01 maio 2011

O café: motor do Iluminismo



"Forte é o rei que tudo destrói, mais forte a mulher que tudo obtém, e ainda mais forte o vinho que afoga a razão."
Humberto Eco, em "A Ilha do Dia Anterior"


Desde há séculos que o Homem consome bebidas alcoólicas. A análise química de recipientes de cerâmica encontrados em povoações do Neolítico na China indicam que o consumo de bebidas fermentadas (neste caso, uma bebida à base de arroz, mel e fruta) já é velho de pelo menos 9000 anos. Há receitas de bebidas alcoólicas em placas de barro, e a arte Mesopotâmica mostra-nos indivíduos a beber de grandes potes por palhinhas.

Textos sumérios e egípcios de há quatro mil anos descrevem as propriedades medicinais do álcool, e os textos Hindus ayurvédicos descrevem quer os benefícios das bebidas alcoólicas quer as consequências do seu abuso. Na Grécia Clássica consumia-se vinho ao pequeno-almoço, e este fazia parte da dieta da maioria dos cidadãos de Roma no século I antes da nossa era.

Na Europa medieval toda a família bebia cerveja - os homens uma cerveja mais forte, as crianças uma mais fraca, e as mulheres uma de graduação intermédia. Também se consumia cidra e vinho de bagaço, sendo o vinho de uva reservado às classes mais altas. Em suma: a humanidade alcoolizava-se havia milénios, e a Europa da Idade Média acordava ébria e deitava-se embriagada. O torpor do álcool, transversal a toda a sociedade, obnubilava mesmo as mentes mais brilhantes.

Mas do Islão veio o grande redentor, quando os Turcos, após o falhado cerco a Viena de 1529, deixaram para trás alguns sacos de café. Rapidamente as sua propriedades foram conhecidas: "seca os humores frios, dispersa os gases, fortalece o fígado, é o remédio soberano para hidropsia e sarna, restaura o coração, alivia dor de barriga. O seu vapor é, de facto, recomendado para fluxões dos olhos, zumbido nos ouvidos, catarro, reumatismo, ou nariz pesado."

Foi assim que o café substituiu, em certa medida, a cerveja e o vinho, nos hábitos alimentares europeus. O dia passou a começar com um estimulante de baixas calorias, em vez de um entorpecedor calórico, o que produziu um novo paradigma de Homem: os corpos rotundos e maciços que podemos ver nas pinturas do século XVII - consequência do consumo excessivo de bebidas fermentadas - tornaram-se mais esbeltos e ágeis; as pessoas tornaram-se sóbrias e sérias; e o pensamento, a inteligência e razão - por fim libertos do seu etílico véu  - passaram a ser valorizados.


O consumo do café rapidamente se tornou num hábito cada vez mais vulgarizado e, com o vício da cafeína, começou a procura frenética de fontes desta maravilhosa droga, o que originou o aparecimento de comércio externo em larga escala, com todas as inerentes consequências para o desenvolvimento social.


O café, por outro lado, mantinha as pessoas suficientemente sóbrias para darem asas à criatividade e inventarem toda uma gama de pequenos melhoramentos do seu bem-estar diário, concedendo ao cidadão comum uma comodidade como nunca antes tinha experimentado.

Pode, por tudo isto, dizer-se que a paixão da civilização ocidental pelo café foi um dos verdadeiros motores do Iluminismo - e bem sabemos que só este criou as condições para o surgimento da Maçonaria Especulativa. Foi graças ao café que, finalmente de olhos bem abertos, do meio-dia à meia-noite, o Homem pôde iniciar o trabalho para o seu melhoramento, em busca de mais Luz e Sabedoria.


Paulo M.


Fontes: 
http://www.stephenhicks.org/2010/01/18/coffee-and-the-enlightenment/
http://solohq.solopassion.com/Articles/Cresswell/Making_the_Genius_Quicker_A_Complete_Hiftory_of_Man_According_to_Hif_Divers_Delightf_%28Part_Two%29.shtml
http://en.wikipedia.org/wiki/Alcoholic_beverage

27 abril 2011

Maçonaria e Filosofia Pitagórica - o UM

A imagem acima era chamada pelos gregos de mónade, palavra que deriva de monas, singularidade. Em geometria, o círculo é a origem de todas as formas subsequentes. É, pois, o princípio. Os filósofos matemáticos da Antiguidade grega referiam-se à mónade, ao círculo, como O Primeiro, a Semente, a Essência, a Unidade.

Para os pitagóricos, a Unidade, o Um, era representado pela mónade, pelo círculo. Para eles, nada existia sem um centro, em torno do qual gira, sendo o centro a fonte, a origem, que está para lá de todo o entendimento, que é incompreensível. Em bom rigor, o ponto não existe, não é visível, é uma abstração, mesmo geométrica: o "ponto" que vemos no centro da imagem é um conjunto de muitos verdadeiros pontos, reunidos de forma a criar uma imagem que pode ser apreendida pela nossa visão, um "maxi-ponto", que tomamos por símbolo do vero ponto representado.

