17 setembro 2010

A Maçonaria incorpórea


"Ministro da Saúde acusa Medicina de incoerência". "Engenharia desacredita cursos do ensino privado". "Dança moderna na bancarrota". "Atletismo acusado de burla". "Geografia convoca eleições". "Química sobe os preços dos combustíveis". Imaginem qualquer destas frases na primeira página de um jornal. Nenhuma delas faz sentido, pois não? Agora imaginem-nas alteradas desta forma: "Ministro da Saúde acusa Ordem dos Médicos de incoerência". "Associação dos Engenheiros Civis desacredita cursos do ensino privado". "Escola Nacional de Dança Moderna na bancarrota". "Tesoureiro do Conselho Superior de Atletismo acusado de burla". "Sociedade Lisbonense de Geografia convoca eleições". "GALP sobe o preço dos combustíveis". Já se percebe melhor, não acham?

A Medicina, a Engenharia, a Dança, o Atletismo, a Geografia, a Química, não são entidades; são, quando muito, nomes de áreas do saber, de técnicas, de actividades. Dizer-se que "a Medicina" fez isto ou aquilo é desprovido de sentido, assim como o é acusar-se "a Política" de má fé. Já dizer-se que "o quadro médico do Hospital X ganhou prémo de excelência" é um discurso pelo menos coerente, como o será acusar-se "o Secretário de Estado de Z" de má fé. Por outro lado, não parece correto dizer-se que "a ponte foi construída com recurso aos mais modernos conhecimentos da Ordem dos Engenheiros", mas se dissermos "aos mais modernos conhecimentos da Engenharia" tudo muda de figura.

Entaladas entre dois conceitos ficam frases como "Igreja Católica condena o uso do preservativo", ou "O Futebol está de luto". O que não é claro, nestes casos, é a identidade do sujeito. "Igreja Católica" refere-se a quê, precisamente? Ao conjunto dos fiéis, significando que estes, na sua maioria, condenam o  uso do preservativo; ou, por outro lado, ao Papa, enquanto representante da Igreja Católica, sendo este quem condena independentemente da posição da massa de fiéis? Quanto ao futebol, pode a notícia significar que, por exemplo, a Federação Portuguesa de Futebol decretou luto oficial por uma qualquer razão; ou pode, por outro lado, querer dizer que milhões de adeptos da modalidade sofrem com a perda de uma figura de referência. Qualquer das interpretações faz sentido; traduz é realidades distintas.

Precisamente o mesmo fenómeno ocorre de cada vez que se ouve ou lê: "A Maçonaria fez...", "Maçonaria implicada em..." ou "Ligações à Maçonaria no caso...", como se a Maçonaria, à semelhança de uma Igreja, de uma Colmeia ou um Clube Desportivo, fosse uma entidade, uma soma das partes, um substantivo coletivo. E aqui, uma vez mais, há quem tenha um entendimento, e quem tenha outro, quem concorde com esta posição e quem a repudie.

Para a Maçonaria Regular - de origem Britânica, recorde-se - "a Maçonaria" não é o conjunto dos Maçons, mas o nome daquilo que eles fazem, do mesmo modo que "a Medicina" é o nome daquilo que os médicos fazem, e não o nome que se dá ao conjunto dos médicos. Da esfera da Maçonaria Regular faz parte o princípio de que a Maçonaria não deve intervir na sociedade enquanto tal, mas apenas através de cada maçon. Cada um destes pode - deve! - promover a melhoria da sociedade através do seu próprio exemplo, da sua atuação e da sua influência, seja isoladamente seja em ações conjuntas dos elementos da mesma Loja ou, mesmo, da mesma Obediência (ou seja: da mesma Grande Loja ou Grande Oriente). Assim, não se pode dizer que a Maçonaria Regular tenha um "corpo" atuante, pois cada mão, cada dedo, cada cabelo, age por si mesmo, sem que haja concertação daquilo que se faz.

Entendimento diverso tem, normalmente, quem pratica a Maçonaria Liberal - de origem Francesa - por entender ser a Maçonaria o conjunto dos Maçons, ativamente empenhados, enquanto parceiro social, na promoção dos ideais maçónicos de uma sociedade mais livre, mais igualitária e mais fraterna. A Maçonaria é, aos seus olhos, o conjunto daqueles que defendem uma mesma visão do mundo, e que se congregam enquanto grupo organizado no sentido de a tornar realidade. Deste modo, atua de forma mais ou menos concertada, mas sempre com a consciência de que fazem parte de um todo, de um corpo, com um propósito comum para o qual cada um contribui na medida da sua possibilidade.

