23 novembro 2011

A Maçonaria NÃO É uma sociedade secreta (IV)


Leão XIII retomou a sua cruzada contra a Maçonaria na sua encíclica de 8 de dezembro de 1892 Custodi de quella fede (texto integral em inglês aqui).

A unificação da Itália completara-se em 1870, com a anexação de Roma ao Estado italiano, apesar da forte oposição do Papa (só em 1929, com o Tratado de Latrão, a situação ficou resolvida, com a mútua aceitação da presente configuração política de uma República italiana e de um Estado papal, o Vaticano, no interior da cidade de Roma). Leão XIII, italiano, de seu nome civil Gioacchino Vincenzo Pecci, escreve esta encíclica do ponto de vista do clérigo italiano que vê a sua terra politicamente organizada de uma forma diferente da que ele gostaria. Efetivamente, a Maçonaria teve um grande e ativo papel na unificação italiana. Garibaldi e Cavour, os dois grandes artífices da mesma, foram maçons. Este enquadramento histórico permite entender melhor a grande animosidade de Leão XIII em relação á Maçonaria.

Nesta sua encíclica, Leão XIII começa por invocar a Humanum Genum, anunciando que neste novo texto se dedicará à explanação dos "deploráveis efeitos" da ação maçónica em Itália: a substituição do pensamento cristão pelo "naturalismo", da Fé pela Razão, da moral católica pela "moral independente", do progresso espiritual pelo progresso material, das leis dos Evangelhos pelas leis civis, que apelida de "código revolucionário", da escola, ciência e arte cristãs pelo "ateísmo e vil realismo". Poderão justificar-se, do seu ponto de vista, os restantes aspetos, mas, quanto à alegada substituição pelos maçons do progresso espiritual pelo progresso material, dificilmente poderia estar mais errado...

Para Leão XIII, a unificação italiana levada a cabo pelos maçons fez-se contra a Igreja Católica e as suas instituições. No fundo, afinal, Leão XIII protestava contra o fim do Poder Temporal do Papa, que obviamente lamentava. Para ele, a substituição do Poder Temporal da Igreja pelo poder civil em Itália só causava degradação, miséria, conflitos. Mais uma vez, vê-se como esta posição é datada e afetada pelos sucessos políticos e sociais da época.

Foi este o último grande pronunciamento da alta hierarquia da Igreja Católica durante muito tempo. O século XX trouxe à Humanidade evoluções e conflitos que colocaram a disputa da alta hierarquia da Igreja católica contra os maçons em segundo plano: a Grande Guerra de 1914-1918, os loucos anos 20, a Grande Depressão, a ascensão do nazismo e do fascismo, a Segunda Guerra Mundial, o Holocausto, a ascensão do Poder comunista e o levantamento da Cortina de Ferro, tudo isso reduzia o antigo conflito à sua real insignificância.

Após trepidantes sessenta anos, o Mundo mudou, a relação das pessoas com as suas fés também e João XXIII reconheceu-o. Teve a imensa lucidez e a arrojada força de convocar o Concílio Vaticano II, que veio a consagrar importantes ajustamentos e atualizações na relação da Igreja e seus oficiantes com a imensa massa de crentes, trazendo efetivamente a Igreja para a Modernidade. A evolução foi prosseguindo e, já no pontificado de João Paulo II, em 1983, foi publicado o novo Código Canónico que, em relação à Maçonaria, deixou de diretamente a fulminar com o labéu da excomunhão automática e o ferrete da impiedade. Com efeito, o cânone 1374, aquele que sobre o assunto diretamente se debruçava, passou a ter como texto:

“Aquele que se afilia a uma Associação que conspira contra a Igreja, deve ser punido com justa penalidade; e aqueles que promovem e dirigem estes tipos de Associações, entretanto, devem ser punidos com interdição”.

Deixou de estar em causa a maçonaria, as "sociedades secretas", etc., mas apenas quem porventura se una a ou dirija "associação que conspira contra a Igreja". Como a Maçonaria Regular não conspira contra a Igreja Católica, antes a reconhece e aceita e com ela coopera, nos mesmos termos em que o faz com as outras Igrejas e religiões, considera-se excluída da previsão do cânone.