Mas, tal como uma semente, o centro, o ponto central, expande-se e realiza-se como um círculo.

A mónade, a singularidade, representa assim o UM, a origem de tudo, o ponto de onde tudo nasce e que, expandindo-se em círculo, é a origem de todas as formas subsequentes - ou seja, o Princípio dos princípios, o que tudo cria: o Criador!

Qualquer número multiplicado ou dividido por um, fica igual a si próprio. A mónade, o Um, a Origem, preserva a identidade de todos e de tudo (para os pitagóricos, os números são a expressão e essência de tudo o que existe).

Por sua vez, um multiplicado por um dá sempre um. O Um é Único e Singular. Sendo assim, e uma vez que Um é o princípio que tudo origina, como é que Um se torna muitos? Veremos isso no próximo texto... Por agora, retenhamos então a noção de que o Um é o princípio criador, a Origem e é representado por um ponto que se expande num círculo.

Este um resumo da filosofia pitagórica em relação ao Um. Vejamos agora o que ensina a Tradição maçónica quanto ao Um.

No Rito Escocês Antigo e Aceite, cedo o maçom aprende que os mistérios dos três primeiros números são as analogias que decorrem das propriedades metafísicas dos números (Pitágoras ou um qualquer seu discípulo não diria, talvez, diferentemente...). O número UM é uno, porque foi criado pelo Deus único. O número UM não tem limites.

Nos ritos de Emulação e de York, o símbolo do "ponto no círculo" (point within a circle) é diferente, sendo o círculo enquadrado por duas retas paralelas.

A interpretação externa ou exotérica deste símbolo decompõe-o nos seus elementos: o ponto representa o indivíduo maçom, o círculo simboliza a linha delimitadora do seu dever perante Deus e o Homem, para lá da qual não deve permitir que as suas paixões, preconceitos e interesses o arrastem e as tangentes paralelas referem-se aos dois S. João patronos da Maçonaria: S. João Batista e S. João Evangelista, no interior de cujos ensinamentos o círculo delimitador da conduta do maçom se deve manter. Esta interpretação é claramente tributária da religião cristã e do teísmo presente, quase em exclusivo, nos primórdios da Maçonaria Especulativa.

A interpretação esotérica do símbolo declara provir ele da mais remota Antiguidade. Mackey, após uma longa introdução sobre a essência do culto da divindade em várias regiões do Mundo Antigo, conclui que o símbolo respeita à característica hermafrodita, isto é, contendo em si o masculino e o feminino, da Divindade, representando o ponto o Sol (força masculina) e o círculo o Universo (força feminina), fertilizado pelos raios do Astro-Rei. As linhas paralelas são os solstícios, que delimitam o percurso aparente do Sol ao longo do ano.

A interpretação maçónica do Um e do respetivo símbolo gráfico representativo constitui, a meu ver, uma corruptela do ensinamento pitagórico. A filosofia pitagórica, transmitida oralmente e em círculos fechados e restritos ao longo de milhares de anos, atravessando os tempos da pujança das divindades romanas, do declínio do Império Romano, do subsequente barbarismo, das trevas da Idade Média, acolhida por rudes construtores, desembocou no século XVIII com significativas alterações. Mas o princípio básico está lá: o UM é, ou representa, ou simboliza (consoante as conceções) o Criador, o Princípio Criador do Universo, a Origem, a Essência de tudo.

Fontes:

http://www.masonic-lodge-of-education.com/point-within-a-circle.html
Rito Escocês Antigo e Aceite, Ritual de Aprendiz, GLLP/GLRP, junho de 6007
O Código Secreto, Priya Hemenway, ed. Evergreen, 2010.

Rui Bandeira

20 abril 2011

Maçonaria e Filosofia Pitagórica - Pitágoras


Julga-se que Pitágoras nasceu em 570 a. C., em Samos, uma ilha grega no mar Egeu e morreu em Metaponto, uma cidade do sueste de Itália colonizada por gregos, em 497 ou 496 a.C.. Pouco se sabe da sua vida. Relatos que devemos ter por lendários, por historicamente inverificados, referem que, instigado por Tales de Mileto, viajou até ao Egito, tendo sido admitido no templo de Disópolis, aí tendo tomado contacto com os Mistérios egípcios, e à Pérsia, onde teria estudado com Zoroastro. Regressado a Samos, aí fundou uma comunidade religiosa, os mathematikoi, que constituiram uma Escola Filosófica que hoje denominamos por Escola Pitagórica.

Tenha-se presente que, na Antiguidade, a filosofia foi a precursora de todas as ciências. As escolas filosóficas eram as universidades da época, onde se estudava e investigava e refletia e especulava sobre todos os fenómenos da vida e do Universo, procurando dar-lhes explicação.

