27 novembro 2013

Rui Clemente Lelé (26/8/1958-18/11/2013), maçom organizado


Há pouco mais de uma semana, a notícia da passagem ao Oriente Eterno do Rui Clemente Lelé chegou, chocante e inesperada. Sabia que o Rui tinha sido, dias antes, submetido a uma delicada intervenção cirúrgica, mas também sabia que se tratara de uma intervenção programada e que havia notícia de que tinha corrido bem e o Rui passara sem problemas o período de recobro e de maior risco. Mas, embora gradualmente diminuindo, há sempre um risco numa intervenção cirúrgica - e, no caso do Rui, aconteceu o que já se pensava estar ultrapassado.

O Rui foi fundador da Loja Mestre Affonso Domingues, no ano de 1990. Quando, no ano seguinte, eu, oriundo de uma Loja germânica, ingressei na mesma Loja, integrámos juntos a Coluna dos Companheiros. Fomos Exaltados Mestres Maçons na mesma sessão. Vivemos e partilhámos juntos os tempos, para nós memoráveis, da implantação e consolidação da Loja. Ao longo de mais de duas décadas, partilhámos cumplicidades e distanciamentos, mas sempre uma sólida e pacata amizade e mútua consideração.

Homem de convicções firmes e espinha direita, o Rui não teve sempre uma vida fácil. Frontal e direto, não temia expressar as suas opiniões e defender as suas convicções fosse perante quem fosse. As suas capacidades rapidamente conduziram a que o Grão-Mestre Fundador lhe confiasse funções na Grande Loja. Mas a sua frontalidade e independência de espírito  não demoraram muito a levá-lo a entrar em rota de colisão com o carismático fundador. O embate foi de tal ordem que a situação tinha de quebrar pelo lado mais fraco e esse era, então, o do Rui. Teve de se afastar, de adormecer.

Aquando da cisão da Grande Loja, o Rui estava adormecido. Pôde regressar e foi um elemento precioso na reorganização que se tornou necessária. Mais tarde, veio a dar também um importante contributo na reunificação.

A sua saúde já o traíra, há alguns anos. A sua função renal deteriorou-se irreversivelmente e o Rui teve de se submeter a um transplante renal.  Infelizmente, mais uma vez a sorte não esteve com ele. O seu organismo rejeitou o rim transplantado e, desde então, o Rui passou a ter que organizar a sua vida em função da necessidade de efetuar, várias vezes por semana, sessões de diálise.

Nem o abalo de saúde nem o evidente incómodo que passou a marcar a sua vida abateram o Rui. Conciliou o trabalho com os tratamentos, a família, os seus interesses dos tempos livres e, de novo, a Maçonaria. Como todos os homens habituados a fazer as coisas acontecerem, organizou-se e arranjou tempo para tudo, fazendo até parecer que era fácil...

Quando regressou, fê-lo, naturalmente, à sua Loja, a Mestre Affonso Domingues. Rapidamente se reintegrou, assumindo as funções que lhe foram sendo sucessivamente confiadas. Veio a ser o vigésimo Venerável Mestre da Loja. Então mais uma vez os seus dotes de organizador se revelaram e dirigiu a Loja com eficiência, motivando os seus obreiros para bem realizarem todas as tarefas de que os incumbiu.

O atual Grão-Mestre confiou-lhe o exercício da importante função de Grande Secretário, sabendo que as suas capacidades de gestor e de organizador o levariam a ter êxito - como teve - nesta importante tarefa. Teve um importante papel  na preparação da reunificação da Grande Loja. Para isso, teve de tomar a sempre difícil decisão de sair da sua Loja Mestre Affonso Domingues, para alçar colunas e ser o primeiro Venerável de uma nova Loja, que teve como primeira missão acolher e integrar os vários elementos que, antes da reunificação formal, batiam à porta da Grande Loja e solicitavam a sua admissão ou readmissão nela. A essa Loja atribuiu o nome de Fernando Teixeira, o Grão-Mestre Fundador, que também propiciara, mais tarde, a cisão. Com isso demonstrou, mais uma vez, a sua largueza de espírito e ausência de rancor. O facto de ter tido importante confronto com o Grão-Mestre Fundador, grave ao ponto de ter tido então que suspender a sua atividade maçónica, não o impediu de homenagear, merecidamente, quem foi e é credor da admiração dos maçons regulares portugueses, pela sua visão estratégica, pelo importantíssimo papel que teve no regresso da maçonaria Regular a Portugal e no reconhecimento internacional da Grande Loja. Revelou também a sua inteligência, ciente que foi que, quinze anos passados e esbatidos e ultrapassados os fatores que determinaram a dolorosa cisão, era tempo de passar a trolha do apaziguamento sobre todos esses acontecimentos e homenagear quem era admirado por ambos os lados da cisão ocorrida.  

