirâmide, o praça, ser o soldado e, entre um e outro, haver toda uma cadeia hierárquica de Oficiais, Sargentos e Cabos.

Se nos lembrarmos de um clube desportivo, lá está: facilmente visualizaremos a cadeia hierárquica que vai do Presidente da Direção ao roupeiro, passando pelos Diretores, Treinadores, Adjuntos, Capitão de Equipa e seus substitutos, jogadores e demais pessoal.

Se nos detivermos na Igreja do credo religioso maioritário em Portugal, lá temos a omnipresente hierarquia de Papa, Cardeais, Arcebispos, Bispos, Cónegos, Padres e, na aparente base da pirâmide, afinal a sua única razão de ser e de existir, a massa dos crentes.

Em suma, e para não me alongar em exemplos, a maneira comum de ver as instituições da sociedade é de forma hierárquica, em que alguém manda, alguém é mandado e manda, em sucessivos patamares até se chegar a quem só obedece.

A tendência de quem olha de fora para a Maçonaria é vê-la segundo este paradigma e, portanto, considerar que, se no Rito Escocês Antigo e Aceite há 33 graus, os detentores do grau 33.º são os que estão no topo da hierarquia e "mandam" em todos os que se integram nos graus inferiores e o mesmo sucede ao longo da "cadeia hierárquica".

Esta forma de ver a instituição maçónica é profundamente errada e conduz a graves vícios de análise. Persiste quer pelo contágio das demais instituições sociais, quer porque os próprios maçons têm negligenciado o esclarecimento do erro. É por isso que não me escandalizo quando um dos nossos interlocutores afirma - como por vezes sucede - que Fulano era do grau 33 e portanto pertencia ao topo da hierarquia e o que disse ou escreveu há de ter um especial significado, pois integrava o escol dos que mandam. Se este erro persiste, a culpa não é só dos meus interlocutores - é também minha! É, pois, tempo de alijar o fardo da minha culpa e esclarecer!

A Maçonaria não se organiza segundo o princípio da hierarquia. A Maçonaria funciona estritamente segundo o princípio da Igualdade!

A única - e temporária - derrogação destes princípio respeita aos Aprendizes e Companheiros (graus 1.º e 2.º), os quais, por estarem em processo de formação e integração, têm uma diminuição de faculdades, não tendo (ainda) o direito de voto nem o direito de palavra (em reunião formal). Mas esta derrogação da plena Igualdade é temporária e estritamente decorrente da natureza do processo de formação e de integração de Aprendizes e Companheiros. O seu percurso far-se-á com naturalidade até que - sem demasiada demora, mas também sem grandes pressas - aquele que um dia se apresentou à Iniciação se submete ao Ritual de Elevação ao 3.º grau e assume a condição de Mestre Maçom.

A partir desse exato momento, é um Mestre com exatamente os mesmos direitos e deveres e a mesma e igual posição hierárquica que todos os outros Mestres. Nem a antiguidade importa. Nem esta é um posto. O maçom acabado de ser elevado a Mestre pode, no minuto seguinte, ver ser-lhe confiado o exercício de um ofício em loja. E, logo que tenha exercido o ofício de 2.º ou de 1.º Vigilante, pode ser eleito Venerável Mestre, em estrito pé de igualdade com todos aqueles que estão na mesma situação há 1, há 10 ou há 30 anos. E todo aquele que tenha exercido o ofício de Venerável Mestre de uma Loja pode ser eleito Grão-Mestre.

