Uma loja maçónica não é uma tertúlia (II)
Dois grandes factores de distinção entre uma tertúlia e uma loja maçónica são o objetivo e forma da intervenção de cada um. Numa tertúlia as intervenções sucedem-se, e cada um vai tomando a palavra repetidamente tantas vezes quantas queira (ou lho permitam...), sucessivamente acrescentando ao que disse antes, refutando os argumentos deste ou daquele, e fortalecendo - ou alterando - a sua posição de cada vez que se dirige aos demais. Cada um vai tentando fazer prevalecer a sua posição através de argumentos e contra-argumentos ao que foi dito antes, esperando-se que, a partir de um certo ponto, se tenha atingido um equilíbrio em que já tudo foi dito e cada um (re)contruiu já a sua posição face ao assunto em debate.
Numa loja maçónica, porém, as coisas não poderiam ser mais diferentes. Começa por que, no que respeita cada assunto, cada um pode fazer apenas uma única intervenção - e só muito excecionalmente poderá fazer uma segunda, sempre muito curta, e apenas se absolutamente impreterível, como por exemplo para clarificar algo que não tenha sido dito da forma mais inteligível. Esta imposição obriga a que se tenha um cuidado multiplicado com aquilo que se diz, de forma a dizê-lo bem à primeira.
Há uma ordem estrita a ser seguida. Primeiro começa-se pelas colunas (do Norte e do Sul), para que os mestres maçons que aí se sentam possam, querendo, pedir a palavra. Depois de não haver mais pedidos de intervenção, os dois Vigilantes podem pedir a palavra para si mesmos, primeiro o 2º Vigilante e depois o 1º Vigilante. É então dada a indicação de que não há mais intervenções nas colunas, e esta passa ao Oriente, onde residem o Venerável Mestre, o Secretário, o Orador, o Ex-Venerável e eventuais visitas a quem tenha sido dada essa distinção. A palavra é dada, no Oriente, a quem quiser dela fazer uso, e o Venerável Mestre é o último a intervir. Caso esteja em causa uma decisão, esta poderá ser tomada pelo Venerável Mestre de imediato, ou este poderá consultar a Loja através de uma votação. De qualquer modo, a intervenção do Venerável Mestre deve ser sempre no sentido de procurar encontrar uma conclusão que seja harmoniosa para a loja, e com que a maioria se identifique.
Para além da forma, já exposta, há o objetivo. Idealmente, cada intervenção destinar-se-ia a que cada um, na medida em que considerasse ser isso útil, apresentasse a sua posição ou opinião a respeito do assunto em causa, e sem que o seu conteúdo fosse condicionado por ser a primeira ou a última intervenção a ser efetuada. O que se diz não deve ser dirigido a ninguém em particular, mas a toda a Loja, e não deveria sequer referir-se alguma intervenção anterior, mas apenas fazer-se referência ao tema que esteja em discussão. Não deve haver interpelações, refutações ou contraditório, uma vez que isso colocaria em desvantagem aquele que já fez a sua intervenção e não pode agora responder. Pretende-se, assim, que cada um possa dar a conhecer a sua posição, sem que tente impô-la aos demais, e sem que explicitamente contrarie alguma posição já exposta, e por outro lado que cada um tenha a oportunidade de ser confrontado com opiniões alheias - porventura distintas das suas - num tom e numa postura que não ameacem a posição com que cada um se identifica.
A Maçonaria cria, deste modo, um contexto que induz cada um a confrontar-se com opiniões e posições distintas da sua, num ambiente de boa fé, entre iguais, sem que ninguém possa impor a ninguém nenhuma obrigação, mas em que cada um possa, querendo, tomar para si as palavras do outro, seja como as recebeu seja na forma que as queira incorporar naquilo que constitui a sua identidade.
