26 março 2008

O silêncio do Companheiro

O Companheiro continua ainda sujeito à regra do silêncio. Não intervém em Loja, salvo quando é dispensado do dever de silêncio para apresentar uma prancha.

Em relação aos Aprendizes, já no texto O silêncio do Aprendiz procurei explicar a razão de tal determinação e as vantagens que a mesma traz para o Aprendiz. As mesmas razões valem para o Companheiro. Embora num estádio mais avançado, o Companheiro encontra-se ainda num processo de evolução, de formação. O silêncio permite-lhe a necessária concentração. A desnecessidade de intervir liberta-o para mais bem se focar no seu trabalho. E mais rapidamente estará pronto para a Elevação a Mestre.

Um Companheiro já não é um Aprendiz e por isso efectua já um trabalho diferente. E percebe que não é já tão proximamente acompanhado. A sua autonomia na Arte Real vai-se criando, a sua evolução vai depender cada vez mais de si mesmo e cada vez menos do auxílio dos Mestres. Sente-se cada vez mais próximo destes, cada vez mais como estes. E assim deve ser. O objectivo é que cada maçon seja Mestre de si mesmo, por si mesmo, com as suas próprias forças e capacidades.

Mas um Companheiro não é ainda um Mestre. Ainda tem um caminho a percorrer. Cada vez se sente mais seguro nesse caminho, mas ainda tem de o fazer. Por isso, ainda não tem a prerrogativa, dos Mestres, do uso da palavra em sessão.

O silêncio do Companheiro vai-se-lhe tornando progressivamente mais penoso. Porque se vai sentindo mais capaz. Porque, em cada sessão vai cada vez mais sentindo que teria algo de útil a dizer, a contribuir. Mas a penosidade é um preço que normalmente se tem de pagar para atingir o que vale a pena!

Também para a Loja cada vez é mais penoso o silêncio do Companheiro. Dia a dia, todos vão sentindo a sua evolução. Dia a dia, todos vão notando que teriam algo a ganhar com a contribuição deste Irmão. Dia a dia vêem o maçon iluminar-se e o profano de antanho esmaecer. Dia a dia anseiam pelo dia em que finalmente ouvirão o maçon em Loja. Mas esse é o preço que o grupo deve pagar para ter mais um elemento válido e que cooperará no aperfeiçoamento de todos e de cada um.

O Companheiro e a Loja vão sentindo que aquele cada vez soletra menos e lê e escreve melhor. Mas um e outra esperam pacientemente pelo momento em que a voz se erguerá lendo com a perfeição que humanamente seja possível atingir. Porque um e outra não desejam, não buscam menos do que isso!

O silêncio do Companheiro é uma ajuda no início desta fase, um desconforto a meio, um fardo no final. Todos o percebemos. E quando vemos esse fardo a pesar, sabemos que a hora está a chegar, que a crisálida vai muito brevemente metamorfosear-se. E a Elevação acontece naturalmente.

O silêncio do Companheiro é a sua preparação para a sua Elevação a Mestre. Para que, quando tiver direito a usar da palavra, já saiba quando se deve calar! Para que entenda perfeitamente o valor da Palavra e a valia do Silêncio. Então estará pronto!

Rui Bandeira

25 março 2008

A Regra de Ouro

Para os cristãos, a semana que passou foi a Semana Santa. Outras religiões têm dias, semanas meses ou outros períodos que consideram santos, sagrados ou de assinalar. Faz parte da convicção religiosa assinalar, marcar determinados períodos de tempo destinados a condutas e celebrações que buscam a aproximação do Homem com a Divindade.

É uma boa ocasião para publicar aqui no A Partir Pedra uma imagem que me mandou o Simple Aureole. Como ele, considero-a significativa e interessante. E um bom exemplo da razão por que a Maçonaria considera igualmente respeitáveis todas as convicções religiosas.