É indiferente, em Loja, se A tem "apenas" o 3.º grau, B o 9.º, C o 15.º, D o 33.º. Todos são estritamente iguais e aquele que tem "apenas" o 3.º grau pode ser eleito Venerável Mestre e dirigir os outros, os que têm o 9.º, o 15.º ou o 33.º grau. Todos os Mestres maçons são estritamente iguais, independentemente do grau dos Altos Graus a que cada um tenha acedido. Um maçom do 3.º grau não é menos, nem mais, do que um maçom do 33.º grau. São ambos Mestres maçons - e com um estatuto rigorosamente igual em Loja. Um dos Mestres maçons da Loja é eleito para, durante um ano, exercer o ofíci0 de Venerável Mestre. Outro dos Mestres maçons da Loja é eleito para, durante o mesmo período, exercer o ofício de Tesoureiro da Loja. O Venerável Mestre eleito designa, segundo os costumes e os critérios próprios da Loja, estabelecidos ao longo do tempo, os Mestres maçons que exercem os demais ofícios necessários para o bom funcionamento da Loja. Independentemente do grau que tenha ou deixe de ter cada um dos designados. Durante um ano, os Oficiais da Loja exercem os poderes e cumprem os deveres inerentes aos respetivos ofícios e os demais elementos da Loja respeitam esse exercício e, se assim o quiserem, colaboram. Em qualquer assunto que se debata, todos - mas rigorosamente todos! - os Mestres maçons, independentemente do grau que porventura adicionalmente detenham ou do ofício que no momento cada um exerça ou não, têm exatamente o mesmo direito à palavra e o mesmo direito ao voto, com exatamente o mesmo valor.

Igualdade absoluta, pois.

Também as Lojas são estritamente iguais. Nenhuma tem mais direitos ou deveres do que as outras.

Sendo assim, perguntará, e bem, quem está de fora, porque há 33 graus, que relação existe entre eles, se não é hierárquica, em que consiste esse paradigma de graus "iguais"?

Essa é matéria que procurarei esclarecer no próximo texto, dedicado aos Altos Graus.

Rui Bandeira

06 setembro 2010

Uma loja maçónica não é uma tertúlia (II)



Dois grandes factores de distinção entre uma tertúlia e uma loja maçónica são o objetivo e forma da intervenção de cada um. Numa tertúlia as intervenções sucedem-se, e cada um vai tomando a palavra repetidamente tantas vezes quantas queira (ou lho permitam...), sucessivamente acrescentando ao que disse antes, refutando os argumentos deste ou daquele, e fortalecendo - ou alterando - a sua posição de cada vez que se dirige aos demais. Cada um vai tentando fazer prevalecer a sua posição através de argumentos e contra-argumentos ao que foi dito antes, esperando-se que, a partir de um certo ponto, se tenha atingido um equilíbrio em que já tudo foi dito e cada um (re)contruiu já a sua posição face ao assunto em debate.

Numa loja maçónica, porém, as coisas não poderiam ser mais diferentes. Começa por que, no que respeita cada assunto, cada um pode fazer apenas uma única intervenção - e só muito excecionalmente poderá fazer uma segunda, sempre muito curta, e apenas se absolutamente impreterível, como por exemplo para clarificar algo que não tenha sido dito da forma mais inteligível. Esta imposição obriga a que se tenha um cuidado multiplicado com aquilo que se diz, de forma a dizê-lo bem à primeira.

Há uma ordem estrita a ser seguida. Primeiro começa-se pelas colunas (do Norte e do Sul), para que os mestres maçons que aí se sentam possam, querendo, pedir a palavra. Depois de não haver mais pedidos de intervenção, os dois Vigilantes podem pedir a palavra para si mesmos, primeiro o 2º Vigilante e depois o 1º Vigilante. É então dada a indicação de que não há mais intervenções nas colunas, e esta passa ao Oriente, onde residem o Venerável Mestre, o Secretário, o Orador, o Ex-Venerável e eventuais visitas a quem tenha sido dada essa distinção. A palavra é dada, no Oriente, a quem quiser dela fazer uso, e o Venerável Mestre é o último a intervir. Caso esteja em causa uma decisão, esta poderá ser tomada pelo Venerável Mestre de imediato, ou este poderá consultar a Loja através de uma votação. De qualquer modo, a intervenção do Venerável Mestre deve ser sempre no sentido de procurar encontrar uma conclusão que seja harmoniosa para a loja, e com que a maioria se identifique.