O Rui foi um entusiasta da prática do golfe. A deambulação pelos campos de golfe, atrás da bolinha que repetidamente se vai taqueando do ponto A ao ponto B, ultrapassando distâncias e obstáculos, contribuía para o seu equilíbrio físico e psicológico. Foi um entusiasta organizador de torneios de golfe, com as receitas destinadas a fins de beneficência.

Também foi um amante da fotografia. Não do mero registo de imagens que a facilidade dos modernos telemóveis com câmaras de milhões de pixels possibilita, mas da fotografia a sério, buscando imagens de qualidade e dignas de serem registadas em telas de grandes dimensões. Na última sessão de Grande Loja (não sabíamos então que seria mesmo a sua última sessão de Grande Loja!) efetuou uma exposição de várias de fotografias suas assim registadas em tela, todas de grande qualidade. Doou uma dessa fotografias em tela para ser sorteada. Tive a fortuna de ser o premiado com ela. Está exposta no corredor do meu escritório. Todos os dias de trabalho a vejo e admiro. É agora mais um fator de recordação do Rui!

Foi um católico praticante e consequente. 

O Rui, com o seu temperamento bem-disposto, atencioso e afável granjeou o apreço de todos os maçons que com ele lidaram. A sua passagem ao Oriente Eterno naturalmente que chocou todos. Mas todos também se congratulam por terem tido a oportunidade de privar com ele. Foi um bom exemplo para todos nós. Foi um confortável amigo para muitos de nós. É agora uma apaziguadora lembrança. Até um dia, Rui!

Rui Bandeira

20 novembro 2013

A trolha



A Maçonaria utiliza os artefatos e ferramentas ligados à atividade da construção como símbolos ilustrativos dos ensinamentos que procura transmitir e preservar. É o caso, por exemplo, da trolha.

A trolha, ou colher de pedreiro, é uma ferramenta do ofício da construção utilizada para separar, transportar, projetar ou colocar argamassa, massa ou cimento nas superfícies, paredes ou muros, de uma construção. Serve também para alisar a massa, argamassa ou cimento colocada, por exemplo, numa placa ou na união entre pedras ou tijolos de uma parede ou muro.

Tendo em conta estas utilidades para o ofício da construção, a Maçonaria Especulativa adapta o conceito para simbolizar virtudes ou comportamentos que devem ser adotados pelos maçons e naturais numa Loja maçónica.

Tal como a ferramenta operativa alisa as superfícies, assim também o maçom deve utilizar a trolha da concórdia, da conciliação, para alisar, regularizar, aplainar diferenças ou conflitos entre Irmãos. 

A Fraternidade não é necessariamente um oásis de paz e ausência de conflitos. Tal como os irmãos biológicos, embora mantendo entre si laços fortes de solidariedade e amor fraternal, não obstante têm frequentes desacordos, querelas, conflitos, que aprendem a regular sem pôr em causa a sua relação fraternal, também os Irmãos maçons estão sujeitos á erupção de conflitos e desacordos entre si, que devem regular preservando as suas fraternais relações.

Devem, por isso, sempre ter ao alcance de sua consciência a trolha da conciliação, da boa-vontade, do saber olhar pelo ponto de vista do outro, para alisar as diferenças, conciliar os interesses ou propósitos divergentes.

A trolha simboliza ainda a benevolência, a tolerância, a indulgência, perante as asperezas, os defeitos alheios, espalhando sobre eles a massa do perdão, do esquecimento de injúrias ou agravos, em prol da harmonia da construção. 

