24 outubro 2012

Regras Gerais dos Maçons de 1723 - XXV

Os Mestres das Lojas devem, cada um, nomear um Companheiro de sua Loja, discreto e experiente, para formar um Comité, constituído por um Companheiro de cada Loja, com a incumbência de receber, em lugar conveniente, qualquer pessoa convidada para admissão, o qual tem poder para o informar, se o acharem merecedor para ser admitido, ou barrarem-lhe a entrada se tiver razões para isso; mas não excluirão ninguém antes de explicarem, a todos os Irmãos, em Loja, quais essas razões, para que se evitem erros. E que nenhum verdadeiro Irmão seja excluído, nem um falso Irmão, ou embusteiro, seja admitido. Este Comité deve reunir-se no local da Festa de São João, antes do seu início e antes que qualquer pessoa chegue com o convite (para ser admitido).

 Esta regra postula o que podemos considerar a origem do telhamento, ou seja, o exame das credenciais de quem, sendo desconhecido da Loja (visitante), pretende participar de uma reunião maçónica.

As sessões das Lojas maçónicas são reservadas aos maçons. Por outro lado, a Maçonaria organiza-se em graus (Aprendiz, Companheiro e Mestre), sendo que os maçons de grau inferior não podem participar de reuniões destinadas aos de grau superior. Apresentando-se um desconhecido para participar de uma reunião de Loja, é necessário que esta se assegure, em primeiro lugar, se quem se apresenta para tal é maçom e, em segundo lugar, se é maçom do grau em que a Loja vai trabalhar, ou superior.

O conjunto de operações e verificações destinado a que essa certeza seja adquirida designa-se por "telhamento", o ato de "telhar". A expressão é simbólica. As Lojas maçónicas reúnem "a coberto", isto é, em privado, sem a presença de quem não é maçom. A simbologia utilizada pela Maçonaria é extraída da construção. Um edifício normalmente é coberto com telha. Um edfício com telhado está a coberto. Logo, uma Loja "a coberto" é uma Loja dotada de telhado, uma Loja "telhada". O ato de verificar que quem acede a uma reunião de uma Loja tem o direito de o fazer é o ato de garantir que a Loja reúna efetivamente "a coberto", é o ato de "cobrir" a Loja. Fazendo-se o paraleo com a cobertura de um edifício, cobrir um edifício é dotá-lo de telha, telhá-lo. Logo, o ato de garantir que a Loja reúna a coberto, mediante a verificação de que quem se apresenta é maçom, e maçom do grau em que a Loja vai reunir, é o ato de telhamento da Loja e essa atividade de verificação é chamada de "telhar" aquele que pretende visitar a Loja.

Esta designação é pacífica e comum na Maçonaria Portuguesa.

Já no Brasil, existem duas variantes para a designação. Uma parte das Lojas, em regra as subordinadas ao Grande Oriente do Brasil, utiliza "telhar" e "telhamento". Outra parte, em regra Lojas jurisdicionadas às Grandes Lojas dos vários Estados brasileiros, utiliza os termos "trolhar" e "trolhamento". Tenho este últimos termos por corruptelas dos termos originais, decorrentes de particular entendimento da fonética das palavras originais, tais como são pronunciadas no "português europeu". Com efeito, a forma de pronúncia utilizada no português europeu é consideravelmente mais fechada, mais "muda" na pronúncia das vogais não tónicas. Enquanto que no português do Brasil a vogal "e" de telhar é claramente pronunciada, no português europeu é completamente muda. Não admira, assim, que um ouvido brasileiro confundisse a sílaba "te" de telhar e telhamento, em que a vogal, pura e simplesmente é abafada, é completamente átona, com a a sílaba "tro" de "trolhar", ato de passar a trolha (que até é um instrumento de pedreiro...), daí derivando "trolhamento".