Para os pitagóricos, a verdadeira essência, o princípio fundamental de tudo são os números, não enquanto símbolos, mas sim enquanto valores de grandeza (a essência do número, não a sua forma ou representação). Ou seja, os números a que se referiam não eram os símbolos utilizados para os representar (e muito menos os algarismos - 1, 2, 3, etc. - que apenas foram inventados pelos árabes, séculos mais tarde...), mas os valores que eles exprimem. Uma coisa manifesta-se externamente por uma estrutura numérica, sendo o que é por causa desse valor. O cosmo é regido por relações matemáticas.

Aristóteles escreveu, na sua Metafísica, a propósito de Pitágoras:

Os chamados pitagóricos, que foram os primeiros a estudar matemática, não só desenvolveram o seu estudo, como também, tendo sido educados segundo o espírito dela, acreditavam que os seus princípios eram os princípios de todas as coisas. Uma vez que destes princípios os números são por natureza o primeiro, e nos números eles parecem ver muitas semelhanças com as coisas que existem e que surgem - mais do que no fogo e na terra e na água (de modo que uma modificação de números é a justiça, outra é a alma e a razão, outra a oportunidade - e de igual modo quase todas as outras coisas podem ser expressas numericamente); e, mais uma vez, acham que as modificações e as razões das escalas musicais podem ser expressas em números; e uma vez que todas as outras coisas parecem na sua natureza ser modeladas sobre números, e os números parecem ser as primeiras coisas de toda a natureza, eles supõem que os elementos dos números são os elementos de todas as coisas e que todo o céu é uma escala musical e um número.

Os primeiros dez números eram vistos pelos pitagóricos como padrões para todos os princípios do cosmo.

Que tem isto a ver com a Maçonaria?

Qualquer iniciado maçom sabe que algo do que aprende em Loja se relaciona precisamente com os números e com esta conceção de que os números (ou, pelo menos, alguns números), mais do que meros símbolos de quantidade, refletem essências, qualidades.

Parte do estudo dos símbolos a que os maçons se dedicam tem como objeto precisamente o estudo do que simbolizam os (ou determinados) números. A meu ver, a influência da filosofia pitagórica neste particular aspeto da filosofia maçónica é evidente.

Irei, nos próximos textos, procurar expor o significado que os pitagóricos atribuíam a cada número e, quando os maçons também a esse número atribuírem algum significado, comparar ambas as conceções, em ordem a fazer ressaltar as semelhanças e dissemelhanças porventura existentes.

Como já acima referi, quando, a este respeito se fala de números, não nos estamos referir a algarismos (que inexistiam na Antiguidade Clássica), mas do respetivo conceito essencial. Referir-me-ei, portanto a Um - e não a 1 -, a Dois - que não a 2 -, a Três - não 3 - e assim sucessivamente. Assim sendo, como representavam os pitagóricos os conceitos de Um, Dois, Três, etc.? Denominavam-nos na respetiva língua e certamente notavam-nos, nem que fosse abreviadamente, pelos símbolos escritos em uso na sua época e lugar. Mas, quando se referiam a um conceito numérico, representavam-no... geometricamente! A sua Matemática emergia - afinal como a que hoje conhecemos... - da Geometria. E iremos ver que algumas das caraterísticas que os pitagóricos atribuíam a cada número tinham uma relação estreita com a sua conceção de representação geométrica desse número.

Terei, julgo, oportunidade de assinalar que idêntica conceção geométrica dos valores numéricos informa os conceitos que os maçons extraem dos números que para eles têm particular significado.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pit%C3%A1goras
O Código Secreto, Priya Hemenway, ed. Evergreen, 2010.

Rui Bandeira




18 abril 2011

Sem inspiração


No princípio as ideias fluíam como uma torrente, e davam para dois textos por semana. Depois o rendimento baixou para apenas um. A certa altura, as datas começaram a passar com o texto por escrever, até que me eis aqui, hoje, sem uma única ideia de jeito que vos apresente. A badalada conjuntura não ajuda, é verdade; com a mente ocupada com outros afazeres fica difícil arranjar disponibilidade - nem que seja só mental - para escrever umas linhas coerentes

Poderia escrever um texto sobre o confortável que é ser aprendiz ou companheiro, sem obrigação de dizer nada - mas isso só dava para escrever uma vez. De facto, começo a perceber o que tantas vezes ouvi: "Olha que a maçonaria não é uma corrida dos 100 metros... é uma ultra-maratona de longo curso..." Pois é - mas eis-me sem fôlego ao fim de meia centena de textos.

Será, talvez, a altura de fazer uma breve paragem, retemperar as forças e ouvir depois de tanto falar. Deixo, assim, este repto, especialmente a quem não costuma comentar: dizei do que é que, de entre o que escrevo, tendes gostado mais e do que tendes gostado menos, do que gostaríeis que falasse que não tenha falado, e colocai as questões que vos vão na alma. Tornai mais vosso este blogue que é escrito para vós. Tentarei ir ao encontro do que sugerirdes.

Posso contar convosco?

Paulo M.