O maçom não se deve também esquecer nunca que, tal como se vê na necessidade de utilizar a trolha para alisar as asperezas que vê em outros, também os demais utilizam idêntico instrumento simbólico em relação às suas próprias imperfeições. A tolerância, a fraternidade, funcionam em sentido duplo. Ninguém tem o direito de reclamar para si o perdão ou a complacência em relação aos seus erros sem ele próprio ter idêntica atitude em relação aos demais.

Manejar a trolha simbólica não é fácil. Exige treino, exige habituação, exige bom-senso. Só progressivamente aquele que entra na Maçonaria se habitua a manejar esta ferramenta simbólica. Enquanto as ferramentas por excelência do Aprendiz são o maço e o cinzel, com que desbastam a sua pedra bruta, corrigindo-se das maiores asperezas e dando-se forma adequada para colocação útil no Grande Templo da Harmonia Universal, e que as ferramentas do Companheiro são essencialmente o prumo, o nível e o esquadro, com que colocam a pedra já aparelhada no sítio certo e útil, o Mestre Maçom tem como instrumentos essenciais a Prancha de Traçar, onde traça os planos da construção de si mesmo e do seu comportamento e - precisamente - a trolha, com que espalha o cimento da harmonia, que une definitivamente todos os materiais da sua construção de si. 

Rui Bandeira

13 novembro 2013

O visível limite da Tolerância!



A Maçonaria, sendo algo de sério, não tem que ser sisuda. Os maçons tratam do que é sério com seriedade, mas também sabem descontrair, brincar e utilizar o humor para evidenciar pontos de vista, quando é o momento e o ambiente para tal. O episódio que vou contar é uma demonstração disso mesmo. Ocorreu recentemente, no decorrer de um ágape da Loja Mestre Affonso Domingues.

Os ágapes são importantes complementos das reuniões maçónicas. No decorrer das sessões trabalha-se de modo sério, compenetrado, concentrado e tão eficiente quanto possível, sobre os assuntos que são objeto da reunião. Finda a sessão formal, os obreiros da Loja reúnem-se então à volta de uma mesa e, partilhando uma refeição, convivem, conversam, debatem, brincam, enfim, conhecem-se melhor e reforçam os laços entre si. É frequente que, mesmo nesse ambiente descontraído, sejam colocados temas para debate ou análise que, sendo sérios, não perdem nada em serem tratados de forma mais coloquial.

Foi o caso num dos últimos ágapes da Loja. O Venerável Mestre introduziu o tema da Tolerância e foi inevitável - é certo como a morte! - que rapidamente a conversa evoluísse para o sub-tema dos limites à Tolerância, se existem, como existem, quais são. É um tema repetidamente visitado e debatido, até porque é obviamente um assunto imprescindível na formação dos mais novos.

Sobre o tema, a minha convicção está assente e, em termos sérios, está exposta, designadamente, no texto "Os limites da Tolerância". Mas num ágape a conversa evolui e oscila entre o sério e o ligeiro e, opina daqui, brinca dali, vai-se passando a mensagem aos mais novos. Foi o que, mais uma vez, sucedeu naquele ágape. Começou-se pelo lado sério e, a partir de certa altura, a conversa aligeirou. 

Já alguém tinha repetido a conhecida e mil vezes citada frase do Grão-Mestre Fundador de que "o limite da Tolerância é a estupidez". Já tinha sido proferida a clássica piada do "eu sou tão tolerante que, sendo benfiquista, estou bem e contente aqui entre dois sportinguistas" (ou vice-versa) - Nota para os leitores do Brasil, talvez desnecessária, mas à cautela colocada: Benfica e Sporting são os dois grandes clubes desportivos de Lisboa, mantendo entre si assinalável rivalidade, tal como, imagino eu, sucede no Rio de Janeiro em relação ao Fla-Flu ou, em Porto Alegre, em relação ao Grémio e ao Internacional. 

Foi então que o Hélder se levantou. O Hélder é um dos fundadores da Loja. Está muito bem conservado para a idade. Ninguém lhe dá os setenta anos que tem - e se, alguém, porventura, quisesse dá-los, o Hélder de imediato os recusaria, dizendo que já os tinha, não precisava de outros... É um espírito culto, sagaz, sabedor e bem-disposto, que maneja com invulgar à-vontade a difícil arte da ironia. Seja sobre que assunto for, quando o Hélder fala, todos lhe prestam atenção. Mas então quando o Hélder se levanta para falar, todas as conversas cruzadas se suspendem, todos os olhares o fixam e o silêncio expectante instala-se em menos de um ai! 