Porém, a dialética entre conservadorismo e modernidade no interior da alta hierarquia da Igreja Católica impôs que uma satisfação fosse dada aos mais conservadores. No mesmo dia em que foi publicado o novo Código do Direito Canónico, foi publicada uma Declaração Sobre a Maçonaria pela Congregação para a Doutrina da Fé (designação atual da estrutura eclesiástica que, em tempos passados, se designou por Santa Inquisição...), do seguinte teor:

Foi perguntado se mudou o parecer da Igreja a respeito da maçonaria pelo facto que no novo Código de Direito Canónico ela não vem expressamente mencionada como no Código anterior.
Esta Sagrada Congregação quer responder que tal circunstância é devida a um critério redaccional seguido também quanto às outras associações igualmente não mencionadas, uma vez que estão compreendidas em categorias mais amplas.
Permanece portanto imutável o parecer negativo da Igreja a respeito das associações maçónicas, pois os seus princípios foram sempre considerados inconciliáveis com a doutrina da Igreja e por isso permanece proibida a inscrição nelas. Os fiéis que pertencem às associações maçónicas estão em estado de pecado grave e não podem aproximar-se da Sagrada Comunhão.
Não compete às autoridades eclesiásticas locais pronunciarem-se sobre a natureza das associações maçónicas com um juízo que implique derrogação de quanto foi acima estabelecido, e isto segundo a mente da Declaração desta Sagrada Congregação, de 17 de Fevereiro de 1981 (cf. AAS 73, 1981, p. 240-241).
O Sumo Pontífice João Paulo II, durante a Audiência concedida ao subscrito Cardeal Prefeito, aprovou a presente Declaração, decidida na reunião ordinária desta Sagrada Congregação, e ordenou a sua publicação.
Roma, da Sede da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, 26 de Novembro de 1983.
Joseph Card. RATZINGER
Prefeito
+ Fr. Jérôme Hamer, O.P.
Secretário

Aparentemente tudo afinal continua como dantes.

Mas uma análise mais fina permite detetar subtil diferença. Não há já encíclica papal a condenar a Maçonaria. A legislação canónica mudou para um texto que não condena a Maçonaria, advindo agora essa condenação, não do texto da lei, não de texto do Papa, mas apenas de um texto de um oficial da Cúria Romana, embora se declarando que com a aprovação do Papa. Mas não é a mesma coisa: é diferente se o Papa pessoalmente condena ou se se limita a aprovar que um subalterno o faça...

Em termos comparativos, esta situação é como se uma determinada conduta deixasse de ser diretamente prevista como crime pelo Código Penal, mas fosse publicada uma declaração do Chefe da Polícia, invocando a aprovação do governante, de que afinal continua essa conduta a constituir crime... Por mais voltas que se dê, o Chefe da Polícia é só isso, aplica as leis, não as faz. Tem direito a ter a sua interpretação delas, pode até invocar que o governante o autorizou a publicar a sua opinião e que a aprova mas... a lei é o que é, não o que ele deseja e entende. E se o Chefe da Polícia prende alguém que teve a conduta em causa, o Tribunal que irá decidir se ela afinal é crime ou não aplica a Lei em vigor, não a Declaração do Chefe da Polícia...

Dir-se-á, por outro lado, que o Cardeal Ratzinger, que emitiu a Declaração em 1983, é atualmente o Papa Bento XVI. Assim é. Mas o Papa Bento XVI, pelo menos até ao momento que que escrevo, não emitiu qualquer encíclica condenatória da Maçonaria, nem revogou nem alterou o Código do Direito Canónico....

Seja como seja, o relacionamento entre a alta hierarquia da Igreja Católica ainda tem muito por onde evoluir e certamente muito evoluirá. Ambas as instituições são duradouras e têm vocação de permanecer importantes para a Humanidade por muito tempo no futuro. Atrás de tempo muito tempo ainda há para vir.