13 abril 2011

Maçonaria e Filosofia Pitagórica - Introdução


Sobre a origem da Maçonaria, existem três tipos de teses (dentro de cada tipo, existem variações):


a) A tese histórica, que, em síntese, declara que a Maçonaria Especulativa que hoje conhecemos deriva da Maçonaria Operativa e esta era o conjunto de práticas, normas e ensinamentos próprios existentes nas associações de construtores em pedra, nas suas diferentes formas de organização (Lojas operativas, guildas, associações de companheiros, etc.);

b) A tese cavaleiresca, que proclama que a Maçonaria realmente descende das ordens cavaleirescas das Cruzadas, em especial dos Templários que, destruídos enquanto organização, os seus sobreviventes, dispersos pela conspiração de Filipe, o Belo e Clemente V, ter-se-iam acolhido designadamente na Escócia e aí utilizado as existentes Lojas dos construtores para se ocultarem e ocultarem os seus segredos;

c) A tese dos Antigos Mistérios, segundo a qual conhecimentos esotéricos e ocultos, acessíveis apenas a poucos escolhidos, de tal merecedores, eram transmitidos desde a Antiguidade, dos Egípcios, dos Sumérios, dos Gregos, enfim, de todas as Escolas Místicas da Antiguidade, em escolas ocultas de transmissão e conservação desses Mistérios, que desembocaram, primeiro, nas Lojas Operativas medievais e, depois, na Maçonaria Especulativa (com ramais de ligação ou variação vários: Rosacrucianismo, Martinismo, Iluminati, Escola Ocultista, Teosofia, etc., etc.).

Considero correta a tese histórica. É a que documentalmente se confirma. Não necessita de especulações fantasistas.

Julgo ter já neste espaço explicado que a tese cavaleiresca em geral nasce da imaginação do Chevalier Ramsay e a tese templária, em particular, de um erro de Mackey (ver Origem e primórdios do Rito Escocês Antigo e Aceite - o Discurso do Chevalier Ramsay). Não discuto a possibilidade de alguns cavaleiros Templários se terem refugiado na Escócia. Mas não aceito facilmente que se lograssem "ocultar" - e aos seus "segredos" - no seio de rudes, incultos e analfabetos operários de construção, infiltrando-se tão profundamente que lograram entretecer nos ensinamentos das associações de construtores os ocultos ensinamentos templários, sem que ninguém, a começar pelos próprios construtores infiltrados, tivesse dado por isso e sem que resultasse registo digno de nota (quando dezenas de manuscritos dos operativos se descobriram). Ademais, pelo menos num País, o cantinho à beira-mar plantado, Portugal, os Templários permaneceram, e organizados, apenas com o fácil e lusitano expediente da mudança de nome para Ordem de Cristo, sem necessidade de infiltração ou ocultação - e sem que se tenha gerado uma particular escola iniciática ou um específico repositório de conhecimentos esotéricos, pese embora a muito nossa e sebastiânica tese de que tempo virá em que Portugal salvará o Mundo e gerará o famoso V Império, que tocou mentes e espíritos tão ilustres e admiráveis como os de Fernando Pessoa e Agostinho da Silva.

Avesso que sou a misticismos irrazoáveis (imediatamente a seguir a escrever isto interrogo-me, sem, para já, ter a certeza da resposta, se haverá misticismo razoável...), também rejeitei a tese dos Antigos e secretos Mistérios (secretos apesar de milenarmente transmitidos e de haver inevitáveis traições, possíveis cedências a torturas e mil outras comezinhas realidades que obrigam um espírito racional a concluir que um segredo só se mantém realmente secreto se for conhecido apenas de um - e se este não falar durante o sono...) .

Porém, o estudo que fiz a propósito da Lenda do Ofício alertou-me para algo que anteriormente não tinha pensado: há que ter cuidado com as designações, não tomar, de ânimo leve, uma designação pelo sentido que hoje lhe damos, enfim, devemos procurar buscar mais fundo e com espírito aberto. A Lenda do Ofício ilustra-nos que a designação de Maçonaria também correspondeu a Geometria, pura ou aplicada em Arquitetura, por si ou concretizada em Construção e que, atendendo a este conjunto de significados, tal Lenda ilustra uma verosímil (embora com evidentes erros de anacronismo) linhagem de transmissão dos conhecimentos de Geometria desde a Antiguidade (onde e quando seriam restritos a uns poucos escolhidos...) até às Lojas Operativas medievais.

A mesma abertura de espírito e similar olhar para além das aparências levam-me hoje a admitir que, continuando a ser historicamente correto dizer-se apenas que a Maçonaria especulativa se originou nas Lojas Operativas medievais, os ensinamentos que transmite aos seus Iniciados porventura derivarão, em parte, de uma específica escola de Antigos Mistérios: da Escola Filosófica Pitagórica.

Procurarei nos próximos textos justificar esta minha admissão.

Rui Bandeira

10 abril 2011

Liberdade de expressão



Já na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, no seu art. 11º se reconhece que "A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem;  todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei". Mesmo os direitos fundamentais nem são absolutos nem são ilimitados.