O Hélder levantou-se, pois - e o silêncio instalou-se! Mas, para adensar o suspense, o Hélder não se limitou a levantar-se. Pediu ao Irmão que se sentava ao seu lado direito para se levantar também, dizendo que precisava dele de pé para que todos entendessem bem o que ele ia dizer! Não há dúvida que o Hélder é mestre em garantir toda a atenção de toda a gente na sala. E garantiu-a automaticamente! Todos aguardavam expectantes o que ele ia dizer, de pé e com um Irmão de pé ao seu lado! 

Disse então o Hélder mais ou menos isto:

 - Querem os meus prezados Irmãos saber quais os limites da Tolerância? Então vou explicar-vos com um exemplo claro, que todos vós vão entender.

- Como sabem, ao longo dos meus mais de cinquenta anos de trabalho, conheci muita gente e muita gente me conhece. São tantos e em tantos lados que, às vezes nem já reconheço todos. Mas é frequente aparecer alguém que me conhece e, saudando-me, "então como está o meu amigo", me dá uma pequena pancada amigável no ombro - e o Hélder exemplifica, dando uma pequena pancada na omoplata esquerda do Irmão que colocara de pé ao seu lado direito.

- Eu claro que tolero isso. É normal; é até simpático. E prossegue:

- Àqueles que me conhecem melhor, que são meus amigos, até tolero quando me saúdam, "Bons olhos te vejam...", e me dão uma pancada amigável no meio das costas  - e o Hélder continua a exemplificar dando uma pequena pancada na zona lombar do Irmão ao seu lado.

- Tolero isso também com toda a normalidade.

De seguida, placidamente, conclui:

MAS O LIMITE DA TOLERÂNCIA ESTÁ NO CINTO!!!!!

Gargalhada imediata, geral e prolongada! 

Ou muito me engano  ou esta é daquelas frases que vai fazer escola e ser muitas vezes citada... Se a ouvirem, ficam a saber a sua origem!

Rui Bandeira

06 novembro 2013

O Dever, caminho para a realização



Os maçons falam muito de Dever. É natural. O aperfeiçoamento individual a que se dedicam implica, inevitavelmente, que identifiquem o que têm a corrigir e definam como fazer a correção, isto é, o que se deve fazer para melhorar.

O caminho do maçom não é uma avenida de direitos, é uma vereda de deveres a cumprir. Mais: um conjunto de deveres que o maçom escolhe cumprir.

Na ética maçónica, em primeiro lugar vem a obrigação, o cumprimento dos deveres - só depois se atenta nos direitos. Porque o caminho é este, não há constrangimentos nem vergonhas na reclamação ou no exercício dos direitos, porque se interiorizou que estes são o reverso correspondente aos deveres que se cumprem. Assim, o cumprimento do dever é preâmbulo do exercício do direito - nunca o oposto.

Esta postura, que é o oposto do facilitismo e do hedonismo tão propalados por certos media comummente referidos de cor-de-rosa, que insidiosamente vão influenciando as mentes mais frágeis ou menos avisadas, é, no entanto, a mais consistente com as caraterísticas da espécie humana - as caraterísticas que nos permitiram evoluir, descer das árvores, deixar de ser meros caçadores-recoletores, nos possibilitaram aprender a produzir o que necessitamos para consumir e até mais do que aquilo que necessitamos, enfim, o que nos fez chegar, como espécie, ao estádio atual (no melhor e no pior...) e nos fará, creio-o firmemente, evoluir sempre mais e mais.