Para além da forma, já exposta, há o objetivo. Idealmente, cada intervenção destinar-se-ia a que cada um, na medida em que considerasse ser isso útil, apresentasse a sua posição ou opinião a respeito do assunto em causa, e sem que o seu conteúdo fosse condicionado por ser a primeira ou a última intervenção a ser efetuada. O que se diz não deve ser dirigido a ninguém em particular, mas a toda a Loja, e não deveria sequer referir-se alguma intervenção anterior, mas apenas fazer-se referência ao tema que esteja em discussão. Não deve haver interpelações, refutações ou contraditório, uma vez que isso colocaria em desvantagem aquele que já fez a sua intervenção e não pode agora responder. Pretende-se, assim, que cada um possa dar a conhecer a sua posição, sem que tente impô-la aos demais, e sem que explicitamente contrarie alguma posição já exposta, e por outro lado que cada um tenha a oportunidade de ser confrontado com opiniões alheias - porventura distintas das suas - num tom e numa postura que não ameacem a posição com que cada um se identifica.

A Maçonaria cria, deste modo, um contexto que induz cada um a confrontar-se com opiniões e posições distintas da sua, num ambiente de boa fé, entre iguais, sem que ninguém possa impor a ninguém nenhuma obrigação, mas em que cada um possa, querendo, tomar para si as palavras do outro, seja como as recebeu seja na forma que as queira incorporar naquilo que constitui a sua identidade.

Por fim, é costume - se bem que não creia haver nenhuma regra escrita a esse respeito - serem públicos os louvores e privados os reparos. Quando um bom trabalho é apresentado, é frequente que, nas palavras proferidas por cada um, sejam manifestadas palavras públicas de louvor e de encorajamento. Quando, porém, foi dito algo passível de ser interpretado como menos bom ou menos correto, a correção fraterna - que raramente falha - surge quase sempre em voz baixa directamente ao ouvido do "prevaricador". A franqueza e honradez manifestadas, de mão dada com a genuína preocupação que os maçons têm uns com os outros, levam a que seja frequente surgirem amizades muito fortes entre irmãos da mesma loja - e mesmo entre irmãos de lojas diferentes. A este respeito não me sai da cabeça uma frase que li há tempos numa entrevista em que alguém dizia: «A maçonaria é a única organização em que se faz amigos de infância aos 40 anos». Não sei se é a única, mas que se faz, faz.

Paulo M.

P.S.: Devo recordar que a Loja Mestre Affonso Domingues está integrada numa Obediência Regular - a Grande Loja Legal de Portugal / GLRP, e que o que descrevi se aplica a esta. Noutras obediências far-se-á de forma distinta; um destes dias escreverei um texto sobre isso.

03 setembro 2010

Uma loja maçónica não é uma tertúlia (I)


«Tenho um grupo, que com as vicissitudes da vida se foi afastando, mas que durante uns bons 15 anos formou uma tertúlia que se encontrava quase todos os dias. Tivemos incontáveis debates e polémicas. Aprendemos todos muito uns com os outros. Hoje, ainda continuamos todos amigos. Não há necessidade de proibições no que toca a troca de ideias.» (Diogo, num comentário recente)

Este comentário explica, quase por si mesmo, porque é que uma Loja Maçónica não é - nem pode ser - uma tertúlia. Ora comecemos, como quem analisa, escrutina e disseca um texto numa aula de Português.

Ter um grupo «... que com as vicissitudes da vida se foi afastando...» é uma das coisas que se pretende evitar numa Loja. Pertencer a uma Loja é como que um casamento. Não é forçosamente para toda a vida, pode-se ter "outras" ao mesmo tempo (se bem que seja difícil de gerir) mas, mesmo quando isso acontece há sempre uma que é a "principal"; pode-se cortar os laços com essa, e ou arranjar outra "principal" ou mesmo passar a não ter nenhuma, mas ambas são situações dolorosas. Uma Loja é como que uma família. Uns nascem, outros morrem, mas a família é a mesma - se não se extinguir; numa Loja, são iniciados uns, adormecem ou partem para o Oriente Eterno outros, mas a Loja permanece - se não abater colunas. Há lojas várias vezes centenárias, e esse vínculo a algo que existia antes de nós e continuará a existir depois é uma das coisas boas que a Maçonaria nos proporciona; ao mesmo tempo que nos reduz à nossa pequenez de meros "passadores de testemunho" dá-nos a satisfação de saber que pertencemos a essa cadeia de continuidade.