Já o mesmo não se pode dizer do princípio da dignidade da pessoa humana, que é prévio ao estabelecimento dos seus direitos fundamentais. A pessoa humana constitui o valor último, o valor supremo da democracia, na medida em que esta reflete o princípio da prevalência dos direitos do indivíduo sobre os direitos coletivos.

A liberdade de expressão não se sobrepõe à reserva da vida privada, ao bom nome e à reputação, por exemplo. Ninguém pode devassar a intimidade de um terceiro, insultá-lo ou difamá-lo a pretexto de que tem o direito de se manifestar. Pelo contrário, tais condutas são previstas e punidas por lei. Também a segurança nacional e o segredo de estado estabelecem limites à liberdade de expressão. Esta liberdade é, assim, frágil, subalterna e subsidiária de outras que sobre a mesma prevalecem.

É clara e evidente esta proteção do indivíduo face ao abuso da liberdade de expressão de terceiros. Contudo, esta é mais difusa quando o insulto, a calúnia ou o ódio verbal se dirijam não a um indivíduo concreto mas a um grupo ou categoria de pessoas cujo fator unificador seja de caráter religioso, ideológico, rácico, étnico, cultural ou outro, uma vez que esses grupos são, frequentemente, desprovidos de personalidade jurídica.

É inegável que um insulto dirigido ao grupo como um todo acabará por ser sentido por cada um dos seus membros como, pelo menos em certa medida, sendo-lhe pessoalmente dirigido, acabando por o afetar de forma muito individualizada. A identidade da pessoa humana passa também por aqueles com quem se identifica, e qualquer ataque que vise os referenciais culturais, étnicos, religiosos ou outros de cada ser humano irá inevitavelmente repercutir-se sobre este.

Os discursos de incitamento ao ódio visam descriminar, minimizar e estigmatizar cada um dos indivíduos que integram o grupo ou categoria a quem esse ódio se dirige, pretendendo negar a esses indivíduos o estatuto de igualdade com aqueles que os atacam - o que põe em causa a dignidade da pessoa humana no que a estes diz respeito. Como tal, estão proibidos à luz do nosso ordenamento jurídico.

Contudo, quando o discurso não tenha o propósito único de ofender e incitar ao ódio contra certo grupo de pessoas, mas tão somente manifestar uma opinião, debater, informar, discutir ou criticar não deve ser este sujeito a restrições - mesmo quando manifeste posição contrária aos princípios democráticos, ocidentais e humanistas que regem a nossa sociedade - uma vez que a sua proibição nessas condições conformaria "delito de opinião", o que é vedado pela nossa Constituição.

Abre-se aqui uma exceção à exceção: quando o discurso de ódio seja passível de causar tumultos, desacatos ou perturbação da ordem pública, por se antever que do mesmo decorram situações em que se passe das palavras aos atos, ou quando do mesmo decorram irremediáveis prejuízos para a dignidade da pessoa humana, então deve o mesmo ser proibido e punido.

A liberdade de expressão deve servir de vetor de transformação pacífica da sociedade - por alternativa às revoluções - bem como servir, em certa medida, de válvula de escape como alternativa ao confronto físico. A este respeito recordemos Voltaire: "Não concordo com o que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito de o dizeres".

Paulo M.

06 abril 2011

Pedra de Buril


Pedra de Buril é um blogue de temática maçónica mantido por Nuno Raimundo e iniciado em janeiro do corrente ano. Nuno Raimundo assume-se como obreiro da Loja Mestre Affonso Domingues.

Perguntar-se-á - aliás, já lhe foi perguntado, numa "cinzelada" (comentário) do blogue - por que razão optou Nuno Raimundo por iniciar e manter um blogue maçónico, em vez de juntar os seus escritos aos que se publicam no A Partir Pedra. Nuno Raimundo esclarece que encara o seu blogue como um projeto mais pessoal, mais íntimo, portanto diferente, do que o A Partir Pedra. Tem toda a razão e - como ele o assinala, aliás, o tempo mostrará que as caraterísticas de ambos os blogues são diferentes e que, mais do que concorrentes, são complementares.

Mas uma outra razão há para que o Nuno Raimundo não escreva ainda no A Partir Pedra e tenha optado por comunicar a sua vivência e visão de maçom no Pedra de Buril. É que o A Partir Pedra, sendo um blogue escrito por maçons da Loja Mestre Affonso Domingues, é, por opção dos seus administradores, reservado, quanto à publicação de textos na sua área principal, a Mestres Maçons da Loja. Os Aprendizes e Companheiros - ainda sujeitos à regra do silêncio - apenas podem, se quiserem, intervir na caixa de comentários. Nuno Raimundo só daqui a algum tempo terá acesso, como autor, ao espaço principal.