Ao contrário do que se possa levemente pensar, desde a mais tenra infância que o bicho-homem valoriza mais o que deve fazer, o que esforçadamente conquista, o que trabalhosamente obtém, do que aquilo que recebe sem esforço, fonte porventura de prazer imediato, mas arbusto sem raiz sólida para segurar o interesse por muito tempo. Todos aqueles que educam crianças verificam que, ao contrário do que as próprias julgam, elas não apreciam tanto assim - e, no fundo, temem - a liberdade total, a possibilidade de fazerem o que querem, quando querem, como querem. Se isso lhes for temporariamente possibilitado, poderão extasiar-se perante a ausência de limites, mas não tarda muito que procurem o aconchego, a segurança, a certeza das fronteiras, dos limites, das restrições - contra as quais tanto refilam, mas que tão securizantes são. Afinal de contas, quando não há limites, como se pode transgredir? Como se pode forçar barreira inexistente para ir além dela? E o crescimento, a evolução humana, da criança como da espécie, é feito de transgressões, de ultrapassagens de barreiras, de partidas para o incerto apenas possíveis porque se sabe que, se e quando necessário, se pode recuar e voltar para o certo e seguro...

O dever é, pois, essencial para a espécie humana. Para o cumprir e, por vezes, para o transgredir, aceitando os riscos e as consequências, mas também buscando o além para lá do horizonte...

Os direitos possibilitam-nos satisfação e conforto, mas são redutores, limitadores, meras pausas agradáveis, obviamente necessárias, mas afinal fatores de simples manutenção, não de conquista ou avanço. Os direitos gozam-se e, ao gozarem-se, fica-se - não se vai, nem se avança. É no cumprimento do dever, com o esforço e o custo que isso necessariamente implica, que se avança, se conquista, se constrói, se vai além.

Gozar os direitos é obviamente bom e agradável. Mas, bem vistas as coisas, cumprir os deveres, ainda que  tal implicando trabalho, custo, esforço, é melhor. Porque no fim do cumprimento do dever acaba por estar sempre um prémio. Por vezes de simples, mas saborosa, satisfação. Outras vezes com vitórias, com prazeres, com ganhos que não se teria se se tivesse mantido no simples gozo dos direitos que já se tinha, sem mais nada fazer. A áurea mediocridade pode ter brilho - mas não deixa de continuar a ser mediocridade...

Os maçons falam muito do Dever, dão atenção aos seus deveres, cumprem os seus deveres. Não por serem masoquistas. Pelo contrário: por entenderem que é assim que conseguem realizar-se. E a realização pessoal é mais do que meio caminho andado para a felicidade...

Rui Bandeira  

30 outubro 2013

Lavagem solidária e cómoda


A associação CAIS desde 1994 que vem efetuando um assinalável trabalho de apoio à reinserção social de sem-abrigo.

O mais conhecido projeto desta associação é a revista com o mesmo nome, CAIS, cuja forma de distribuição é, a meu ver, exemplar no auxílio à recuperação da dignidade de quem , por erros próprios ou desafortunados golpes do destino, caiu numa situação de desamparo e exclusão social. A revista é exclusivamente vendida por sem-abrigo e outras pessoas em risco, mediante a assunção de rigoroso compromisso de cumprimento de regras de conduta, entre as quais a venda da revista sempre devidamente identificado como vendedor autorizado pela CAIS, manutenção de higiene e limpeza pessoal e de vestuário e renúncia à mendicidade.

O preço de capa da revista CAIS são dois euros e 70 % dele reverte para o vendedor. Habituei-me a adquirir as edições da revista que vão sendo publicadas, como uma pequena e insignificante forma de contribuir para a reinserção de quem caiu fundo e se tenta reerguer. Aprecio fundamentalmente a DIGNIDADE da forma de auxílio: não se dá, não se faz caridadezinha, não se tem a postura de ajuda ou dádiva ao pobrezinho; fornece-se um meio, um apoio para que alguém (muito) necessitado possa, pelo seu trabalho, esforçado e honesto, obter uma remuneração - e não esmolas. A meu ver, tão ou mais importante do que o provento material obtido  (obviamente indispensável) é a recuperação da Dignidade que se proporciona.

A associação CAIS prossegue agora um outro meritório projeto, o CaHO, ou Programa Capacitar Hoje, no sentido da integração, em contexto laboral, de pessoas em situação extrema de fragilidade social. Foi criada a Bolsa de Trabalho CAIS, especificamente dedicada à formação e especialização profissionais. Os beneficiários deste projeto de inserção na vida nativa são pagos à tarefa, recebendo uma justa remuneração pelo trabalho desempenhado. Iniciou-se o projeto com as valências de lavagem manual e aspiração de automóveis e de engraxadores de sapatos.

