Integração e tolerância
Uma adolescente muçulmana de 12 anos de idade, vivendo em Frankfurt, requereu a um tribunal alemão a dispensa das aulas de natação, alegando desconforto em estar tão perto de rapazes em tronco nu. De acordo com o seu advogado, o Corão não só a proibiria de se mostrar aos rapazes como de ver os rapazes despidos da cintura para cima.
Na passada sexta-feira o tribunal emitiu a sentença, na qual recordou que ela poderia usar um fato de banho de corpo inteiro - já usado, aliás, por outras colegas da mesma escola - o que seria garante suficiente da sua liberdade religiosa. Por outro lado, notou que a família - original de Marrocos - escolhera viver na Alemanha, onde as aulas de natação mistas são a norma. Remeteu, por fim, para uma sentença do tribunal constitucional alemão, de acordo com a qual um dos propósitos do sistema escolar seria a promoção da integração e da tolerância. Por tudo isto recusou a pretensão da requerente, tendo esta que suportar a vista dos colegas nos seus fatos de banho.
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Por ser a tolerância religiosa um dos valores que estiveram na génese da maçonaria especulativa, é natural que os maçons tenham na tolerância um valor fundamental. No entanto, se perguntarmos a duas dúzias de maçons o que é a tolerância, receberemos duas dúzias de respostas, algumas das quais contraditórias - e é bom que assim seja. A tolerância decorre da diversidade; sem diversidade não há necessidade de tolerância: só faz sentido ser-se tolerante perante o que é diferente de nós.
É natural que procuremos a proximidade daqueles com quem nos identificamos mais, e nessa identidade acabemos por nos afastar dos que não se nos assemelham. A própria origem das espécies decorrerá dessa tendência de agremiação de seres mais semelhantes entre si mas um pouco diferentes de outros, mesmo quando todos partilhem antepassados comuns. O reconhecimento de seres diferentes - porventura portadores de uma mutação genética, ou doentes - e o afastamento dos mesmos poderá servir de mecanismo de preservação das populações.
Por outro lado, pode dizer-se que a intolerância é um mecanismo de defesa, de repulsão de um ataque - tenha este de facto decorrido, ou esteja iminente, ou seja meramente possível. Neste sentido, é uma qualidade saber-se reconhecer o inimigo que pode destruir-nos a nós ou às nossas crias. Porém, tomar por agressão a própria diferença independentemente dos atos cometidos é um comportamento perfeitamente típico de um ser irracional, se bem que inaceitável num ser humano.
Não deixa, por isso mesmo, de ser desejável que tomemos consciência da dualidade da nossa natureza - animais por um lado, racionais pelo outro - e saibamos tirar o melhor partido de ambas as facetas da mesma. Pois que se, por um lado, o "instinto animal" nos pode salvar de muitas situações perigosas, por outro só uma mente racional nos pode levar até à plenitude da nossa humanidade.
Tolerar a intolerância sob o argumento de que "é natural" só é aceitável para quem esteja disposto a abdicar de tudo quanto desenvolvemos enquanto seres racionais. Aceitar que somos todos diferentes, e que nada de mal tem forçosamente que advir daí, é uma atitude tão mais importante quanto mais populado está o nosso mundo, e quanto mais globalizado e culturalmente miscigenado este se vai inexoravelmente tornando.
Li há anos um livro de Robert Heinlein (já não me recordo de qual...) de que retive uma frase: "Um homem sábio não pode ser insultado, pois a verdade não insulta, e a mentira não merece atenção." Copiei essa frase cuidadosamente para um papelinho que guardei cuidadosamente espetado num painel de cortiça no meu escritório durante anos.
Curiosamente, o presidente Obama disse há dias uma coisa parecida: que a cultura ocidental reconhece o direito à liberdade de expressão, mas não reconhece o direito a não ser insultado. Nas nossas sociedades - nos chamados "Estados de Direito" - a lei estabelece uma linha mínima de homogeneidade: todos são iguais perante esta, todos devem cumpri-la, e ninguém deve ser forçado a fazer o que esta não preveja. A lei constitui, assim, como que as "regras da casa" de uma sociedade, estipulando o que é e não é aceitável.
Pode dizer-se que há, essencialmente, duas formas de gerir a diferença: pretender tornar todos iguais, ou aceitar que somos todos diferentes. Se tivermos em conta quer as lições da História, quer o facto de que mesmo na população mais homogénea há diferenças de indivíduo para indivíduo, não nos resta senão aceitar a diferença - e tirar o maior partido desta. Podemos pretender agir sobre os outros - tornando-os iguais a nós mesmos ou suprimindo-os - ou pretender agir sobre nós mesmos - aceitando os outros como são. É esta, precisamente, a forma como vejo a tolerância tal como a maçonaria no-la transmite: como uma deliberada indiferença perante a diferença. Não, não é instintivo - mas aprende-se.