Não se depreenda daqui qualquer desagrado ou discordância com a decisão do Nuno Raimundo em publicar o Pedra de Buril. O silêncio de Aprendizes e Companheiros é, como já neste espaço foi esclarecido, apenas limitado ao espaço e tempo da sessão ritual de Loja, sendo pleno - e encorajado - o seu direito de uso da palavra e da expressão do seu pensamento fora daquele estrito condicionalismo. Aliás, em bom rigor, o A Partir Pedra, não sendo um espaço de sessão ritual da Loja, não tem que necessariamente estar restrito, no seu espaço central, a Mestres da Loja. Esta opção é, por um lado, simbólica e, por outro, decorre de uma razão muito prática: a preservação do próprio obreiro, no período da sua adaptação à Loja. Optámos assim por aguardar que o obreiro esteja já plenamente integrado na Loja, no seu espírito, bem conhecedor dela e do que lá se faz, para lhe facultarmos este instrumento de comunicação para, se assim o quiser (como é evidente, pelo número de autores de textos no A Partir Pedra, muitos não querem...), expressar o seu pensamento. Mas esta opção em nada prejudica, ou inibe, ou impede, qualquer obreiro que ainda não pode aceder ao espaço central do A Partir Pedra de iniciar e manter o seu próprio blogue.

Nuno Raimundo é um ativo blogueiro. Contactei, pela primeira vez com o seu trabalho nesta área ainda ele era Profano. Continuei a seguir os seus textos no blogue coletivo 2711. Agora, já não mais profano, mas maçom, dá-nos a sua visão pessoal da Arte Real através do Pedra de Buril. É interessante verificar o seu percurso e evolução pessoais ao longo do tempo e em virtude da (grande) mudança que constitui a Iniciação! Tempo virá em que o Nuno Raimundo decidirá se privilegia o Pedra de Buril em relação ao A Partir Pedra, se troca aquele por este ou se se dedicará a ambos, selecionando o local de publicação dos seus textos conforme o seu respetivo cariz. Essa decisão será, oportunamente, sua e só sua.

Por agora, o Pedra de Buril é mais um interessante blogue, que recomendamos. O Nuno alia a sua experiência de blogueiro, o seu gosto pela escrita, um certo jeito intimista de transmissão, com o seu percurso e trabalho maçónicos e o resultado é, manifestamente, agradável. Revela, aqui e ali, para o observador mais experiente nestas coisas, um pouco de inexperiência, no que à Maçonaria diz respeito? Claro que sim (por isso mesmo está ainda em silêncio no A Partir Pedra...). É isso mau? Não me parece. Pelo contrário, quer para quem se interessa por Maçonaria, quer para quem gosta de ler o que o Nuno Raimundo escreve, é e será certamente muito interessante espreitar um pouco do produto do seu trabalho nestas lides e surpreender a sua evolução.

Aqui se dá, pois as boas-vindas ao Pedra de Buril e se deixa um conselho: coloquem este espaço na vossa lista de leitura de blogues. Aproveitem enquanto podem! Que - a "ameaça" fica feita! - tempo virá em que o A Partir Pedra recrutará o Nuno e depois... logo se verá!

Rui Bandeira

04 abril 2011

Sei Ruhig!



Estive na Polónia no fim de semana passado, razão por que não escrevi o meu costumeiro artigo semanal. Foi uma visita-relâmpago, com visita a Auschwitz e uma voltinha por Cracóvia para desanuviar o espírito. A fotografia acima foi tirada nas melhores "casernas" onde dormiam os prisioneiros; sim, as melhores, que as piores eram todas de madeira, num local onde a temperatura desce frequentemente abaixo dos -20 ºC no Inverno.

Na parede que se vê, uma ordem - "SEI RUHIG!", ou "Estejam calados!" - chamou-me especialmente a atenção, pois logo me recordou o meu tempo de Aprendiz e Companheiro, em que também tinha que manter silêncio. Porém, logo, horrorizado, afastei a ideia de sequer comparar duas realidades tão díspares. Contudo, voltei à carga, pensando desta vez: "Porque é que me repugna tanto, afinal, comparar estes dois silêncios? É claro que são muito diferentes, mas o que é que os distingue tanto?"

Ali estava eu, embrenhado nestes meus pensamentos, quando ouço de uma das pessoas que me acompanhava uma observação nestas linhas: "O que me faz mais impressão é que eles não tinham para onde fugir, como mudar nada, eram só conduzidos, não tinham escolha nenhuma. Não tinham liberdade nenhuma, nem esperança de a vir a ter."

De facto, não tinham. O seu silêncio - como tudo o resto - era forçado e imposto para seu prejuízo. Já o meu, só era forçado e imposto enquanto eu quisesse ser maçon - coisa a que ninguém me obrigava - e, mesmo assim, tinha um horizonte temporal. Mas, mais do que isso, era-me imposto em meu proveito. Era, assim, uma liberdade condicionada, para a qual eu tinha uma válvula de escape: podia sempre pedir para sair, coisa que ninguém me impediria de fazer.

Eles... pois, também acabavam todos por sair...