Pertencer a um grupo «...que se encontrava quase todos os dias» deve ser algo de muito exigente, e pouco consentâneo, suponho, com os deveres conjugais, laborais e parentais. Claro que isso é questão que só se põe a quem esteja sujeito a esses deveres... Por outro lado, encontros diários não serão, como dizia Shakespeare, "too much of a good thing"? Não terão esgotado em 15 anos conversa que dava para uma vida inteira? Em contraste, a maçonaria alerta os seus membros de que os seus principais deveres são para com a família, para com o Criador (qualquer que seja a conceção que dele se faça), e para com o país; a maçonaria vem depois.

Dizer-se, ao fim de 15 anos, que «ainda continuamos todos amigos» implica ter-se começado por aí: pela amizade enquanto vínculo genitor. Ora, quando se ingressa uma loja é-se integrado num grupo de desconhecidos; as amizades que surjam são paralelas ao grupo, não são condição prévia do mesmo. Os nossos amigos são pessoas que nós conhecemos e cujo contacto decidimos manter e aprofundar, e com quem nos identificamos mais; numa loja, pelo contrário, não se escolhe nada; um pouco como a família  do cônjuge, fica-se com o que nos calha na rifa. A um amigo perdoa-se mais, aceita-se mais e tolera-se mais do que a um desconhecido; por isso, as regras e os pressupostos de uma loja e de um grupo de amigos não podem deixar de ser diferentes, pois que numa loja a diversidade é maior do que num grupo de amigos.

Tertúlias como aquela de que o Diogo fala são próprias da adolescência e da juventude. Nos debates, frequentemente acesos, cada um tenta marcar a sua posição, convencer os demais, ensinar e impor o seu ponto de vista. Contudo, é normal que os seus membros, uma vez "crescidos", tendo adquirido a sua própria individualidade e identidade fora do grupo, se afastem progressivamente.; é normal que haja menos disponibilidade para um contacto tão íntimo e envolvente, para uma exposição tão prolongada, para um desnudar-se tão profundo - até porque as ideias se vão cimentando e há cada vez menos temas novos a debater sem que o resultado do debate esteja determinado a priori. Assim, a maturidade acaba por estabelecer o limite. Em loja, pelo contrário, o objetivo não é "converter" ninguém a um determinado ponto de vista, mas permitir que cada um encontre o seu.

Paulo M.

01 setembro 2010

A Cadeia de União


Em todas as reuniões das Lojas que trabalham no Rito Escocês Antigo e Aceite (mas não só neste rito: por exemplo, também no Rito de Schröder) se reserva um momento para que todos os maçons presentes formem a Cadeia de União.

É um dos momentos marcantes da reunião: ao formarem e integrarem a Cadeia de União, os maçons relembram que cada um individualmente faz parte de um Conjunto. Conjunto que é mais forte do que a mera soma das forças individuais, porque a todas estas se agrega a força da união de todos.

A Cadeia de União simboliza e demonstra ainda o princípio fundamental da plena Igualdade dos maçons. Todos os presentes, desde aquele que dirige a Loja ao mais recente Aprendiz se unem, na mesma exata e igual postura, cada um mero elo de uma cadeia. Não há, naquele momento, distinção alguma, não se atende a graus, a funções, a antiguidades. Todos iguais em comunhão!

É um momento de reflexão, de solidariedade, de união, em que cada um sente que contribui para o grupo - mas também sente que beneficia da força comum do grupo.