A Regra de Ouro, ou ética da reciprocidade, como muito bem a designa o Simple Aureole, mostra-se presente nas principais convicções religiosas do Mundo. Monoteístas, politeístas, deístas, teístas, ocidentais, orientais. A imagem acima reproduzida é elucidativa (clicar sobre a imagem para a aumentar). Abaixo, fica a tradução do texto. Traduzo da esquerda para a direita, de cima para baixo. A ordem de apresentação das religiões segue apenas esta ordem "gráfica". Não ilustra, nem defende, nem apresenta qualquer ordem de importância, de relevância, de concordância. Penso que ninguém teria dúvidas, mas é sempre bom deixar ficar claro...

Fé Baha'i - Não imponhas a ninguém um fardo que não desejas que seja imposto a ti e não desejes para ninguém o que não desejas para ti mesmo. (Baha'u'llah, Gleanings)

Hinduísmo - Este é a todo o dever: não faças aos outros o que causaria dor se feito a ti. (Mahabharata 5:1517)

Budismo - Não trates os outros de maneira que tu próprio achas que te feriria. (Udana-Varga 5.18)

Confucionismo - Uma palavra que resume a base de toda a boa conduta ... Gentileza agradável. Não faças aos outros aquilo que não queres seja feito a ti mesmo. (Confucius, Analects 15.23)

Islão - E nenhum de vós realmente é crente até que deseje para os outros aquilo que deseja para si mesmo. (O Profeta Maomé, Hadith)

Taoísmo - Considera o ganho do teu vizinho como o teu próprio ganho, e o prejuízo do teu vizinho como o teu próprio prejuízo. (T'ai ShangKan YingP'ien, 213-218)

Judaísmo - O que é odioso para ti, não o faças ao teu vizinho. Esta é toda a Torah; tudo o resto é comentário. (Hillel, Talmud, Shabbat 31a)

Sikhismo - Não sou um estranho para ninguém, e ninguém é um estranho para mim. Na verdade, sou um amigo de todos. (Guru Granth Sahib.pg. 1299)

Jainismo - Devemos tratar todas as criaturas do mundo como gostaríamos de ser tratados. (Mahavira, Sutrakritanga)

Zoroastrianismo - Não faças aos outros o que for injurioso para ti. (Shayast-na-Shayast 13.29)

Espiritualidade Nativa Americana - Estamos tão vivos quanto mantivermos a Terra viva. (Chefe Dan George)

Unitarianismo - Afirmamos e promovemos o respeito pela rede interdependente de toda a existência, de que somos uma parte. (Princípio unitariano)

Cristianismo - Em tudo, faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti; esta é a lei e os profetas (Jesus, Mateus, 7:12)

Não sei se a Regra é de Ouro. Mas parece-me integrar uma Ética Universal...

Rui Bandeira

24 março 2008

+ Ambiente

Volta não volta... volta o tema.
É incontornável ! É impossível passar-lhe ao lado ! Cada vez mais… Cada dia que passa, cada descuido que temos, cada papel fora do “papelão”, cada árvore a menos.

Gostaria que o texto estivesse em português. Não está, mas o “espanhol” é bem compreensível e eu não tenho outra versão do vídeo. Fica mais um grito de alarme.
Sou otimista em relação e esta matéria (reparem que até já escrevo sob as regras do novo acordo ortográfico) como em relação a quase tudo, mas… mas não defendo o “fia-te na virgem e não corras …”
Mesmo otimista há que actuar. Há que correr !
Continuo a acreditar na reciclagem, dos lixos, mas principalmente na dos homens.

É cá uma fezada…

- Não vale a pena viver se não acreditarmos que há uma salvação para o mundo. (Prof. Agostinho da Silva)

JPSetúbal

21 março 2008

21 da Março - POESIA (?)


Depois de tanto tempo, para o A-Partir-Pedra foram séculos (!), de ausência conjunta dos "posteiros" domésticos parece-me que seria excessivamente excessivo (!) não termos hoje, aqui, ao menos um cheirinho de poesia, neste dia que se resolveu para recordar os poetas (?) e que é simultâneamente o "Dia da Árvora" e o primeiro da Primavera...
É certamente o dia ideal para comemorar a "Prima Vera"... mas sendo essa uma comemoração demasiadamente terrena e material entenderam os nossos "maiores (?)", salvo sejam, dedicar este dia a algo bem mais espiritual que é a poesia.
Mais espiritual quando é, porque sei de alguns "poetas" que andam por aí e que são tão calhordas que não há poema que os salve.
Depois temos também o dia da árvore. Cá por mim faço o que posso, ou seja, não faço fogo na floresta e ontem plantei duas árvores. Bem, aqui para nós não foram mesmo duas árvores, antes duas plantinhas que, se pegarem, serão trepadeiras.
Mas também este acaso tem a ver com o dia porque também conheço por aí algumas trepadeiras que não interessam a ninguém. Veremos se as minhas pegam e dão algum gozo a quem vier a olhar para elas.