Cada candidato ao programa recebe uma formação profissional de base, de 50 horas, que inclui aspetos essenciais para quem necessita de recuperar o seu espaço na sociedade: (1) Saber ser ser um profissional - direitos, deveres e responsabilidades; (2) Saber estar - treino de competências pessoais e sociais; (3) Saber fazer - formação profissionalizante, dentro das áreas de oferta da Bolsa de Trabalho CAIS.

Mais uma vez, importa sublinhar que não se faz assistência ou caridade, proporciona-se capacidades e meios de recuperação da Dignidade de cada um prover à sua subsistência através do seu trabalho. 

O projeto é patrocinado por algumas empresas e instituições. Mas, sobretudo, é a demonstração de que a Solidariedade só faz sentido se acompanhada - sempre - do respeito pela dignidade de quem transitoriamente está na mó de baixo.

Está já em execução, na zona de Lisboa, a valência de lavagem manual e aspiração de carros, organizada de uma forma cómoda e a preço razoável para o consumidor. Empresas e particulares podem encomendar a lavagem manual de veículos, com o custo de onze euros por veículo, ou a lavagem manual e aspiração pelo custo por veículo de quinze euros, em ambos os casos com IVA incluído e entrega de fatura.

Os profissionais formados e enquadrados pela CAIS deslocam-se, com o equipamento necessário, onde estiver(em) o(s) veículo(s) a lavar e aspirar e garantem que o serviço de limpeza, que é executado em uma hora a hora e meia, é realizado sem sujar o local e sem desperdício de água.

Cada lavador recebe 60 % do total faturado com o seu trabalho.

Resumindo: prático, cómodo, ecológico, a preço razoável e, sobretudo, justo e SOLIDÁRIO.

Para agendar o serviço, deve-se contactar a CAIS Lavagem Auto através do telefone número 218 369 000 ou do endereço de correio eletrónico caisfaz@cais.pt.

Sugiro a todos os que residem ou trabalham na zona de Lisboa que tomem nota e, sobretudo, utilizem estes contactos. Eu já tenho este número de telefone na memória do meu telemóvel e tenciono usá-lo muitas vezes. Fico feliz por dar o meu contributo, enquanto cliente e consumidor a um projeto inteligentemente solidário - e com a vantagem de finalmente o meu carro deixar de ser o mais sujo das redondezas...

Os elementos para elaboração deste texto, bem como a imagem que o ilustra, foram recolhidos em www.cais.pt

Rui Bandeira  

23 outubro 2013

O maçom, a vida e a morte



Só pode ser admitido maçom regular quem seja crente num Criador, qualquer que seja a sua conceção Dele, e creia na vida para além desta vida. Só assim faz sentido o processo iniciático maçónico, só assim é profícuo o labor de análise, interpretação e aprofundamento da simbologia maçónica, alguma dela diretamente baseada em elementos extraídos de textos de natureza religiosa.

No seu processo de construção de si mesmo segundo o método maçónico, o estudo, a meditação, a associação livre, a descoberta de significados dos significantes que são, afinal, os símbolos, o maçom, se bem fizer o seu trabalho, inevitavelmente que nalgum momento se confrontará com a busca do significado da Vida, do seu lugar no Mundo e na Vida, com a Vida ela mesma e com a morte do seu corpo físico.

Se bem faz o seu trabalho, o confronto com a morte física, à luz da sua crença na vida para além da vida e dos elementos colhidos nos seus estudos simbólicos, algo de muito positivo lhe traz: a perda do medo da morte! Pausada, calma e profundamente analisada a questão, quase que intuitiva é a conclusão de que a morte é simplesmente parte da vida, do percurso que efetua a centelha primordial que nos anima e que é o melhor de nós, que é, afinal o essencial de nós, a Vida em nós, que permanece para além da deterioração, desativação e destruição do invólucro meramente físico a que chamamos corpo. Porventura adquirirá mesmo a noção de que essa morte física é indispensável ao processo vital, à essência da vida, que é feita de energia e transformação e mudança.

A perda do medo da morte é uma imensa benesse conferida àquele que dela beneficia, por isso que o liberta para apreciar plenamente a Vida, vivê-la em pleno, colocando nos seus justos limites tudo o que de bom e tudo o que de mau se lhe depara.