A Cadeia de União forma-se perto do final dos trabalhos, já depois de finalizados os debates da ordem do dia. Por muito acesos que tenham sido esses debates, por muito díspares que tenham sido as opiniões formuladas, por muito distantes que porventura estivessem as conceções confrontadas, o debate já terminou, a decisão já foi tomada, ora uma bissetriz traçada com as contribuições de todos, ora uma opção que não será a de todos. Mas todos contribuíram, leal e esforçadamente, para a assunção da decisão, contra a qual nenhum militará. Todos se reúnem na cadeia de União, onde não há lugar a desacordos, pontos de vista ou discordâncias: cada um assume a sua função de elo de uma cadeia, igual a todos os outros elos, solidário com todos os outros elos. De muitos, e diferentes, se faz um, o grupo, o conjunto.

A Cadeia de União é a expressão da rara capacidade que os maçons adquirem e praticam: conformar e utilizar a diversidade para o bem e o objetivo comum. Todos são diferentes, todos colocam as suas diferenças em prol do grupo, todos são ali iguais.

A Cadeia de União é a prática sempre repetida, que, em iguais proporções, reforça o elemento "cadeia" (cada um é um elo, uma peça de um conjunto) e "união" (todos juntos, todos em comum, solidários).

A Cadeia de União é uma prática pela qual se forma, reforça e assinala a coesão do grupo. Nos momentos em que o grupo assim se une, desvanecem-se os individuais egos, avulta o coletivo, na busca de uma egrégora fortalecida e fortalecedora. Todos os espíritos se unem no mesmo objetivo, na mesma intenção, na mesma prece, na mesma celebração, seja o que for, mas o mesmo...

A Cadeia de União é um gesto, mas é muito mais do que um gesto. É parte integrante do nosso segredo de maçons, não porque guardemos ciosamente a notícia da sua existência (este texto prova o contrário...), mas porque é realmente impossível explicar a quem nunca participou numa Cadeia de União o efeito, a paz, a comunhão, a força, que produz nos membros de uma Loja assim unidos. É um gesto, mas é muito mais do que um gesto. E o seu significado só é plenamente apreendido por quem nele participa, uma e outra e ainda outra vez e muitas vezes. É um significado que não se ensina. Aprende-se vivendo-o!

Fora de Loja, só se forma Cadeia de União em homenagem fúnebre a maçom que passou para o Oriente Eterno. E aí, então, têm lugar como elos nessa cadeia todos aqueles que se reclamam de ser maçons. Aí não importam reconhecimentos, nem regularidades, nem nada dessas miudezas. Aí, pessoas de boa vontade e com muito em comum homenageiam uma pessoa de boa vontade que nos precedeu no caminho que todos trilharemos.

Rui Bandeira

30 agosto 2010

Os símbolos e os rituais maçónicos: ferramentas de trabalho

 
Conta-se que um novo monge, chegado a um mosteiro, é incumbido de auxiliar os outros monges na cópia de textos antigos à mão. Nota, porém, que estão a copiar a partir de cópias, e não de textos originais., o que o leva a perguntar a razão ao superior, notando que, em caso de erro em qualquer cópia, esse seria propagado por todas as cópias seguintes. O superior responde-lhe: «É assim que temos feito há séculos, mas é uma boa questão, meu filho.»
Assim, o velho monge desce com uma das cópias à cripta para a comparar com o original, e por lá fica horas esquecidas. Não o vendo regressar, os monges, preocupados, enviam um deles ao seu encontro. Este, ao aproximar-se, ouve o ancião soluçar debruçado sobre um dos livros antigos. Pergunta-lhe o que se passa, ao que ele lhe responde, com os olhos rasos de lágrimas: «Aqui diz "celebrado", não diz "celibato"...»

O tempo e as sucessivas passagens de testemunho encarregam-se de que as palavras, os símbolos e os gestos percam o seu significado original, adquirindo eventualmente outros completamente distintos. "Quem conta um conto acrescenta um ponto", diz com razão a sabedoria popular. Aquilo que, na sua génese, poderia constituir mero artifício literário destinado a ilustrar uma ideia pode, ao fim de algum tempo, ser distorcido pela própria evolução linguística. Ainda hoje se discute a que se referiria, precisamente, a frase bíblica que diz ser "mais fácil um camelo passar por um buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus". O camelo seria o bicho de duas bossas, ou uma má tradução da palavra grega que significa "cordel", ou ainda um tipo de cabo usado nos barcos para os amarrar ao cais? E o buraco da agulha, é mesmo um buraco literal de uma agulha vulgar, ou é uma porta, uma passagem, um estreito, como especulam alguns? As palavras - simbólicas - ficaram connosco; o seu contexto original perdeu-se. Ficou a ideia que se pretenderia passar: de que aos ricos é difícil "entrar no Reino dos Céus".