Posto este intróito, aqui Vos deixo algumas pérolas, mais conhecidas umas, certamente menos outras, mas interessantes todas.

A POESIA
I
Correu vales e montes a mentira,
Montada no corcel da fantasia…
Mas ela vai cair, pressente o dia
Em que há-de sucumbir, bufando em ira.
Que lhe teça a mortalha a nossa Lira,
Que seja a sua morte a poesia!...

II
E, em vez de se cantar a formosura
Da mulher elegante e de bom porte;
Cante-se quem motivou a desventura
Daqueles que merecem melhor sorte
- E que, cavando a própria sepultura,
Buscando a vida, só acham a morte!...

(António Aleixo)


OS PÉS AFASTADOS

Os pés afastados,
as coxas em cunha,
joelhos levantados,

a emoção desperta,
a boca entreaberta,

os olhos sem ver,
o corpo a tremer,
a cheia que vem…

… e foi assim,

no início e no fim,

que tu foste mãe!

(Martin Guia)

QUERIA

Queria viver dos teus beijos.
Queria viver do teu ar.
Queria sentir teus desejos.
Queria sentir teu amar.

Queria, queria, ó se queria,
Saber o que sentes por mim.
Para sentir que sentiria,
Que o amor não terá fim.

(Miguel Roza)

De “HANGAR DE SONHOS”

Cheguei há pouco à minha Ilha do Recolhimento. O navio que me trouxe regressa
agora. Já o vejo na busca sem fim do seu novo horizonte. Não aceitei retirar as minhas
malas. Os meus laços com a memória. Não tem valia nem uso a bagagem que trazemos no porão quando aportamos à nossa Ilha do Recolhimento. A pergunta deixou de ser “Quem
sou ? para passar a ser Quem serei? Nem sequer identifico o que sinto. O navio que me
trouxe já não se avista do porto desta ilha onde me encontro. A minha Ilha do Recolhimento.
Sou aqui para sempre!

(Mário Máximo)

AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

(Fernando Pessoa)


Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo que sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

(Forbela Espanca)

SONETO
Meus dias de rapaz, de adolescente,
Abrem a boca a bocejar, sombrios:
Deslizam vagarosos, como os Rios,
Sucedem-se uns aos outros, igualmente.

Nunca desperto de manhã, contente.
Pálido sempre com os lábios frios,
Ora, desfiando os meus rosários pios...
Fora melhor dormir, eternamente!

Mas não ter eu aspirações vivazes,
E não ter como têm os mais rapazes,
Olhos boiados em sol, lábio vermelho!

Quero viver, eu sinto-o, mas não posso:
E não sei, sendo assim enquanto moço,
O que serei, então, depois de velho.

(António Nobre)

BUSQUE AMOR NOVAS ARTES

Busque Amor novas artes, novo engenho
Pera matar-me, e novas esquivanças,
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, enquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê,

Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como e dói não sei porquê.

(Luís de Camões)


JPSetúbal

17 março 2008

Outra vez "Estados Maçónicos da América"

O canal Infinito, incluído no conjunto de canais da grelha básica da TV Cabo, em Portugal, volta a emitir hoje, 17 de Março, a partir da 21 horas, com repetição a partir das 2,30 horas da madrugada de hoje para amanhã, o documentário "Estados Maçónicos da América", que faz parte de um conjunto de quatro documentários com o título genérico de "Sociedades Secretas".