Em Portugal, a obediência internacionalmente reconhecida no seio da Maçonaria Regular é a Grande Loja Legal de Portugal/GLRP, de que a Respeitável Loja Mestre Affonso Domingues faz parte. A maior das obediências portuguesas internacionalmente reconhecidas no seio da Maçonaria Liberal é o Grande Oriente Lusitano (GOL). Uma e outra praticam Maçonaria - mas fazem-no de forma substancialmente diferente, decorrendo esta diferença, nomeadamente, do distinto entendimento que têm da ação da Maçonaria na sociedade. Não será alheia a esta diferença de postura perante a sociedade a profusão de referências nos media ao GOL, enquanto que a GLLP/GLRP tem uma exposição mediática muito mais reduzida. A avaliação do quanto de benéfico ou de nefasto para cada uma das Obediências e para a Maçonaria advém destas distintas posturas é algo que vos deixo como exercício de especulação individual.

E a partir de agora, quando ouvirem dizer ou lerem que "a Maçonaria" fez isto ou aquilo, averiguem a quem se refere a notícia: a que maçons, a que loja, a que obediência - isto, se não for "boato". Vão ver que, se o fizerem, muitas das perguntas que aqui têm surgido ficarão rapidamente respondidas - ou saberão, pelo menos, a quem dirigi-las.

Paulo M.

(Todas as frases referidas no primeiro parágrafo são um produto de ficção e meramente exemplificativas; qualquer eventual correspondência com a realidade não passa de mera coincidência)

12 comentários:

jpa disse...

Muito bem Mestre Paulo M.;

A César o que é de Cèsar.
Aproveito para aconselhar a leitura do livro de "Luis de Matos",
"A Maçonaria Desvendada - Reconquistar a Tradição"

Um bom fim de semana a todos
JPA

Candido disse...

[E a partir de agora, quando ouvirem dizer ou lerem que "a Maçonaria" fez isto ou aquilo, averigúem a quem se refere a notícia: a que maçons, a que loja, a que obediência]
Tudo o que diz corresponde á realidade, todavia, sabe que uma sociedade elitista, fechada ao grande público é sempre um bom motivo para gerar especulação, neste site, temo-lo visto bem. É do censo comum, pois uma qualquer instituição é feita de pessoas e é o trabalho, dedicação e a arte de cada um deles que as mantêm pé. Mas, dentre todos eles, ainda há outros que por carolice e disciplina conseguem manter níveis de motivação que vão fazer a diferença.
Quanto á capacidade das pessoas saberem identificar a origem do maçon, acho que será um caminho longo a percorrer. Trinta anos é pouco tempo e só os maçons sabem que há GL e até lojas.
Mesmo entre lojas, repare na sua e nas outras. Quase todas têm site, blog, etc. mas a única loja que conheço ( Portugal) e que divulga conhecimento é a sua. Mas, na sua loja, também é visível quem mantém este blog em funcionamento e espevita as pessoas. Não quero fazer juízo de valor, pois cada uma terá as suas razões para justificar o que fazem ou não fazem ou fazem menos bem.
Abraços para si

jpa disse...

Não faz parte desta postagem, mas gostaria de saber onde posso comprar o filme "The Scottish Key" de preferencia com legendas em Português.

Mais uma vez

Feliz fim de semana

Jocelino Neto disse...

Aqui trava-se uma batalha de percepções.

É natural para o ser humano, em primeiridade (consciência individual imediata), tomar a parte pelo todo. Nesta "infância", os sentidos estão super-aguçados impelindo-nos pela curiosidade ávida, ao conhecimento. Tal qual ao adéfago néscio que fere-se em contato com os aguilhões de um porco-espinho, ao sofrermos com os primeiros dissabores, recuamos diante do desconhecido. É natural pois, nesta fase, desenvolvermos preconceitos, afinal, nosso instinto é essencialmente projetado para a auto preservação (ego).

Como seres gregários operamos na arena da existência cotidiana (secundidade). As experiências individuais, lidas nesse estágio com compreensão e profundidade, são levadas ao âmbito coletivo sofrendo mutações. As informações antes factuais, ganham matizes interpretativas diversas. "Virtualiza-se" o fato. Brilhos ou sombras são adicionadas e o "feito" tornar-se fantasia.