A perda do medo da morte propicia enfim a Sabedoria para apreciar a Vida da melhor forma que se tem para tal: vivendo-a, sem constrangimentos, sem medos, sem dúvidas, sem interrogações sobre quanto durará o bem de que se desfruta, quanto se terá de suportar até superar o mal que se atravessa. É a perda do medo da morte que nos ilumina para o essencial significado da Vida: ela existe para ser vivida, para ser utilizada e modificada (na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma, disse-o, há muito, Lavoisier...), força perene essencial que existe e prossegue existindo através da sua contínua transformação.

A perda do medo da morte assegura-nos a Força para continuamente persistirmos na nossa melhoria, na nossa purificação, não porque interesse ao nosso corpo físico, mas porque disso beneficia a nossa centelha vital, que melhor evoluirá quanto mais beneficiar do que aprendemos, do que acrescentarmos eticamente a nós próprios e portanto a ela. A nossa melhoria, o nosso aperfeiçoamento ético liberta a nossa consciência para alturas que as grilhetas do egoísmo, da materialidade, dos vícios e paixões impedem que atinja. É a nossa Força nesse combate que constitui o cais de partida da nossa identidade para a viagem possibilitada pela purificação da nossa essência, que terá lugar após a libertação do peso do nosso corpo físico (será isto o Paraíso, a Salvação?). Pelo contrário, a insuficiente libertação da nossa essência do peso do vício e das paixões, do Mal enfim, inibirá essa nossa essência de subir tão alto e ir tão longe como poderia ir se liberta, quiçá limitando o valor futuro da nossa vida que permanece, quiçá impondo a continuação de esforços de purificação e transformação (será isso o Inferno, a Perdição?)

A perda do medo da Morte permite-nos enfim desfrutar plenamente da Beleza da Vida - sem constrangimentos, sem temores, sem interrogações. Como diz a canção, o amor poderá não ser eterno, mas que seja imenso enquanto dure. Apreciar a Beleza da Vida sem temer ou lamentar a mudança, que algum dia inevitavelmente ocorrerá, permite a suprema satisfação de sentir realmente toda a beleza que existe na Beleza, toda a vida que há na Vida. Verdadeiramente. Um segundo que seja que se consiga ter deste clímax vale por toda uma vida...

Encarar a morte à luz da Vida e, portanto, deixar de a temer, liberta o nosso Ser para além dos constrangimentos da materialidade, reduz o Ter à sua real insignificância, dá-nos finalmente condições para, se tivermos atenção no momento preciso e irrepetível que antecipadamente desconhecemos quando surgirá, podermos entrever a Luz - a Luz da compreensão do significado da Vida e da Criação, da sua existência e da direção e objetivo do seu Caminho. Poucos, muito poucos, ainda que tendo trabalhado bem, ainda que persistentemente tendo polido sua Pedra, têm a atenção focada na direção certa quando esse inefável e intemporal momento passa. Esses são os afortunados que de tudo se despojaram e afinal tudo ganham ainda neste plano da existência. Esses passam verdadeiramente pelo buraco da agulha, porque o peso das suas paixões é inferior ao de uma pena e nada os distraiu. Esses aproveitam a Vida tão plenamente que o comum de nós nem sequer suspeita da possibilidade de existência desse aproveitamento. Esses, sim, são templos vivos onde se acolhe o mais essencial do essencial: tão só e simplesmente, a essência da Vida (será isto afinal o elo ao divino?).

O maçom que faz bem o seu trabalho perde o medo da morte e pode viver plenamente a Vida. Mais não lhe é exigível. O resto que porventura venha, se vier, vem por acréscimo...         

Rui Bandeira

16 outubro 2013

Os construtores da Utopia



Desde que, no século XVI, Thomas More inventou a palavra e dela fez título de uma das suas obras que se designa por Utopia a sociedade ideal, perfeita.

Em termos sociais, os maçons procuram contribuir para a construção dessa Utopia. Fazem-no desde logo procurando melhorar a qualidade dos materiais de que se fazem todas as sociedades: os homens, suas ideias e suas ações.