Este documentário tinha já sido emitido pelo mesmo canal nos passados dias 16 e 17 de Outubro de 2007. Na ocasião, publiquei aqui no A Partir Pedra um comentário sobre ele, que agora reproduzo:

Afinal consegui ver o documentário. E gostei. É um documentário sério, bem feito e, sobretudo, com rigor factual. Com efeito, tanto quanto me pude aperceber, todos os factos ali mencionados são rigorosamente verdadeiros. Quanto à sua interpretação ou aos comentários em relação a eles produzidos, posso concordar ou discordar, achar que está certa ou errada, mas impõe-se reconhecer que a postura dos autores do documentário é equilibrada e sensata.

É certo que lá vieram à baila os símbolos maçónicos da nota de dólar e o projecto urbanístico de Washington e ainda o caso Morgan. Mas tudo isso veio a propósito, foi devidamente enquadrado e inserido num relato cronológico da instauração e evolução da Maçonaria em solo americano, feito com uma louvável objectividade jornalística.

Não lograram fugir à tentação de formular questões sensacionalistas e de verbalizar suspeitas sem fundamento? Não, não lograram. Mas o documentário é feito por quem está de fora da Maçonaria e para quem está de fora da Maçonaria. É natural que, por desconhecimento, tenham sido formuladas. É natural que quem está de fora se interrogue sobre o que realmente é a Maçonaria e sobre a razão da sua fama de secretismo. Se tal não nos agrada, somos nós, maçons, que temos de fazer alguma coisa em relação a isso, não quem está de fora e se interroga a nosso respeito.

É a nós, maçons, que cabe a tarefa de desmistificar a nossa fama de secretismo, elucidando sobre os nossos princípios, os nossos objectivos e sobre o nosso método. E também esclarecendo as razões porque não gostamos de divulgar as poucas coisas que não divulgamos. Há tempos, publiquei, aqui no A Partir Pedra, um texto em que, a propósito da Cerimónia de Iniciação, julgo ter esclarecido, de forma entendível por toda a gente, porque não divulgamos como é essa cerimónia. Qualquer pessoa de boa fé entende a lógica da razão apresentada e, assim, não alimenta suspeitas infundadas. Se assim nós, maçons, procedermos, se colocarmos à disposição do conhecimento público tudo aquilo que não é matéria reservada nossa e se, em relação a esta, dissermos claramente que é reservada e apresentarmos a razão por que o é, de forma clara e compreensível, faremos mais pelo derrubar dos preconceitos contra a Maçonaria do que com mil polémicas com os histéricos das teorias a conspiração...

O documentário em causa apresentou factos objectivamente verdadeiros. Efectuou análises sensatas e especulações compreensíveis. Referenciou, mais do que uma vez, a irrazoabilidade das teorias da conspiração e das posições anti-maçónicas dos fundamentalistas religiosos. Formulou perguntas que é natural que quem está de fora formule. É, em resumo, um trabalho sério e de qualidade. Se e quando o canal Infinito o retransmitir, ou o transmitir noutros pontos do globo, recomendo que seja visto por quem tem interesse pela Maçonaria.

Pois bem, a retransmissão é agora! Quem não viu ainda, aproveite agora para ver. Quem já viu, se tiver tempo e vontade, pode rever.

E agora despeço-me durante uma semana inteirinha, que tiro de férias e vou passear... Volto a escrever aqui, se nada o impedir, a partir de terça-feira, 25 de Março. Boa Páscoa a quem a celebra. Dias felizes para todos!

Rui Bandeira

15 março 2008

Loja Lessing 61 completa 128 anos hoje (13Março)

Ora cá temos os nossos Irmãos (duplamente !) Brasileiros em época de festa.

Não há muitas lojas maçónicas no mundo que se possam dar ao luxo de comemorar 128 anos, razão mais do que suficiente para enviarmos um TAF intercontinental a estes nossos irmãos, de parabéns pela data maravilhosa que comemoram.
Vão igualmente os votos de que o GADU proporcione a estes nossos Irmãos muitos mais anos de muito e bom trabalho maçónico.

Que a pedra trabalhada por Vós permita a edificação do templo que o Homem anseia e precisa.