Por fim, é costume - se bem que não creia haver nenhuma regra escrita a esse respeito - serem públicos os louvores e privados os reparos. Quando um bom trabalho é apresentado, é frequente que, nas palavras proferidas por cada um, sejam manifestadas palavras públicas de louvor e de encorajamento. Quando, porém, foi dito algo passível de ser interpretado como menos bom ou menos correto, a correção fraterna - que raramente falha - surge quase sempre em voz baixa directamente ao ouvido do "prevaricador". A franqueza e honradez manifestadas, de mão dada com a genuína preocupação que os maçons têm uns com os outros, levam a que seja frequente surgirem amizades muito fortes entre irmãos da mesma loja - e mesmo entre irmãos de lojas diferentes. A este respeito não me sai da cabeça uma frase que li há tempos numa entrevista em que alguém dizia: «A maçonaria é a única organização em que se faz amigos de infância aos 40 anos». Não sei se é a única, mas que se faz, faz.
Paulo M.
P.S.: Devo recordar que a Loja Mestre Affonso Domingues está integrada numa Obediência Regular - a Grande Loja Legal de Portugal / GLRP, e que o que descrevi se aplica a esta. Noutras obediências far-se-á de forma distinta; um destes dias escreverei um texto sobre isso.
16 comentários:
No Brasil praticamente não é usada a palavra tertúlia, tanto que tive que procurar no dicionário...
Os textos "sugeriram" que a comparação não é nada boa, aqui no Brasil, quando os obreiros da loja estão mais interesados em títulos e bem ceguinhos, dizemos que o encontro não é muito melhor do que uma reunião de condomínio.
Acho que serve a analogia...
E Diogo desculpe a demora, resolvi postar aqui o link por ter certeza que esta página seria aberta. O texto que eu mais gosto e que quando li pela primeira vez me abriu muito a visão e me despertou para procurar muito sobre determinados assuntos foi este: http://www.deldebbio.com.br/index.php/2010/06/04/yesod-bem-vindo-ao-deserto-do-real/
Um beijo no coração de todos,
Edson Júnior
@Júnior: Li com atenção uma parte do texto que indica, e o resto em diagonal. É precisamente a este estilo de texto que alguns de nós chamariam «eso-histérico», não fosse ser oriundo desse grande cadinho amalgamado de culturas, crenças e religiões que é o Brasil.
Cada um é livre de interpretar, viver e explicar a Maçonaria como melhor entende. Posto isto, o descrito não corresponde, nem de perto nem de longe, ao estilo que se pratica na nossa Loja - nem seria, propriamente, o argumento que eu procuraria para explicar porque é que uma loja não é uma tertúlia...
Um abraço,
Paulo M.
Caríssimos obreiros,
Aproveito o ensejo e lhes sugiro um possível tema pra reflexão. O batizo de "Maçonaria de Boutique" (assim mesmo, perfumado a francesa). Esta insinuação vem de um desagrado particular ao acessar o link: http://www.revistauniversomaconico.com.br/sobre/.
Me empertigou a quantidade de páginas destinadas a demonstração de produtos de luxo personalizados ao meio maçônico. Em minha busca transicional (das portas do templo ao tabernáculo) este tipo de demonstração opulenta me aparenta ir de encontro aos ideais maçônicos. Peço-lhes, se possível, um pequeno lume que seja sobre o assunto.
Abraços Fraternos!
Tenho um post lá no meu blogue que seria interessante os senhores contribuirem com a vossa participação.
http://naturologiamiga.blogspot.com/2010/09/casa-pia-o-sistema-judicial-portugues.html
Bem Haja!
@ Daniel Simões:
Caso não tenha reparado, este blogue é escrito por maçons da Loja Mestre Affonso Domingues, da Grande Loja Legal de Portugal/GLRP, que se integra na Maçonaria Regular.
A Maçonaria Regular nada tem a ver com o GOL e com qualquer estrutura partidária, como bastas vezes esclarecemos aqui.
O Daniel Simões ou ainda não percebeu a diferença, ou não quer perceber. Por mim, a única resposta que julgo adequado dar é que "o pior cego é o que não quer ver, o pior surdo o que não quer ouvir, o pior néscio o que não quer aprender".
Paulo M. - «cada intervenção destinar-se-ia a que cada um, na medida em que considerasse ser isso útil, apresentasse a sua posição ou opinião a respeito do assunto em causa».
Afinal, as vossas intervenções abordam o quê? A redecoração da Loja? Porque tudo o resto é política ou filosofia!
Continuo a considerar a tertúlia mais frutuosa na trica de conhecimentos.
Caro Júnior, sou um materialista empedernido.