Não tenho alento para escrever mais. Deixo-vos a recomendação de que, se nunca o fizeram, procurem na Wikipédia e no YouTube artigos sobre Auschwitz. Há muita controvérsia sobre o tema, mas a Luz surge do confronto dos opostos - e a liberdade só se pode exercer na escolha entre alternativas...


Paulo M.

30 março 2011

O Padrinho (II)


Para além da indispensável função de auxiliador da integração do novel elemento na Loja, o Padrinho deve assumir uma outra função em relação àquele que propôs para integrar a Loja, relacionada com a formação do Aprendiz.

A formação dos Aprendizes decorre sob a direção do 2.º Vigilante, seu responsável. O Padrinho não pode, nem deve, substituir-se-lhe. Mas pode, é é útil que o faça, exercer um precioso papel complementar. Não nos esqueçamos que o 2.º Vigilante tem de coordenar a formação de um conjunto de Aprendizes, com diferentes personalidades, variados percursos de vida, diversas preparações, separados interesses, para além do comum, relativamente à Arte Real, vários tempos de permanência no grau - e, portanto, dissemelhantes estádios de evolução no conhecimento e tratamento dos elementos simbólicos catalisadores da evolução de cada um. O 2.º Vigilante elabora um plano de formação que, necessariamente, é um máximo denominador comum em relação a todo este conjunto de variáveis - e, logo, um programa apenas básico, que carece de ser desenvolvido e completado por cada um dos próprios Aprendizes.

É no auxílio personalizado ao seu afilhado que o Padrinho tem, neste campo, um particularmente útil papel. O seu afilhado tem dificuldades em encontrar bibliografia para estudar qualquer tema? Deve recorrer ao Padrinho. Pelo contrário, o Aprendiz depara-se com uma extensa lista de elementos bibliográficos, com muito lixo e muita esotérico-birutice misturados com elementos relevantes? Cabe ao Padrinho guiar o seu afilhado, apontar-lhe o que é válido, adverti-lo em relação ao que não tem valor ou interesse. O Aprendiz está num estádio mais avançado que o plano de formação geral proporcionado? Incumbe ao Padrinho complementar essa formação genérica, apontando-lhe pistas de investigação ou meditação, exortando-o a ir mais além ou estudar com maior profundidade e a registar o resultado do seu labor, e seguidamente, criticando construtivamente esse resultado, iluminar insuficiências, expor contradições, indicar caminhos de exploração alternativos, enfim, corresponder ao interesse e capacidade do Aprendiz e ajudar a que seja frutífero um tempo que, sem essa ajuda, seria sentido como uma desilusão. Pelo contrário, o Aprendiz tem dificuldade em entender a simbologia, em tratar determinado tema, em assimilar certo ensinamento? O Padrinho deve ser o auxiliar que ajuda à ultrapassagem da situação.

Em matéria de formação do Aprendiz, o Padrinho deve ser um verdadeiro tutor, no sentido (em inglês) do termo que lhe é dado pelas Universidades anglossaxónicas: um guia, um auxiliar, um apontador de caminhos, um crítico, um gestor e disciplinador do processo de aquisição de conhecimentos.

Mas - atenção! - nunca um substituto do responsável da formação e nunca um substituto do próprio Aprendiz. O trabalho que o Aprendiz deve fazer deve ser feito por ele - não pelo Padrinho. "Fazer a papinha toda" ao Aprendiz é o mesmo que não o formar, método quase assegurado de falhar a sua formação. O tutor (em português) da árvore auxilia-a, enquanto pequena e frágil, a manter-se direita e a resistir ao vento, proporcionando-lhe tempo e condições para que cresça, robusteça, se fortaleça - não é seu objetivo que cresça em vez dela...

Este papel do Padrinho na formação do seu afilhado termina ou, pelo menos, atenua-se muito sensivelmente, quando ele finda o seu período de aprendizagem e é passado a Companheiro. Aí o tempo é já outro, a independência do obreiro cresce, em conjunção com a sua aumentada capacidade, o seu desejo de começar a trilhar por si os seus próprios caminhos emerge. Cabe ao Padrinho então afastar-se e observar à distância, só intervindo em duas situações: ou perante pedido expresso do afilhado ou se verificar evidente e grave desvio de percurso, que levará o obreiro a falhar a sua caminhada, em intervenção de urgência para tentar voltar a pôr nos carris o que porventura tenha descarrilado. Mas, na maior parte das situações, quando o seu afilhado passa a Companheiro, o Padrinho passa a ser apenas um atento e disponível observador do seu afilhado, na caminhada que o levará, no passo seguinte, à plena igualdade de ambos.

Rui Bandeira

23 março 2011

O Padrinho


Em Maçonaria, designa-se por Padrinho o primeiro proponente da candidatura de um profano à iniciação.

Com esse ato, o primeiro signatário dessa candidatura afiança perante a Loja a boa fé do candidato, o seu reto propósito, a posse das características e da maturidade indispensáveis ao profícuo trabalho de desenvolvimento e aperfeiçoamento pessoal que é o objetivo primeiro de cada maçom regular e a capacidade de harmoniosa integração no grupo, na Loja, do candidato proposto.