Nenhuma sociedade organizada, qualificada e funcionando com um exigível nível mínimo de organização, qualidade, liberdade e eficiência pode assentar em pessoas desqualificadas, seja em termos de conhecimentos e preparação, seja do ponto de vista da Moral e dos Valores inerentes a uma sã, agradável e produtiva vida em comum.

Não há Valores sociais que se fundem perenemente em homens de baixo caráter e inferiores qualificações pessoais e relacionais. Homens apenas primários, sem capacidade para ver e agir para além dos seus interesses pessoais egoísticos e imediatos não geram nem acalentam valores essenciais a qualquer sociedade eticamente relevante. 

As sociedades são compostas por pessoas. Quanto melhores forem estas, melhores podem ser as Sociedades, os seus valores, os seus níveis de organização e cooperação. Por isso, ao construir-se a si próprio, ao melhorar-se a si mesmo, cada maçom está também a contribuir para a melhoria da sociedade em que se insere, a favorecer um pequeno, quiçá quase insensível, mas sempre significante, avanço da sociedade em que se insere na construção da Utopia.

Mas a Utopia não se constrói apenas com os materiais, as pessoas. Essa construção necessita também de ferramentas, os valores. Neste campo, muito se avançou, na parte mais desenvolvida do Mundo: a Liberdade é reconhecida como indispensável à existência de uma Sociedade digna dos seus cidadãos; a Igualdade é uma aspiração que se busca concretizar mais e mais; a Fraternidade emerge como uma condição indispensável à coesão social; a Tolerância emerge cada vez mais como uma necessidade; a Justiça consolida-se como uma essencialidade; a Solidariedade aparece como um elemento indispensável à reação comum ao infortúnio, ao cataclismo ou simplesmente à adversidade. Paulatinamente, estes e outros essenciais valores adquirem o estatuto da naturalidade e ascendem ao patamar da indispensabilidade. Mas muito ainda há e haverá ainda a fazer, para que esses valores sejam efetivamente para todos tão naturais como o ato de respirar.

Porém, a construção social não se basta apenas com bons materiais e sólidas ferramentas. Há que limpar o espaço, que afastar tudo o que prejudique a edificação que se busca. Há, assim, que lutar com, afastar, remover, os preconceitos que tolhem o avanço comum - mas sem os substituir por novos preconceitos, quiçá de sinal contrário. Também neste campo muito se avançou. Também aqui muito mais há ainda a fazer. O racismo perdeu o estatuto de naturalidade que ainda há cerca de meio século (tão pouco tempo ainda; não mais de duas gerações...) detinha em sociedades tão importantes como, por exemplo, alguns Estados dos Estados Unidos. Mas subsiste teimosamente em muitas mentes e manifesta-se ainda insidiosamente em demasiadas situações e abertamente numas quantas delas! A igualdade entre sexos evoluiu notavelmente no último maio século, mas ainda é, manifestamente, um valor ainda frágil, que muitos afastam sem rebuço à menor dificuldade social (basta ver as diferentes taxas de desemprego e os não coincidentes níveis de remuneração entre os dois sexos). A Igualdade afirmou-se quase universalmente como princípio absoluto na teoria, mas é muito insuficientemente ainda na realidade concretizada na prática, continuando - infelizmente! - ainda a ser válida a frase de O Triunfo dos Porcos, de George Orwell, de que "Todos são iguais... mas há alguns mais iguais do que os outros". Os fundamentalismos existem, estão à vista de todos e não são extirpáveis por decreto.

 Muito se andou, mas muito caminho está ainda por percorrer, se se quiser ficar perto de ver ao longe uma Sociedade que possa aspirar a comparar-se levemente com a Utopia... E esse caminho tem de ser percorrido passo a passo, incansavelmente, inabalavelmente, persistentemente, por cada um que aspira à Utopia.

Ao dedicarem-se ao seu aperfeiçoamento, os maçons fazem esse caminho, dão o seu contributo à Sociedade para a evolução desta. O que cada um dá é ínfimo, quase imensurável, no contexto da imensidão do que é necessário. Mas o conjunto do que todos proporcionam possibilita o avanço, ajuda a que a evolução se torne visível.

Os maçons são, por natureza, construtores da Utopia. Não se afirmam, nem pretendem ser os únicos. Todos não são demais, que a tarefa é enorme e prolongada!

Rui Bandeira