@Diogo: Já lhe respondi uma vez, com a recomendação de que lesse o livro editado pela RLMAD; não me deu resposta. Imagino que lhe custe a despesa de adquirir um livro cujo conteúdo pode não o interessar. Por isso, vem agora fazer precisamente a mesma pergunta: «as vossas intervenções abordam o quê?»; e desta vez respondo-lhe de forma que não lhe custe dinheiro: leia, na página da RLMAD, algumas das pranchas que foram apresentadas. Não prometo é que não lhe tome tempo...
Quanto à sua consideração sobre o mérito relativo desta ou daquela forma de apresentar e comentar ideias, acho curiosa a sua certeza sem nunca ter estado senão num dos lados, como uma criança que jura que gelado de baunilha é o melhor do mundo - sem nunca ter provado outro... Tanta certeza faz-me lembrar uma citação de Bertrand Russell que o Google me saberá ajudar a encontrar...
Um abraço,
Paulo M.
Querido Paulo, me expressei mal, o link que eu mandei tem haver muito, muito mais mesmo eu diria, com o nosso materialista Diogo do que com a maçonaria ou principalmente sua loja, até porque eu não sou louco o suficiente para tentar explicá-la de uma maneira gnóstico-kabalista-esotérica-mitológica...
O texto foi escrito por um maçom-martinista-RC-thelemita... Enfim uma mistureba bem brasileira.
Mas serviu bem para o meu tempo de cético, pseudo-cético eu diria. Hoje eu sou um verdadeiro cético. Procuro sempre mais de um ponto de vista, reflito e finalmente experimento o que estudo, da maneira mais epistemiológica possível. Já provei para mim mesmo várias teorias que tinha antigamente, um tanto quanto materialistas eu diria, que não passavam de preconceitos e ignorância da minha parte. As vezes achamos que temos a visão de toda árvore, quando na verdade só temos de um pequeno galho...
Um grande abraço,
Edson Júnior
Paulo M., então você dá-me milhares de textos a ler sem me apontar um ou outro mais elucidativo?
Por sorte, à primeira dei com este:
Sexta, 28 Maio 2010 00:00
Escrito por M:.G:.
Venerável Mestre,
Meus muito queridos Irmãos em todos os seus Graus e Qualidades
Da Respeitável Loja Mestre Affonso Domingues:
«...Posto isto, falar-vos-ei de algumas inquietações que de há muito invadem o meu espírito, e se prendem com as atitudes e o comportamento concreto dos Maçons nos tempos que correm, em função do seu obrigatório papel exemplar e orientador. Claro que não tenho dúvidas de não ser nem o primeiro nem o último a abordar esta matéria no quadro da nossa Obediência. Tais inquietações têm a ver, singelamente, com o seu grau de empenhamento como cidadãos, "a priori" superiormente esclarecidos.
Que faz um Maçon perante o evoluir ou o regredir da Sociedade onde se movimenta e como com ela interage?»
«Uma norma bem clarividente da Grande Loja Legal de Portugal/Grande Loja Regular de Portugal é o impedimento, em trabalhos maçónicos, de discussões políticas ou religiosas, como enfraquecedoras da coesão dos Irmãos nos seus trabalhos em Loja. Mas (e este "mas" não tem, aqui, o sentido de uma contraposição) sabemos que à Maçonaria, nas suas diversas e autênticas Obediências, repugna o silêncio violentador das vozes abafadas; e sabemos, também, que tem de exigir - a História o regista -, sendo Iniciática e Esotérica, um Estado de Direito, que não será inútil, como o fazem e fizeram alguns precavidos juristas, qualificar de Direito Justo. Por este Estado, ou pelo que de mais próximo houve, em cada época, lutaram os nossos maiores.»
«Por conseguinte, fora do trabalho maçónico, de esforço para a convergência, o Maçon tem de ser, na serenidade e na firmeza, um cidadão vigilante e um adversário dos que corroem, pelo desinteresse e egoísmo, o avanço social. O Maçon tem de estar atento a qualquer sinal denunciador de atentados à Liberdade, pois é a Liberdade condição do Indivíduo Social. O Maçon tem de estar atento às manifestações de autoritarismo intimidatório nos círculos que frequenta, nas sociedades em que participa, para assim defender a autoridade saneadora e a disciplina produtiva. Deste modo, propiciará o progresso das Comunidades como conjuntos solidários.