Um ilustre Irmão brasileiro, Kennio Ismail, defende, no blogue "No esquadro" (em http://www.noesquadro.com.br/2011/02/telhamento-ou-trolhamento.html) que o correto é utilizar "trolhar" e "trolhamento", argumentando, designadamente:

Consultando o Dicionário Priberiam da Língua Portuguesa (dicionário do chamado “português europeu”, visto que o REAA praticado no Brasil tem suas raízes na França e em Portugal, com muitos maçons brasileiros do século XIX tendo iniciado na Maçonaria quando dos estudos em Lisboa), encontramos, entre alguns poucos, o seguinte significado para a palavra “trolha”: “operário que assenta e conserta telhados”. Sendo assim, no bom e velho português, “trolhamento” é assentar e consertar telhados. Já o termo “telhador” significa no mesmo dicionário “aquele que telha”, e o verbo “telhar” significa “cobrir com telha”.
Sim, é exatamente isso que você pensou: se você mora em Lisboa e está com uma goteira em casa, você chama “o trolha” pra consertar seu telhado. Ele faz um “trolhamento”, ou seja, um exame para verificar onde está o problema, e então realiza o conserto.
Dessa forma, pode-se entender que “telhamento” é fazer um telhado, enquanto que “trolhamento” é consertar um telhado. Ora, o templo já está concluído. O examinador apenas verificará se não há uma “telha” fora do lugar ou defeituosa, de forma a evitar uma “goteira”. Então, qual é o termo que melhor se encaixa à ação do examinador? Trolhamento. O examinador está sendo um “trolha”, assentando, ou seja, avaliando se os visitantes têm o nível (grau) necessário para participarem dos trabalhos, e impedindo assim a entrada de “uma goteira” em nosso lar maçônico.

O argumento é interessante, mas, a meu ver, não colhe, por várias razões:

1) O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa é um recente dicionário eletrónico, criado por uma empresa comercial que, embora meritório, não tem a autoridade bastante para, por si só, definir o que é certo ou errado na língua portuguesa;

2) Em mais nenhum outro dicionário que consultei, inclusive do século XIX, encontrei o entendimento de "trolha" como operário que assenta e conserta telhados;

3) Em português europeu "trolha" é pedreiro ou servente de pedreiro (e também a designação de uma ferramenta do pedreiro, a colher de pedreiro), e ponto final;  nem no século XIX, quando "muitos maçons brasileiros" estudaram e foram iniciados em Lisboa trolha era designação específica de quem consertava telhados;

4) É certo que o pedreiro trabalha em todas as fases da construção, desde executar os caboucos a levantar paredes, fazer lajes e, sim, também assentar o telhado - mas tudo isso são partes da função do pedreiro, do mister do trolha: não é correto individualizar uma particular tarefa (se o fosse, então ao trolha também cabe abrir janelas, por onde estranhos podem espreitar para o interior das Lojas...);

5) Finalmente, nunca, em português arcaico ou nos rituais e catecismos em uso em Portugal nos séculos XIX e XX foi utilizado "trolhar" e "trolhamento", antes e apenas "telhar" e "telhamento".

Tenho assim que, com toda a amizade, discordar do entendimento do Irmão Kennio Ismail.

Mas, por outro lado, algo há ainda a frisar.

Os defensores do uso de "telhar" e "telhamento" acusam quem usa "trolhar" e "trolhamento" de incorreção, frisando que "trolhar", passar a trolha, o ato de alisar uma superfície é bem mais adequado para designar, não a verificação de quem é maçom, mas sim a atividade de conciliar irmãos desavindos, de limar as asperezas entre eles surgidas, aplainar, alisar, os desentendimentos, enfim, obter a concórdia na Loja através do diálogo que esclareça posições, atenue divergências e garanta a tolerância de diferentes posições e entendimentos.

Embora pessoalmente eu adira a esta interpretação simbólica, não quero deixar de expressar que não concordo com a acusação de "incorreção": a língua é uma coisa viva, evolui, por vezes por variantes cultas, talvez a maioria das vezes por variantes populares, por norma precisamente corruptelas de expressões cultas. Se a língua não evoluísse, se não se alterasse, ainda todos falávamos latim... Uma vez que uma expressão ganhe um uso continuado e significativo na língua, passa a integrá-la, quer a sua origem seja "culta" e tida por gramaticalmente correta, quer a sua origem seja "popular" e decorra de corruptela. Penso que é essa precisamente a situação, neste caso concreto: uma evolução da língua portuguesa, no espaço brasileiro, que acabou por consagrar o uso como sinónimos de "telhar" e "trolhar" e "telhamento" e "trolhamento", desde há dezenas de anos. Precisamente porque a língua é viva e extravasa as pretensões de lhe impormos espartilhos, regras e normas, considero que nenhuma das expressões é, hoje, correta ou incorreta: ambas as variantes estão consagradas pelo uso, ambas ganharam a sua alforria na língua portuguesa, ambas podem ser utilizadas no português utilizado no Brasil.