Templo próprio começou a ser construído
em 1895 e é onde as reuniões ocorrem até hoje
Uma das lojas maçônicas mais antigas do Rio Grande do Sul completa hoje 128 anos: a Loja Lessing 61, de Santa Cruz do Sul. A história da maçonaria em Santa Cruz teve início bem antes da expedição do Brevê Constitutivo, documento que representa a Carta Constitutiva vinda do Poder Central – o Supremo Conselho do Grande Oriente do Brasil. Os membros já se reuniam através de triângulos maçônicos. De posse da carta, datada de 13 de março de 1880, fundou-se a Loja Lessing. Mesmo não possuindo templo, os integrantes trabalhavam nas dependências do Clube União. Seu primeiro mestre foi Friederich Wilhelm Bartholomay. Hoje a loja está subordinada às Grandes Lojas, cuja potência foi fundada em 1928. Em julho de 1895 começou a construção do templo próprio, onde até hoje os maçons se reúnem para suas reuniões, na Rua Tenente Coronel Brito. A inauguração do prédio ocorreu em junho de 1897. No ano seguinte foi fundada a Sociedade Beneficente Lessing, com o objetivo de administrar a sede da loja. O primeiro presidente foi Carlos Trein Filho. O nome Lessing veio do maçon alemão Gotthold
Lessing, nascido em 1729, na cidade de Kamenz. Foi dramaturgo, poeta e crítico, de família evangélica-luterana. Estudou Teologia e escreveu sua primeira obra literária, O Jovem Sábio, em 1748. Ele viveu até 1781.

JPSetúbal

14 março 2008

O Filho


Mais uma história edificante que recebi por correio electrónico e que adapto para este espaço:

Um homem muito rico e o seu filho tinham uma grande paixão pelas artes. Possuíam uma valiosíssima e variada colecção de pintura, onde quase todos os grandes mestres, de Rafael a Picasso, de Leonardo a Dali, de Rembrandt a Warhol estavam representados. E passavam juntos horas e horas a admirar as fantásticas obras de arte.

Por desgraça do destino e loucura dos homens, o filho foi para a guerra. Numa batalha, enquanto tentava resgatar um outro soldado ferido, foi atingido e morreu. O pai sofreu profundamente a morte do seu único filho.

Um mês mais tarde, alguém bateu à sua porta. Era um jovem, que trazia uma grande tela nas mãos e que disse ao lutuoso pai:

- O senhor não me conhece, mas eu sou o soldado por quem o seu filho deu a vida. Nesse dia terrível, ele salvou muitas vidas. Estava a abrigar-me num local seguro, quando uma bala lhe atravessou o peito. Morreu instantaneamente. Ele falava muito de si e do seu amor pelas artes.

E, entregando ao aturdido pai a tela que levava, acrescentou:

- Sei que não é grande coisa. Eu não sou grande artista. Mas sei que o seu filho gostaria que eu lhe desse isto.

O homem abriu a tela e viu que era um retrato do seu filho, pintado pelo jovem soldado. Admirou a forma como a personalidade do seu filho fora captada na tela pelo jovem soldado. Quis pagá-la ao seu autor. Mas este recusou. Era um presente, o mínimo que poderia fazer em reconhecimento de quem lhe salvara a vida.

O pai mandou emoldurar a tela e colocou o quadro, de forma bem visível, junto da sua extraordinária colecção de pintura. Sempre que alguém visitava a sua casa, ele mostrava, orgulhoso, o quadro que retratava o filho, antes de mostrar a sua rica colecção de pinturas de famosíssimos pintores.

Algum tempo depois, o homem morreu. O seu testamenteiro anunciou um leilão, onde seria vendida a sua valiosa colecção de pintura. No dia marcado, muita gente e gente muito importante compareceu no local do leilão, muitos antecipando a possibilidade de adquirirem obras de arte de artistas famosos.

Iniciado o leilão, a primeira obra a ser exposta para ser licitado foi o quadro do retrato do filho, que o jovem soldado pintara.

O leiloeiro começou:

- A primeira obra a ser leiloada é este quadro intitulado "O Filho". Não tem base de licitação fixada. Quem dá o primeiro lance?

Silêncio na sala!

O leiloeiro insistiu:

- Quem faz uma oferta por este quadro?