O Maçon é, por todas as razões que o levaram a essa qualidade, um participante da Polis, agregadora de Cidadãos. Lembro o severo veredicto de Aristóteles: o desinteressado da Política, da organização social é um não homem.»
Donde, reitero a pergunta: afinal, as vossas intervenções em Loja abordam o quê? A redecoração da Loja? Porque tudo o resto é política ou filosofia!
Abraço
Mancha indelével?
http://www.brasilwiki.com.br/noticia.php?id_noticia=23918
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI108736-15223,00-A+DERROTA+SECRETA+DE+ARRUDA.html
Viva Paulo:
Mais uma vez obrigado pelo prazer que tive em ler os seus textos despidos de beatice. Estes dois posts , obrigaram-me a reler os relacionados desde 19 de junho e que despertam sempre a comentários. Não esquecendo que estamos num espaço publico, apesar de restrito, é natural que aguce a vontade dos participantes não maçons em que você abra a porta toda. Mas como não a abre, claro, torna-se mais difícil confrontar com quem espreita pela frincha e adivinha o resto.
“Por poucos que sejam, há, de facto, segredos na Maçonaria.” Esta é a frase com que começou o seu primeiro post.
Com esta condicionante torna-se mt difícil contrapor a algumas “provocações “ do Diogo. Mas sai-se mt bem.
Abraço a todos
Boas...
Agradeço ao Jocelino a dica da revista.
Muito Interessante. :)
@ Paulo, como sempre um bom post :)
abr...prof...
@ candido, Nuno Raimundo: Obrigado. Continuem a comentar, criticar quando for preciso, e a perguntar quando o entenderem.
@Diogo: Uma loja é um conjunto de pessoas; não se "redecora" um conjunto de pessoas. O local onde as lojas se reúnem chama-se um "templo". Esse sim, pode redecorar-se. Curiosamente, hoje, na primeira sessão depois de um mês de férias, deparámo-nos com o templo pintado de fresco e redecorado (e bem que precisava...), graças à intervenção da Grande Loja, responsável pelo templo que é partilhado por várias lojas. Sendo o templo da responsabilidade da Grande Loja, não faria sentido as lojas discutirem a redecoração de um espaço comum.
Política, também já lhe expliquei que pode ser discutida com cautela, e só se não se confundir com debate ou confronto partidário. Filosofia, por outro lado, não me recordo de ter dito que não se podia discutir... Ou disse? Não me parece.
Continue a ler. Está no bom caminho. Mas deixe que lhe faça uma sugestão: substitua as transcrições por links. Sabe certamente como se faz...
Abraço,
Paulo M.
Nuno,
É um prazer contribuir!
Não nego certa ansiedade em acessar os comentários que demonstrem a visão dos "professores" sobre esta aparente contradição ao qual nomeei "Maçonaria de boutique".
Abraços Fraternos!
Caro Paulo:
permita-me que o trate assim. Deixei no post do Rui um pedido de comentario a uma passagem de texto de A. Arnaut;
Nenhuma Historia da Maçonaria é rigorosamente verdadeira.Os historiadores maçons, compreensivelmente, não dizem tudo o que sabem e pecam por omissão; os outros dizem mais do que sabem e incorrem em deturpações, ou até,quando mal intencionados, em grosseiras falsidades"
Perante o que tenho lido dos seus textos, consegue avaliar a percentagem de rigor / omissão dos seus textos? Quando puder....
Olhe que não sou o Diogo!
Abraço para si.
Caro candido: Pode tratar-me por Paulo, com certeza! Pois se é assim que me chamo!...
As origens da maçonaria estão, de facto, envoltas em brumas, e muitos mitos foram inventados sobre a sua ancestralidade. Só hoje, volvidos quase 3 séculos, e com o distanciamento que esse tempo permite, é que começam a surgir esforços sérios de estudo da história da maçonaria, feitos por quem sabe de História e do que fala.
Um bom exemplo desses estudos recentes é o filme "The Scottish Key", que recomendo vivamente a todos quantos se interessem genuinamente pela história da maçonaria. Os textos que escrevi foram parcialmente baseados neste filme e são, tanto quanto sei, corretos.
Um abraço,
Paulo M.
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