Por outro lado, algumas mentes têm tendência para tomar os símbolos por aquilo que representam. A partir deste instinto formam-se verdadeiros cultos: veja-se o das personalidades políticas nos países do bloco soviético ou , mais proximamente, o do Doutor Sousa Martins. Cientes deste facto, várias religiões têm duras regras de condenação da idolatria, que mais não é do que a adoração de um símbolo, ao tomar-se o objeto por aquilo que ele representa. O Islão proíbe, por exemplo, qualquer representação de pessoas ou animais, não vá alguém tentar-se e lançar-se em sua adoração; e os protestantes costumam acusar os católicos de idolatria por terem nas suas igrejas imagens humanas.

Quer as restrições alimentares estipuladas por certas religiões como o Islão ou o Judaísmo (segundo as quais não se pode consumir carne de porco, e se impõe que os animais sejam abatidos de forma ritualizada e sangrados) quer a proibição de consumo de álcool pelo Islão, parecem refletir hábitos e costumes anteriores ao surgimento dessas mesmas religiões. Recordemo-nos de que o álcool desidrata, e que quem o consuma no calor do deserto pode correr perigo de vida; que a carne de porco, rica em gordura, se decompõe facilmente com o calor, podendo provocar epidemias; que o mesmo se pode dizer do sangue, que, se retirado da carne, permite que esta chegue a secar ou, pelo menos, dure mais em temperaturas altas. Estas medidas constituem, por si mesmas, sensatas medidas sanitárias de defesa da saúde pública. Se a sua inclusão enquanto preceito das religiões em causa decorreu de causa humana ou revelação divina já é questão a ser respondida no foro íntimo de cada um.

A Maçonaria tem os seus símbolos e os seus rituais. Os símbolos - que representam princípios, ideias e deveres - servem para evocar, e não para que se lhes preste culto. Não há nada de idólatra nos símbolos maçónicos. Há, de facto, símbolos e lendas cuja génese se perdeu; mas persiste o seu significado, que não podemos garantir que seja o original. Há entre os maçons, como em todo o lado, quem tome os símbolos por mais do que eles representam, atribuindo-lhes sentidos oblíquos, afectando-lhes significados ocultos, e mesmo especulando encerrarem os mesmos verdades inalcançadas. Esta "corrente" existe desde que a Maçonaria existe - e existe ainda hoje - mas a maioria dos maçons tem os pés mais assentes na terra, e considera serem os símbolos, rituais e lendas simples ferramentas de trabalho. Cada um é, todavia, livre de crer no que quiser, e mesmo de fabricar o próprio objeto da sua crença, mas essa é uma postura que, em certa medida, é contrária ao espírito da Maçonaria, segundo o qual o Homem deveria caminhar para a Luz e para o Esclarecimento.

E aqui se suscita uma questão essencial: onde acaba a liberdade religiosa e começa a superstição e o disparate? Como se concilia, a este respeito, o facto de a Maçonaria defender a liberdade individual (que passa pelo direito de cada um crer no que quiser) com a defesa da Razão enquanto fonte de autoridade e de legitimidade? Perante princípios antagónicos temos que estabelecer hierarquias; e a Maçonaria dá primazia ao respeito pela liberdade individual, o direito de cada um acreditar no que queira, sobre o interesse em que todos sejam racionais e esclarecidos. Assim, cada um é senhor de si mesmo e do caminho pessoal que escolheu e, desde que respeite os ideais e princípios maçónicos e a liberdade alheia, tem o direito de não ver questionado, escrutinado ou dissecado aquilo em que acredita.

Paulo M.