Paulo M.
3 comentários:
Caro Paulo,
Sou um leitor assíduo do vosso blog, mas normalmente não comento os textos que publicam, principalmente porque não gosto de opinar sobre assuntos que desconheço dado o meu estatuto de profano.
Mas este texto despertou-me o interesse, em primeiro lugar pela excelência no discurso, e em segundo lugar pelo tema abordado, a meu ver um tema bastante "em voga" na nossa sociedade.
Muito se tem falado em relação a tolerância religiosa, e eu nesse aspecto confesso que por vezes não consigo ter uma opinião coerente, talvez porque sinto que existe uma linha muito ténue entre o respeito que todas as religiões merecem, sejam elas qual forem, e o atropelo da liberdade individual de cada um.
O que quero expressar é que no mundo em que vivemos, aberto às novas tecnologias e a sociedades cada vez mais multiculturais existem regras de índole religiosa que tendem a esbarrar no que é a cultura dita “ocidental”.
Vejamos o caso concreto que foi referido no texto. A rapariga requereu a dispensa das aulas de natação porque, segundo a religião dela, não era aceite tanto a sua “exposição” corporal a outros rapazes, como a “exposição” corporal dos rapazes a ela.
Ora, vivendo ela num país que tem como premissa do sistema educativo a “promoção da integração e da tolerância”, estarão correctos os tribunais ao “obrigarem” a rapariga a ver rapazes em tronco nú nas aulas de natação?
Mas por outro lado, o que seria correto fazer? Obrigar os rapazes para levar fatos de banho para a piscina? Criar classes de raparigas e rapazes como havia antigamente?
A meu ver, as duas soluções estão de certa forma erradas, uma porque não respeita a vontade da rapariga em seguir a sua doutrina religiosa, e outra porque ao obrigar os rapazes a usar fato de banho nas aulas, acaba por se estar a afectar a liberdade de escolha, dentro dos princípios éticos instituídos nessa mesma sociedade, e ao separar rapazes de raparigas estaremos, a meu ver, a retroceder para o tempo em que só era socialmente aceite a interacção entre membros do mesmo sexo nos estabelecimentos de ensino.
Segundo o que li, a Maçonaria tem como um dos seus princípios a igualdade entre todas as religiões, daí ser usada a nomenclatura de GADU cada vez que existe referência a uma entidade divina, o que faz com que impere a tolerância e o respeito entre todos os irmãos.
Mas dentro das próprias religiões, existe um claro distanciamento em relação a quem pensa ou age de forma diferente.
A pergunta que deixo é, não será mais correcto começar a tolerância religiosa no seio das próprias religiões?
Cumprimentos e parabéns pelos excelentes textos presentes neste blog.
Tiago Afonso
Olá Tiago.
Nesse caso, gostaria então de lhe colocar a seguinte questão para reflectir.
Sendo a familia Originária de Marrocos, quando se deslocou para aquele pais, fê-lo para melhorar as suas condições de vida, sendo que a Alemanha é um pais com melhor economia e condições que não existem em Marrocos, ou fê-lo para ao invés de tudo isso, procurando na Alemanha, as mesmas condições sociais e económicas que tinha em Marrocos, obrigando ou querendo obrigar o pais para o qual ele se deslocou, que volto a referir, fê-lo porque era melhor que Marrocos, a adpatr-se para que ele se pudesse encaixar.
Quer dizer, eu agora vou para a casa do meu vizinho e exijo que ele se comporte como eu me comporto na minha casa?
Não será disto que se trata aqui?
Tolerância? Qual? Se são os próprios Marroquinos a exigir mudança naquilo que não é deles?
Caro Streetwarrior,
É precisamente por isso que eu tenho uma opinião dúbia em relação à maioria destes casos de cariz religioso.
Do ponto de vista "nacionalista" (utilizo esta expressão para definir uma visão em que temos em conta que cada país tem a sua própria identidade e está alheio a outras culturas, e não para fazer alusão a movimentos nacionalistas) temos uma família que se desloca para um país estrangeiro, e com uma cultura bastante diferente do delas, ou seja, são "convidados" naquele país e têm de se sujeitar aos costumes do mesmo.
Numa visão mais globalizante, cada vez mais vivemos num mundo pluricultural, que tem de se adaptar às especificidades de cada indivíduo.
Daí eu ter dito no final do meu e-mail que a meu ver deviam ser as religiões a dar o primeiro passo na tarefa de descomplicar certas situações.
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