Uma última nota: não se estranhe que o texto da regra refira que o telhamento era feito por Companheiros: em 1723, ainda a Loja tinha apenas Aprendizes e Companheiros (estes os "oficiais", os que já sabiam executar os trabalhos, equivalentes hoje aos Mestres Maçons), sendo a designação de Mestre reservada ao que hoje designamos por Venerável Mestre. Só mais tarde é instituído o sistema de três graus. O que nos recorda que preservação da Tradição não é sinónimo de imobilismo... nem na língua!

Fonte:

Constituição de Anderson, 1723, Introdução, Comentário e Notas de Cipriano de Oliveira, Edições Cosmos, 2011, página 142.

Rui Bandeira

10 comentários:

Ricardo Julien Lóes disse...

Caro Ir.: Rui,

Fico feliz por abordar novamente o tema, principalmente porque citou o posicionamento do Ir.: Kennyo Ismail.

A despeito da divergência, concordo com ambos que a questão não pode ser tratada num viés positivista extremado de "certo" ou "errado", não é mesmo?

Apenas ressalto que em seu excelente texto faltou apenas, salvo melhor juízo, pontuar, como fez o aludido Ir.: Kennyo, que a justificativa para se acatar o termo "telhamento" e/ou se refutar "trolhamento" NUNCA pode ter como fundamento a suposta origem na palavra inglesa “Tiler” (Cobridor Externo).

Para finalizar, o que posso dizer, tal como dito no blog daquele Ir.:, é que tem sido uma experiência excelente aprender com o aprofundamento do estudo da questão feito por dois estudiosos IIr.: que exercitam a salutar característica de serem livres pensadores.

Na esperança de contribuir para o debate.

TFA.

Ricardo Lóes.

Kennyo Ismail disse...

Prezado Irmão Rui, fico feliz que o tema tenha ganhado a atenção de tão competente irmão. Comentei em meu blog que essa dialética é ótima, pois a cada resultado temos a questão mais clara, sabemos melhor o que não é trolhamento / telhamento e chegamos mais perto do que realmente é.
Sua argumentação me levantou algumas questões interessantes, e espero em breve apresentá-las.
Kennyo Ismail

Joaquim Almeida Santos disse...

Caros Ilustres Senhores,
Saúdo-os.
Grato pelo esmiuçar da questão Telhamento/Trolhamento. Se me permitem, em miha humilde opinião, creio que o descrito pelo Ilustre Mestre Rui Bandeira "...Trolhar, passar a trolha, o ato de alisar uma superfície é bem mais adequado para designar, não a verificação de quem é maçom, mas sim a atividade de conciliar irmãos desavindos..." é adequado à representação simbólica do ato.
Quanto a "Telhamento", peço a V. atenção para extrato de um Texto Macónico do Ilustre Mestre Pedro Luiz Santos Serra
A.'.M.'., A.'. R.'. L S.'. THEOBALDO VAROLI FILHO - N. 2699, São Paulo - SP - Brasil.

"Entende-se por telhamento o ato, ou ação, de telhar, ou seja, cobrir com telha(s), HOUAISS[1].

Ao Ir.'. Cobridor é destinada a execução do telhamento, é ele quem permite o ingresso dos IIr.'. ao interior do templo após a abertura dos trabalhos.

Cobrir e Telhar são expressões específicamente maçônicas e consiste em uma série de averiguações junto aos IIr.'., através de SSin.'., TToq.'., PPal.'.Sag.'. e Sem.'., com a finalidade de assegurar o acesso ao templo sómente à IIr.'. MM.'. regulares e com grau correspondente ao qual trabalha o templo, BOUCHER[2].

Pode-se definir que a principal atribuição do Ir.'. Cobr.'. é a de relacionar a proteção física do templo a um estado de espiritualidade de todos que a ele tenham acesso. MORAIS[3] apresenta este importante elo entre o exterior e interior ampliando seus conceitos ao indivíduo na construção de seu próprio templo, o templo humano.

A cobertura do templo se torna impossível considerando suas dimensões, CAMINO [4]. O seu acesso se dá pelo Oc.'., extendendo se até o Or.'.,do Sul ao Norte, representados pelas colunas e das profundezas, representada pelo piso de mosaico até (segundo o eixo zenital) a amplitude do universo, representado pela abóbada celeste. Observa-se que estas dimensões simbolizam os conceitos de continuidade e universalidade ao qual o telhamento deve ser aplicado.