Mas algo é certo: foi a alta hierarquia da Igreja Católica quem lançou a ideia de que a Maçonaria seria uma sociedade secreta; há muito, há mais de um século, que abandonou esse conceito e a sua contradição com a maçonaria existe ou não, permanece ou não, nos termos em que exista ou permaneça, não em face do primitivamente alegado secretismo, mas tendo em conta diferenças de ideias e contrastes de posturas (diferenças e contrastes que são legítimos e, porventura, naturais em instituições que são e é natural que sejam diferentes).

Feita esta resenha histórica e mostrado que mesmo quem lançou o labéu do secretismo já não o continua a afirmar, estamos então em condições de elencar e comentar os argumentos usados em prol do tal pretenso secretismo. Mas já não neste texto, que vai longo...

Rui Bandeira

7 comentários:

Streetwarrior disse...

Boas @Rui
Sim, tinha conhecimento disto.
Mas penso que existem ai uns personagens que faltam nessa história e que têm o seu relevo.

Gostaria de perceber melhor...se me souber explicar, claro.

Qual foi o Papel de Manzzini? E o de Felix Orsini mais propriamente da casa real Orsini, há muito ligada ao Vaticano ( datando do período Romano de Claudius ).
Qual é a relação destes 2 á Carbonária, tão bem conhecida pelo que fez na questão de assassinatos a várias famílias Reais por toda a Europa?
Qual é a relação destas casas, á Realeza Negra, responsável pelo derrube do papa colocando um dos seus em seu lugar?
Terá isto algo a ver com a relação do Vaticano, após este período, á Maçonaria.

O Vaticano alguma vez deixou de ser das famílias Orsini, Aldobrandini, Borgese, pallavicini ... e mais umas quantas...que ainda andam por ai a fazer de conta que já cá não andam?
Isto é tudo muito estranho para mim...é como se houvessem Conclaves mas a coisa fica sempre pelos mesmos.
Ando ás voltas com esta questão há muito tempo e talvez me possa ajudar
Obrigado.
Nuno

Jose Ruah disse...

@ Streewarrior,

Estou em crer que se esqueceu de mencionar para além desses todos Don Licio Luchesi, Don Altobello, Don Tommasino e claro Don Michele (Michael) Corleone e o seu sucessor Don Vincenzo ( Vincent).

Rui Bandeira disse...

@ Streetwarrior:

Nuno,

Gosto de história, mas sou apenas um amador de história, que estuda e procura aprender sobre os assuntos que, em cada momento, lhe interessam.

As questões que me coloca ultrapassam o meu conhecimento, pelo que não lhe posso, aqui, ser útil.

Mas sempre lhe digo que, na minha opinião, o Poder (os Poderes...) é questão bem mais complexa que as simples linhagens familiares...

E, já agora, como diz o José; "uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa". Traduzindo: Carbonária é Carbonária; Maçonaria é Maçonaria. Convém não confundir e não vale a pena fazê-lo.

Streetwarrior disse...

Caro @Ruah.
Não seja assim.
Tenha calma consigo que a vida são 2 dias...se acha que perder tempo comigo, é uma insignificancia, não o faça.
Antagonismos não ajudam causa alguma.
Diga-me, as pessoas que mencionei, estiveram ou não envolvidas?
Se sim, porque razão me responde com nomes de personagens de filmes.
Não seja rude comigo,fica-lhe mal é a si,não a mim.


Caro @Rui.
Eu também gosto muito de história e o que deduzi sobre o que aprendi, foi isto.

Felice Orsini
Esteve envolvido juntamente com o partido de Manzzini na luta pela unificação de Italia.
Conspirou contra o Papa?
Tentou Matar Luis Napoleão.
Manzzini foi o responsavél ( não sei qual a influência de Felice ) pela criação da La Giovine Italia.

Existe alguma ligação entre a La Giovane de Manzzini e o movimento da cabonaria?
Então mas se a Cabonária não tem nada a ver com a Maçonaria, gostaria de saber, porque lhe fazem a associação.
Como classifica então a Carbonária?