Do fundo da sala, alguém gritou:

- Ninguém se interessa por isso, pintado por quem ninguém conhece! Retire-o do leilão e passe às verdadeiras obras dos artistas famosos! É por essas que todos aguardamos!

O leiloeiro, no entanto, persistiu:

- Quem oferece algo por esta pintura? Duzentos euros? Cem euros?

A sala explodiu em protestos:

- Não viemos cá por essa coisa! Viemos pelas obras de arte a sério: os Van Gogh, os Picasso, os Renoir...

Imperturbável, o leiloeiro continuava a deixar a pergunta, qual ladainha:

- Quem oferece um lance pelo quadro "O Filho"?

Finalmente, de um canto da sala, uma voz tímida disse:

- Eu ofereço dez euros pelo quadro.

Era o jardineiro da propriedade. Era um homem pobre, não podia dar mais. E não se teria atrevido a fazer qualquer oferta, se alguém se tivesse interessado pelo quadro.

O leiloeiro prosseguiu no seu trabalho:

- Há uma oferta de dez euros. Alguém dá vinte?

Mas ninguém fez mais qualquer lance. Aliás, todos pareciam aliviados por finalmente o quadro pintado por um desconhecido ter sido licitado e poder-se finalmente prosseguir o leilão, com as obras de arte a sério!

O leiloeiro, profissional, prosseguiu:

_ Há uma oferta de dez euros. Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três, vendido por dez euros.

E bateu o martelo, assinalando o fim da licitação pelo quadro "O Filho".

Um rumor agitou a sala. Enfim, ia começar o leilão a sério!

Porém, o leiloeiro, largando o martelo, anunciou:

- Senhoras e senhores, muito obrigado pela vossa comparência, o leilão terminou!

Um coro de vozes indignadas fez-se ouvir:

Terminou?!!? Então as pinturas célebres? O Miró? O Modigliani? O Grão Vasco? O...?

O tumulto crescia. Toda aquela importante gente e gente de importância manifestava um indignado ultraje e irada decepção.

Então, vindo de um discreto canto da sala, onde sempre estivera, o testamenteiro tomou a palavra e esclareceu:

- O testamento do dono da fabulosa colecção de pintura por que aqui estais continha uma cláusula, com instruções para ser mantida rigorosamente em segredo até este preciso momento. Embora eu devesse anunciar o leilão de toda a colecção, só o quadro "O Filho" seria posto a licitação. Quem o arrematasse, ficaria com toda a colecção e herdaria todas as demais propriedades e meios de fortuna do falecido. O senhor que arrematou "O Filho" fica com tudo!

Nem sempre as coisas famosas e consideradas são as mais importantes. Todos os trabalhos, ainda que modestos, ainda que executados por desconhecidos, devem ser valorados e apreciados. Esta história é isso mesmo, uma história. Mas tem o mérito de chamar a atenção para a vacuidade muitas vezes inerente à fama, à glória, ao reconhecimento público. O famoso deve a sua fama a um misto de acaso com trabalho e valor. Outros também trabalharão tanto como ele e terão uma valia equivalente à dele, mas o acaso promoveu um e não o outro. O acaso de uma melhor aparência ou de um encontro certo, na hora certa, com a pessoa adequada. Admiremos o famoso. Normalmente, essa fama tem alguma valia subjacente. Mas não ignoremos o desconhecido, não desdenhemos de sua valia, só porque as luzes dos holofotes não caem sobre ele. Afinal de contas, todo o famoso começou por ser um desconhecido!

E, sobretudo, na nossa actividade, trabalhemos, trabalhemos sempre o melhor possível, demos sempre o melhor de nós, façamos o melhor que formos capazes. Devemos a nós próprios executar o melhor possível o nosso trabalho e dar o melhor uso que conseguirmos ao nosso valor. O resto, se vier, vem por acréscimo - e talvez por acaso...

(Ah! E não se enganem: a imagem que ilustra este texto não é o retrato do Filho, pintado por um desconhecido. Esse não consegui localizar... Portanto, optei por uma reprodução de... um auto-retrato de Picasso!).

Rui Bandeira