Interagindo responsavelmente com estas energias(contração/expansão, ying/yang, causa/efeito...) atingimos a terceiridade (corresponde à camada de inteligibilidade). Pensamos em signos, através dos quais representamos e interpretamos a existência. Neste patamar, os preconceitos são superados. Atingimos o estado de Supersoma (o
todo é maior que a soma de suas partes) e transponibilizamos o saber (reconhecimento da essência sobre a forma). O grande desafio é, diante de inúmeras forças que lutam para influenciar nossas decisões, exercermos os 3 estágios conscientemente.

Seguindo a linha de raciocínio teríamos: a percepção do individuo (és maçom?), do individuo interagindo socialmente (o que é a maçonaria? o que se faz lá?) e a
percepção da essência (Eu Sou!).

Abraços Fraternos!

Candido disse...

Caro JPA:
Obrigado pelos votos de fim de semana que retribuo. A proposito do tema em causa que também nos pode levar ao velho ditado "diz-me com quem andas e eu te direi quem és",e no seguimento do seu conselho sobre as leituras do Luis de Matos, que admiro, mas discordando marginalmente, gostava de ter o seu comentário ás palavras dele, para mim violentas, no forum maçonico sobre a conferencia inter-americana da proxima semana em Lisboa.
Um abraço para si.

Paulo M. disse...

@candido: "é visível quem mantém este blog em funcionamento e espevita as pessoas" Pois é: são os nossos incansáveis leitores / comentadores, sem os quais teríamos a sensação de estar... a pregar para os peixes!!! Bem hajam!

@jpa: Não conheço o livro, mas vou procurar. Quanto ao filme "The Scottish Key", o DVD original tem legendas em português. Pode progurar no Google que certamente encontrará onde comprá-lo. Se preferir, pode contactar a "Esquadro e Compasso"; pode ser que eles o tenham ou o encomendem para si.

@Jocelino Neto: grato pelo seu comentário. Vou guardá-lo para reler, que é dos que merecem ser lidos mais do que uma vez.

Um abraço,
Paulo M.

jpa disse...

Caro Candido;
Aconselhei o livro, não opinei sobre a obra.
Não sei quais foram as palavras dele, sobre o referido tema.

Cumprimentos
JPA

Candido disse...

Caro jpa:
Claro que fez bem em aconselhar o livro do luis de matos.Eu li e gostei na generalidade, o que deve ter acontecido consigo certamente.
Como foi o jpa a referir o autor, vinha a proposito pedir a sua opinião ás afirmações do luismatos no forum maçoninico do portal com o mesmo nome sobre a conferencia. Dispenso-me de reproduzir aqui o que ele escreveu como é logico. Abraço para si

Candido disse...

Caro Paulo:
Por afazeres profissionais, não tive disponibilidade de ler com a meditação requerida todas as suas passagens e surgiu-me uma duvida que gostaria de lhe colocar.
Há varias obdiencias e muitos ritos. As obdiencias estão estruturadas e funcionam, mas sobre os inumeros ritos, quém regula e "fiscaliza" as boas praticas de cada rito?
Para melhor clarificação, li uma mensagem de um mestre duma loja que seguia um deteminado rito, mas como não havia qualquer documento escrito,não sabia se estava a segui-lo bem, e pretendia ter um documento credivel!!!
Mas isto pede-se num blog? Eu acharia provocação, mas ele teve resposta!!!
Não publico o blog, mas pederei dar-lho por email.
Abraço

Paulo M. disse...

@candido: Na GLLP os rituais encontram-se impressos, e são entregues a cada obreiro à medida da sua progressão. Além disso, há os Grandes Inspetores que visitam as lojas e aferem a correção da prática do ritual com que a loja trabalha.

Há, porém, outras obediências que não escrevem os seus rituais, apenas os memorizam. Não é o nosso caso.

Um abraço,
Paulo M.

Streetwarrior disse...

Este texto deveria estar num sitio visível para que Profanos como eu, pudessem abrir os olhos.

Obrigado
Nuno

Nuno Raimundo disse...

Caro Streetwarrior,
os profanos quando querem conhecimento, procuram.
Só com esforço e perseverança se obtém o que se deseja.
"Procura e acharás"...

abraço