Qual a relação entre todos estes acontecimentos, o derrube do papa e o tratado de Latrão?

Obrigado @ Ruah e @rui
Nuno

Rui Bandeira disse...

@ Streetwarrior:

Uma comparação, que creio elucidará:

A Carbonária esteve para a Maçonaria como a ETA esteve para o Partido Nacionalista Basco.

O Partido Nacionalista Basco (PNV) é um partido legal, que inclui no seu programa a autonomia / independência (por via pacífica) do País Basco. A ETA foi (é?) uma organização armada que utilizou o terrorismo - atentados, assassínio de inocentes - para procurar compelir á independência do País Basco.

Admito que militantes da ETA, se e quando votaram tenham votado no PNV (pelo menos antes da existência e após a ilegalização Herri Batasuna). Mas isso não faz que a ETA e o PNV sejam a mesma coisa - e maniferstamente que não são, nem que o PNV deva ser considerado terrorista.

A Carbonária foi - essa sim - uma sociedade secreta revolucionária que pretendeu derrubar os absolutismos (e, nalguns casos, mesmo as monarquias) pela violência. Utilizava símbolos e linguagem tiradas da profissão de lenhador. Organizava-se em células clandestinas (tal como, mais tarde, se organizou, durante o salazarismo, o PCP).

Alguns carbonários (Cavour, por exemplo) foram também maçons, admito que numa estratégia de infiltração da Maçonaria (então e em Itália com intervenção política), para alavancar a sua estratégia própria.

Mas é, obviamente, abusivo, confundir, ligar, considerar igual, a carbonária e a Maçonaria.

Porque são confundidas e associadas? Por simplismo, por desconhecimento, pela tendência de associar tudo a tudo dos teóricos da conspiração. Uma investigação séria permite distinguir bem as duas realidades. Mass, para muitos, é bem mais cómodo efetuar a associação...

Quanto às suas outras questões, sõ, reafirmo-o, areia de mais para a minha camioneta.

Jose Ruah disse...

@streetwarrior,

Queira desculpar mas o seu elenco de personagens parecia o do filme os Borgias e lembrei-me logo do Padrinho 3 em que também se trata disso de "substituir" Papas, entre outras coisas.

E isto claro porque o texto do Rui falava de coisas absolutamente concretas, referindo é certo 2 ou 2 Papas do sec XX/XXI e V.Exa. veio à colação com assuntos muito anteriores, e mais uma vez laterais

Sendo assim experimentei dar-lhe a si de volta um pouco do seu método e imediatamente ficou alérgico e reagiu.

Sabe, eu sei bem usar o seu estilo, alias aqui no blog sabemos todos, mas preferimos responder honestamente não sei, do que fugir para a frente e atirar um assunto lateral.

Não pretenda ser tratado como um igual, quando a sua atitude é a de um diferente.

Lucky Maltese disse...

Publiquei este comentário noutro post, deixa-o aqui simplesmente para que seja visto:



Street Warrior o bom de possuir um pseudónimo é que pode mudar a sua personalidade quando quiser, basta arranjar outro heterónimo! Depois de ler os posts e os comentários, concordo plenamente com Rui Bandeira e mais ainda com Jose Ruah que elogio á parte gosto muito da sua frontalidade! Pela 2a vez comento o A PARTIR PEDRA, que tem da minha parte todos os elogios, faço rotina ler as suas publicações, mas começa a despertar em mim um estranho medo que os visitantes sejam nada mais que curiosos a tentar entrar na maçonaria, assim se vê mais uma vez o impacto dos media na sociedade! Como é óbvio que pela boca morre o peixe e quem tem telhados de vidro não atira pedras, eu também me escondo num pseudónimo mas uma das certezas que tenho é que não quero entrar para a maçonaria até porque ainda não percebi o que se trata ao certo!

Caro Ruah continue a escrever e a professar como sempre tem feito que é um gosto ler o seu conhecimento, caro Street continue a comprar o DN e outros artigos que saiam sobre Maçonaria
Saudações a todos e não deixem de escrever