18 novembro 2008

Mau-gosto

O texto de hoje não tem nada a ver com Maçonaria. Ou, se calhar, bem vistas as coisas, até tem. Pelo menos com a forma como os princípios maçónicos nos levam a ver e ajuizar as situações.

Li ontem na revista Visão (sai à quinta-feira, mas com esta coisa de trabalhar, escrever no blogue e não ser um completo estranho para a família só consigo ler aos bocadinhos e cada exemplar dá-me para uma semana...) um artigo sobre os reveses e infortúnios que recentemente Paulo Teixeira Pinto tem tido na sua vida privada. Já de si, não é um assunto que me pareça que deva ser objeto do interesse de um órgão de informação de referência. Que os tablóides metam o nariz na vida privada das figuras públicas, já estamos infelizmente habituados. Que a imprensa considerada séria vá pelos mesmos caminhos é um acrescido motivo de desagrado. Mas, enfim, ser figura pública tem destes inconvenientes. E Paulo Teixeira Pinto é, incontestavelmente, uma figura pública em Portugal. Foi Secretário de Estado, foi Presidente da Comissão Executiva do maior banco privado português, esteve envolvido na luta pelo controlo da gestão desse banco, enfim, colocou-se sob as luzes dos projetores da opinião pública (ou da publicada, o que não é bem a mesma coisa...). Por outro lado, ele próprio deu informações sobre opções da sua vida, que, de algum modo, contribuíram para moldar a imagem que dele o público tem.

Entre essas informações que ele próprio deu ou permitiu que fossem tornadas públicas e confirmou, estão os factos de, durante um apreciável número de anos, ter sido um membro supranumerário da Opus Dei e de ter, recentemente, cessado essa ligação.

O artigo da Visão aponta uma sucessão de factos ocorrida depois da saída de Paulo Teixeira Pinto da Opus Dei que parece justificar o título do artigo, O homem a quem tudo acontece: saiu da presidência do maior banco privado português, sofre de uma doença neurológica degenerativa que obviamente lhe é penosa, divorciou-se há pouco tempo, terminando um casamento de 25 anos e, para cúmulo, muito recentemente morreu subitamente o seu filho primogénito, jovem de 22 anos. Realmente uma sucessão de eventos e infortúnios que não podem deixar de fazer mossa ao mais pintado...

Ao desagradável de sofrer essa sucessão de infortúnios, soma-se a exposição dos mesmos (à exceção da sua saída do banco, tudo situações estritamente da sua vida privada) ao comentário público. Já de si é mau.

Agora o que francamente me chocou, me indignou, foi uma específica passagem do artigo em que a jornalista dá conta de uma frase sobre ele proferida por um alegado seu amigo, segundo o juízo da jornalista sem encerrar qualquer ironia: "O ano de 2008 é o seu annus horribilis. Não sei se o Altíssimo quer castigá-lo por ter saído da Opus Dei."

Francamente! Que mau-gosto! Com amigos destes, Paulo Teixeira Pinto não precisa de inimigos! Bem sei que o disparate não paga imposto, mas disparates com a insensibilidade deste, sobretudo, fazem-me desejar que passe a pagar!

Paulo Teixeira Pinto (que não conheço, note-se) é, manifestamente, um crente, um homem para quem a sua religião é importante. Só assim se compreende a sua ligação à Opus Dei. E, aliás, a sua saída dessa organização não é por ele justificada com perda de fé, pelo contrário, apenas por ter chegado á conclusão de que não deveria viver essa sua fé com os constrangimentos e regras impostos por essa organização. Um suposto amigo dizer a uma jornalista que admite que Deus esteja a castigá-lo pela sua decisão de abandonar a Opus Dei é de uma insensibilidade completa, indigna da pretensa amizade!

E claro que é um disparate do tamanho de um comboio! Não apenas por presumir que o Criador não tem mais do que fazer do que criar infortúnios na vida de um homem que decidiu abandonar uma organização humana. Mas também pela conceção do Criador que espelha, que é tudo menos lisongeira, variando entre o dono de escravos que decide infernizar a vida do servo que abandonou o lado da fazenda que devia amanhar, o titereiro que move as marionetas a seu bel-prazer, o ente vingativo que pune com mil penas quem lhe caiu em desgraça...

Disparate, disparate, disparate! Esta conceção do Altíssimo como Divindade a temer já era!

Ou talvez se tratasse da passagem de uma subliminar mensagem: quem deixar a Obra verá a sua vida a andar para trás. Ou talvez fosse a subliminar identificação da Obra com Deus. Ou talvez não fosse apenas uma frase infeliz e mal pensada e, pelo contrário, tenha sido pensada e querida, para ter efeitos exemplares... Se assim foi, passa da categoria do mau-gosto para a do nojo, puro e simples.