O telhamento tal qual pretende-se também colocar trata do telhamento espiritual e deve se executá-lo continuamente junto à construção do templo humano.

Referências Bibliográficas
[1] HOUAISS, ANTONIO. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Acesso pelo site www.uol.com.br .
[2] BOUCHER, JULES. A simbólica maçônica. 16a Edição, Editora Pensamento-Cultrix Ltda, São Paulo, 1979.
[3] MORAIS, ANTONIO. O Telhamento. Prancha apresentada na A.'.R.'.L.'.S.'. Theobaldo Varoli Filho No 2699.
[4] CAMINO, RIZZARDO.Catecismo Maçônico - Aprendiz, Companheiro e Mestre. Madras Editora de São Paulo, ISBN: 85-8550-550-8, São Paulo..

Perdoem-me, ter-me alongado tanto. Dado que não possuo conhecimento bastante para opinar, recorri a este método.
Grato pela atenção que me dedicaram,
Almeida Santos

Candido disse...

Boas Rui.
Nunca me tinha detido a pensar no termo trolhamento, mas como as palavras em liguagem iniciatica têm uma significação propria, vou ter a ousadia de dar o conceito que tive quando ouvi pela 1ª vez o termo. Trolha no norte do país é um termo usado para definir um operário de construção civil que faz reparações.
Pois bem, ou se está a coberto ou se está á chuva....por pouca agua que caia, quem estiver á chuva molha-se!!!!O que acontece se o visitante não for reconhecido.
Abraço e muito Obrigado pela partilha de conhecimento.´
Candido

PeaceWeapon disse...

interessante, como tão facilmente se fez associar a expressão "Chove" , usada aquando da presença de profanos, com a tarefa de telhar, que consiste em cobrir o templo de telhas, para que não "chova"! E como só agora percebi o porquê da expressão ainda mais incrível..
Continua a ensinar, caro I:., que ainda tenho muito que aprender!

Rui Bandeira disse...

@ Ricardo Julien Lões:

Também concordo que a origem do termo em português não tem, ao menos diretamente, a ver com o termo inglês "Tiler" (Guarda Externo), que também significa, naquela língua, telhador, o que assenta telhas.

Mas não sei se continuaremos de acordo se eu prosseguir que, indiretamente, não tenho tanta certeza assim, já que penso haver grande probabilidade de "telhar" ter origem no termo francês "tuileur" (assentador de telas (tuiles)...

Após o final desta série que estou escrevendo sobre as Regras Gerais dos Maçons na Constituição de Anderson de 1723 (que durará até ao início do próximo ano), desenvolverei o assunto em texto onde procurarei justificar esse meu entendimento.

Rui Bandeira disse...

@ Kennio Ismail.

Fico aguardando com interesse os desenvolvimentos que promete trazer ao tema, tanto mais que, embora não concorde com a hipótese que colocou, a achei muito bem engendrada.

A Maçonaria Especulativa tem, precisamente, uma componente de especulação e especular é isso mesmo: colocar hipóteses e desenvolvê-las com o recurso à Razão. O percurso desse desenvolvimento e os contributos críticos dos nossos pares permitirá que descortinemos o acerto, total ou parcial, das hipóteses que colocamos.. E é assim que, com concordâncias e discordâncias, todos vamos evoluindo um pouco!

Rui Bandeira disse...

@ Almeida Santos:

Grato pelo seu contributo, que foi pertinente e elucidativo, e com cujo teor concordo.

Rui Bandeira disse...

@ Candido:

Não é só no norte de Portugal que trolha tem esse significado. Acho que em todo o País.

Daí que, embora eu entenda que a utilização de "trolhamento" em parte das Lojas brasileiras deriva de corruptela fonética do "telhamento", termo que foi e é utilizado em Portugal no léxico maçónico, entenda perfeitamente a colocação da hipótese do Irmão Kennyo Ismail. Como costumo dizer, não será "vero"... mas não deixa de ser "bene trovato"!

Rui Bandeira disse...

@ Peace Weapon:

Pois é, meu caro, as conversas são como as cerejas... E é por isso que conversar, trocar opiniões, debatê-las, quase sempre faz com que se aprenda algo mais...