Mais uma história edificante que recebi por correio electrónico e que adapto para este espaço:
Um homem muito rico e o seu filho tinham uma grande paixão pelas artes. Possuíam uma valiosíssima e variada colecção de pintura, onde quase todos os grandes mestres, de Rafael a Picasso, de Leonardo a Dali, de Rembrandt a Warhol estavam representados. E passavam juntos horas e horas a admirar as fantásticas obras de arte.
Por desgraça do destino e loucura dos homens, o filho foi para a guerra. Numa batalha, enquanto tentava resgatar um outro soldado ferido, foi atingido e morreu. O pai sofreu profundamente a morte do seu único filho.
Um mês mais tarde, alguém bateu à sua porta. Era um jovem, que trazia uma grande tela nas mãos e que disse ao lutuoso pai:
- O senhor não me conhece, mas eu sou o soldado por quem o seu filho deu a vida. Nesse dia terrível, ele salvou muitas vidas. Estava a abrigar-me num local seguro, quando uma bala lhe atravessou o peito. Morreu instantaneamente. Ele falava muito de si e do seu amor pelas artes.
E, entregando ao aturdido pai a tela que levava, acrescentou:
- Sei que não é grande coisa. Eu não sou grande artista. Mas sei que o seu filho gostaria que eu lhe desse isto.
O homem abriu a tela e viu que era um retrato do seu filho, pintado pelo jovem soldado. Admirou a forma como a personalidade do seu filho fora captada na tela pelo jovem soldado. Quis pagá-la ao seu autor. Mas este recusou. Era um presente, o mínimo que poderia fazer em reconhecimento de quem lhe salvara a vida.
O pai mandou emoldurar a tela e colocou o quadro, de forma bem visível, junto da sua extraordinária colecção de pintura. Sempre que alguém visitava a sua casa, ele mostrava, orgulhoso, o quadro que retratava o filho, antes de mostrar a sua rica colecção de pinturas de famosíssimos pintores.
Algum tempo depois, o homem morreu. O seu testamenteiro anunciou um leilão, onde seria vendida a sua valiosa colecção de pintura. No dia marcado, muita gente e gente muito importante compareceu no local do leilão, muitos antecipando a possibilidade de adquirirem obras de arte de artistas famosos.
Iniciado o leilão, a primeira obra a ser exposta para ser licitado foi o quadro do retrato do filho, que o jovem soldado pintara.
O leiloeiro começou:
- A primeira obra a ser leiloada é este quadro intitulado "O Filho". Não tem base de licitação fixada. Quem dá o primeiro lance?
Silêncio na sala!
O leiloeiro insistiu:
- Quem faz uma oferta por este quadro?
Do fundo da sala, alguém gritou:
- Ninguém se interessa por isso, pintado por quem ninguém conhece! Retire-o do leilão e passe às verdadeiras obras dos artistas famosos! É por essas que todos aguardamos!
O leiloeiro, no entanto, persistiu:
- Quem oferece algo por esta pintura? Duzentos euros? Cem euros?
A sala explodiu em protestos:
- Não viemos cá por essa coisa! Viemos pelas obras de arte a sério: os Van Gogh, os Picasso, os Renoir...
Imperturbável, o leiloeiro continuava a deixar a pergunta, qual ladainha:
- Quem oferece um lance pelo quadro "O Filho"?
Finalmente, de um canto da sala, uma voz tímida disse:
- Eu ofereço dez euros pelo quadro.
Era o jardineiro da propriedade. Era um homem pobre, não podia dar mais. E não se teria atrevido a fazer qualquer oferta, se alguém se tivesse interessado pelo quadro.
O leiloeiro prosseguiu no seu trabalho:
- Há uma oferta de dez euros. Alguém dá vinte?
Mas ninguém fez mais qualquer lance. Aliás, todos pareciam aliviados por finalmente o quadro pintado por um desconhecido ter sido licitado e poder-se finalmente prosseguir o leilão, com as obras de arte a sério!
O leiloeiro, profissional, prosseguiu:
_ Há uma oferta de dez euros. Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três, vendido por dez euros.
E bateu o martelo, assinalando o fim da licitação pelo quadro "O Filho".
Um rumor agitou a sala. Enfim, ia começar o leilão a sério!
Porém, o leiloeiro, largando o martelo, anunciou:
- Senhoras e senhores, muito obrigado pela vossa comparência, o leilão terminou!
Um coro de vozes indignadas fez-se ouvir:
Terminou?!!? Então as pinturas célebres? O Miró? O Modigliani? O Grão Vasco? O...?
O tumulto crescia. Toda aquela importante gente e gente de importância manifestava um indignado ultraje e irada decepção.
Então, vindo de um discreto canto da sala, onde sempre estivera, o testamenteiro tomou a palavra e esclareceu:
- O testamento do dono da fabulosa colecção de pintura por que aqui estais continha uma cláusula, com instruções para ser mantida rigorosamente em segredo até este preciso momento. Embora eu devesse anunciar o leilão de toda a colecção, só o quadro "O Filho" seria posto a licitação. Quem o arrematasse, ficaria com toda a colecção e herdaria todas as demais propriedades e meios de fortuna do falecido. O senhor que arrematou "O Filho" fica com tudo!
Nem sempre as coisas famosas e consideradas são as mais importantes. Todos os trabalhos, ainda que modestos, ainda que executados por desconhecidos, devem ser valorados e apreciados. Esta história é isso mesmo, uma história. Mas tem o mérito de chamar a atenção para a vacuidade muitas vezes inerente à fama, à glória, ao reconhecimento público. O famoso deve a sua fama a um misto de acaso com trabalho e valor. Outros também trabalharão tanto como ele e terão uma valia equivalente à dele, mas o acaso promoveu um e não o outro. O acaso de uma melhor aparência ou de um encontro certo, na hora certa, com a pessoa adequada. Admiremos o famoso. Normalmente, essa fama tem alguma valia subjacente. Mas não ignoremos o desconhecido, não desdenhemos de sua valia, só porque as luzes dos holofotes não caem sobre ele. Afinal de contas, todo o famoso começou por ser um desconhecido!
E, sobretudo, na nossa actividade, trabalhemos, trabalhemos sempre o melhor possível, demos sempre o melhor de nós, façamos o melhor que formos capazes. Devemos a nós próprios executar o melhor possível o nosso trabalho e dar o melhor uso que conseguirmos ao nosso valor. O resto, se vier, vem por acréscimo - e talvez por acaso...
(Ah! E não se enganem: a imagem que ilustra este texto não é o retrato do Filho, pintado por um desconhecido. Esse não consegui localizar... Portanto, optei por uma reprodução de... um auto-retrato de Picasso!).
Rui Bandeira