Paulo Teixeira Pinto tem de beber o cálice amargo dos infortúnios que a roda da vida lhe reservou para esta fase da sua vida. E que hão de passar, quando a roda rodar. Não precisa ainda por cima de ser objeto de pseudo-boutades, meros soundbites, deste género. Que só revelam intolerância.

Não me interpretem mal. Não estou a criticar a Opus Dei. Aliás, eu não alinho na pretensa rivalidade entre esta organização e a Maçonaria, que acho que não tem qualquer razão de ser. Cada instituição no seu campo e não me incomodes a mim, que eu não te incomodo a ti. Apenas entendo que cada um é livre de procurar o seu caminho onde se sentir melhor. E de sair de onde entrou, se assim o entender. Não é proibido. Não é... pecado! E não merece que um qualquer, ainda por cima dizendo-se amigo, profira enormidades deste jaez.

Procuro cultivar a tolerância. Mas confesso que o meu nível de tolerância para o disparate grosseiro e o mau-gosto é muito baixo. Porque distingo muito bem entre a tolerância, que deve ser praticada, e a indiferença, que é a antecâmara da insensibilidade.

Pronto! Já desabafei!

Rui Bandeira

4 comentários:

Paulo M. disse...

@ Rui:
Interessante texto o de hoje; deste não vou comentar senão o último parágrafo, que refere a proverbial tolerância maçónica. Pelo que entendo do conceito, só faz sentido ser-se tolerante com aquilo com que não nos identificamos - aquilo que, por discordarmos, vemos como estando errado.

Assim, a tolerância será a inclusão no conceito de Liberdade individual do direito ao disparate, ao erro e à asneira, conforme vistos pelos olhos dos outros.

É uma ideia cuja aceitação faço depender da ausência de vítimas inocentes do erro cometido. Não as havendo, faça cada um recair sobre si mesmo as consequências do erro que cometa. Mesmo assim, o exercício do direito à cegueira por quem não quer ver causa-me, admito-o, algum desconforto.

Já quanto à questão da "tolerância" vs. "indiferença", recordo que há quem reclame para si, mais do que a tolerância, a indiferença alheia: mais do que ser meramente tolerados, desejam passar despercebidos. Esta "antecâmara das insensibilidades" não se tornará, neste contexto, no desejável oposto a um puritano e ultra-ortodoxo repúdio da diferença?

Um abraço,
Simple

Nuno Raimundo disse...

Boas...

De facto, com amigos assim nem é preciso ter inimigos...

E será que quem fez o "tal" comentário seria mesmo amigo de tal personalidade?

abr...prof...

Jose Ruah disse...

Se conheço o Rui, ele não é de comentar este tipo de coisas. Se o fez desta vez é porque de facto esta situação é de mau gosto para quem seja crente.

Li este mesmo artigo e senti o que o Rui sentiu. Nao conheço o Sr. P.T.Pinto de parte alguma, a figura dele não me é particularmente simpatica, mas é um ser humano e como todos tem o direito à sua privacidade e à sua maneira de viver a sua fé.

Não creio que em situaçoes destas, melhor afirmaçoes como as que o tal amigo fez, haja qualquer espaço para a tolerancia. Nem mesmo para o Maçon mais tolerante.

Paulo M. disse...

Creio que o que mais choca não é a mensagem; é o conceito. A observação feita - por cruel e disparatada que nos pareça - decorre, contudo, cartesianamente de um entendimento de Deus que castiga, se encoleriza e se faz temer. Contrariamente ao que o Rui quer crer quando diz que "Esta conceção do Altíssimo como Divindade a temer já era!", esta conceção está longe de ser marginal e minoritária.

Pergunto-me se a tolerância não implicará uma certa "capacidade de ser indiferente" à expressão de certas convicções alheias; estou em crer que sim. Merecerão, afinal, tais observações mais do que um mero encolher de ombros ao tal "amigo" e uma manifestação de solidariedade para com o visado?

O "amigo" não mudará certamente de ideias face à nossa opinião; nós não ficamos mais felizes (pelo contrário) ao revoltarmo-nos contra a situação; apenas resta o gesto de apoio ao visado que, por não lhe sermos próximos, pouco alívio sentirá.

Sartre dizia que o Inferno são os outros; vou acreditando, cada vez mais, que cada um de nós, penosamente, constroi o seu...

Um abraço,
Simple