03 setembro 2010

Uma loja maçónica não é uma tertúlia (I)


«Tenho um grupo, que com as vicissitudes da vida se foi afastando, mas que durante uns bons 15 anos formou uma tertúlia que se encontrava quase todos os dias. Tivemos incontáveis debates e polémicas. Aprendemos todos muito uns com os outros. Hoje, ainda continuamos todos amigos. Não há necessidade de proibições no que toca a troca de ideias.» (Diogo, num comentário recente)

Este comentário explica, quase por si mesmo, porque é que uma Loja Maçónica não é - nem pode ser - uma tertúlia. Ora comecemos, como quem analisa, escrutina e disseca um texto numa aula de Português.

Ter um grupo «... que com as vicissitudes da vida se foi afastando...» é uma das coisas que se pretende evitar numa Loja. Pertencer a uma Loja é como que um casamento. Não é forçosamente para toda a vida, pode-se ter "outras" ao mesmo tempo (se bem que seja difícil de gerir) mas, mesmo quando isso acontece há sempre uma que é a "principal"; pode-se cortar os laços com essa, e ou arranjar outra "principal" ou mesmo passar a não ter nenhuma, mas ambas são situações dolorosas. Uma Loja é como que uma família. Uns nascem, outros morrem, mas a família é a mesma - se não se extinguir; numa Loja, são iniciados uns, adormecem ou partem para o Oriente Eterno outros, mas a Loja permanece - se não abater colunas. Há lojas várias vezes centenárias, e esse vínculo a algo que existia antes de nós e continuará a existir depois é uma das coisas boas que a Maçonaria nos proporciona; ao mesmo tempo que nos reduz à nossa pequenez de meros "passadores de testemunho" dá-nos a satisfação de saber que pertencemos a essa cadeia de continuidade.

Pertencer a um grupo «...que se encontrava quase todos os dias» deve ser algo de muito exigente, e pouco consentâneo, suponho, com os deveres conjugais, laborais e parentais. Claro que isso é questão que só se põe a quem esteja sujeito a esses deveres... Por outro lado, encontros diários não serão, como dizia Shakespeare, "too much of a good thing"? Não terão esgotado em 15 anos conversa que dava para uma vida inteira? Em contraste, a maçonaria alerta os seus membros de que os seus principais deveres são para com a família, para com o Criador (qualquer que seja a conceção que dele se faça), e para com o país; a maçonaria vem depois.

Dizer-se, ao fim de 15 anos, que «ainda continuamos todos amigos» implica ter-se começado por aí: pela amizade enquanto vínculo genitor. Ora, quando se ingressa uma loja é-se integrado num grupo de desconhecidos; as amizades que surjam são paralelas ao grupo, não são condição prévia do mesmo. Os nossos amigos são pessoas que nós conhecemos e cujo contacto decidimos manter e aprofundar, e com quem nos identificamos mais; numa loja, pelo contrário, não se escolhe nada; um pouco como a família  do cônjuge, fica-se com o que nos calha na rifa. A um amigo perdoa-se mais, aceita-se mais e tolera-se mais do que a um desconhecido; por isso, as regras e os pressupostos de uma loja e de um grupo de amigos não podem deixar de ser diferentes, pois que numa loja a diversidade é maior do que num grupo de amigos.

Tertúlias como aquela de que o Diogo fala são próprias da adolescência e da juventude. Nos debates, frequentemente acesos, cada um tenta marcar a sua posição, convencer os demais, ensinar e impor o seu ponto de vista. Contudo, é normal que os seus membros, uma vez "crescidos", tendo adquirido a sua própria individualidade e identidade fora do grupo, se afastem progressivamente.; é normal que haja menos disponibilidade para um contacto tão íntimo e envolvente, para uma exposição tão prolongada, para um desnudar-se tão profundo - até porque as ideias se vão cimentando e há cada vez menos temas novos a debater sem que o resultado do debate esteja determinado a priori. Assim, a maturidade acaba por estabelecer o limite. Em loja, pelo contrário, o objetivo não é "converter" ninguém a um determinado ponto de vista, mas permitir que cada um encontre o seu.

Paulo M.

5 comentários:

jpa disse...

Caro Paulo M.;

Mais uma vez um texto 5 estrelas.
Identifico-me completamente com ele.

Um bom fim de semana a todos.

JPA

Júnior disse...

Diogo, pra ti entender melhor como funciona a maçonaria e ocultismo de uma forma geral, eu ti aconselharia este site: http://www.deldebbio.com.br/index.php/2010/09/03/goecia-kiumbas-e-os-demonios-de-verdade/

Esse é o último texto dele, existe na esquerda uma coluna que fala exclusivamente sobre maçonaria, que realmente é sensacional, agora divirta-se. ;)

Abraços!

Edson Júnior

Diogo disse...

Paulo M - «Pertencer a um grupo «...que se encontrava quase todos os dias» deve ser algo de muito exigente, e pouco consentâneo, suponho, com os deveres conjugais, laborais e parentais.» e « Tertúlias como aquela de que o Diogo fala são próprias da adolescência e da juventude»

Diogo – Infelizmente, meu caro, a vida moderna não só nos afasta uns dos outros (um indo viver para ali, outro para acolá), como a antiga família alargada – em que viviam próximos irmãos, pais, avós, filhos, tios e sobrinhos – ficou reduzida à família nuclear (tipicamente: pai, mãe e um ou dois filhos).

A família alargada e a vida nas localidades pequenas permitia que os homens (e as mulheres) trabalhassem, casassem, criassem família e mantivessem tertúlias durante a vida inteira com familiares e vizinhos. A vida moderna estilhaçou essa teia de relações. Hoje vivemos praticamente sozinhos.

O homem e a mulher têm interesses diferentes (não estou a ser machista). E embora num casal haja interesses comuns, pertencem a universos diferentes. As conversas entre marido e mulher não satisfazem completamente nem um nem outro. Resta-lhes a conversa com os colegas de trabalho ao almoço e encontros de tempos a tempos com amigos comuns. De resto é ficar a olhar para a televisão.

Esta é também uma das razões porque a Internet se tornou tão importante. É uma nova forma de tertúlia.


Paulo M. - «até porque as ideias se vão cimentando e há cada vez menos temas novos a debater sem que o resultado do debate esteja determinado a priori. Assim, a maturidade acaba por estabelecer o limite»

Diogo – Acha que sim? Fará você ideia daquilo que eu tenho aprendido na Internet, remodelando por completo a visão que eu tinha do mundo em relação a variadíssimos assuntos? Receber informação para lá duns Media que estão praticamente todos a soldo? Meu caro, não só estamos sempre a aprender como hoje tínhamos matéria para um milhão de tertúlias.

Abraço

Diogo disse...

Caro Júnior, sugere-me algum artigo (com o link) em especial?

Cumprimentos

Bilder disse...

Não sei se o seguinte pode ser confundido com uma tertulia no entanto como é um pilar da dita democracia que está em risco aqui vai para vossa consideração:
http://aagendasecreta.blogspot.com/2008/01/ordem-manica.html -- A justiça portuguesa