Com efeito, não deve ser admitido às provas da Iniciação quem não detenha a necessária maturidade para efetuar o trabalho de um maçom, quem não possua características compatíveis com o trabalho maçónico, quem, por índole ou feitio, não seja capaz de harmoniosamente se integrar num grupo de desconhecidos que pré-existe em relação à sua entrada, existirá com a sua presença e permanecerá após a sua partida. E é claro que a boa fé de quem se apresenta é absolutamente essencial...

Só pode ser padrinho de um candidato um Mestre Maçom, pois é indispensável a realização do percurso de aprendizagem, a interiorização do que é e como trabalha a Maçonaria, de como é a Loja, das virtudes, defeitos e insuficiências do grupo, enfim, o conhecimento do que é a Maçonaria e a Loja, para, com o mínimo de erro, poder aferir da compatibilidade entre o candidato e a Instituição, a Loja e os seus obreiros.

À Maçonaria não interesa iniciar por iniciar. Não se trabalha para números, para "crescimento". À Maçonaria interessa acolher homens bons que querem e podem ser homens melhores. Só isto - e muito é! À Maçonaria não interessa perder tempo, trabalho e energias com quem não quer, ou não pode, efetuar o persistente e solitário e apenas interiormente gratificante trabalho do aperfeiçoamento pessoal, moral e espiritual. Nem a Maçonaria tem qualquer gosto em que alguém perca seus tempo, trabalho e energias entrando para uma Instituição que verdadeiramente não lhe interessa.

Por isso procura minimizar os (inevitáveis) erros mediante um exigente, ponderado (e demorado...) processo de admissão, que nunca se inicia sem a indispensável caução de um Mestre proponente, acompanhada de idêntica ação de um outro Mestre.

O Padrinho deve, assim, inevitavelmente, conhecer pessoalmente o candidato, com a profundidade necessária para poder fazer o juízo de prognose favorável à sua integração que o habilita a caucionar o pedido de adesão.

Caucionada que esteja a candidatura, o Padrinho retira-se de cena durante o decurso do processo de análise da mesma. Não tem nada mais que dizer. Cabe à Loja assegurar-se de que o seu juízo está correto, que não foi perturbado por amizade, parentesco, consideração ou dependência que o tenham induzido em erro.

Mas, uma vez decidida a admissão do candidato, então o Padrinho começa verdadeiramente a exercer a sua função. O seu papel não se esgotou na caução dada. Só após esta decisão verdadeiramente começa! O Padrinho é o elo de ligação entre a Loja e aquele que um dia, estando de fora (Profano), nela quis entrar (Candidato) e nela foi admitido (Maçom Iniciado; Aprendiz). Como tal, é o primeiro responsável por tudo o que respeita à integração deste novo elemento no grupo. Desde logo por algo tão básico como caber-lhe a ele informar o Candidato das obrigações financeiras que a sua Iniciação implica, providenciar para que, no dia da sua Iniciação o Candidato saiba onde, quando e como se deve apresentar e conduzi-lo ao local físico onde a Cerimónia terá lugar. Mas também, consumada a Iniciação, pelo longo e complexo processo de integração do novo elemento no grupo.

Muitas vezes, o Padrinho é a única cara na Loja que o novo Aprendiz reconhece, o único que não lhe é completamente estranho. Quando assim é, é o padrinho o único ponto de apoio de que o novo elemento dispõe, até que, a pouco e pouco, às vezes mais lentamente, outras com maior facilidade, consoante a personalidade de cada um, as relações pessoais se vão estabelecendo com os demais elementos do grupo e daí evoluindo até onde as compatibilidades e empatias estabelecidas com cada um permitam evoluir.

Este processo de integração pode, por vezes, ser mais difícil ou demorado do que o antecipado e, até que esteja ultimado, o seu sucesso em muito depende do Padrinho. Este tem que elucidar o novo Aprendiz das regras (muitas não escritas e algumas não facilmente apreensíveis) de funcionamento, de cooperação, de relacionamento, existentes no grupo (e cada Loja é um grupo diferente, com uma história, um passado, uma evolução, diferentes, com dinâmicas de grupo próprias), para que as conheça e nelas se integre harmoniosamente.

Mas também deve intermediar, prevenir e colmatar possíveis incompreensões ou desagrados do grupo ou de algum elemento do grupo perante atitudes ou características do novo Aprendiz. A Maçonaria não é um grupo de amorfos, privilegia gente assertiva, livre pensadora, que busca o seu lugar e define e trabalha e atinge objetivos. É natural que um novo elemento queira mostrar a sua valia ao grupo, encontrar nele o seu lugar. Muitas vezes, no seu afã de tal, esquece que há regras e modos e meios que ainda não aprendeu e comete erros, às vezes excessos, outras vezes omissões, que podem a um ou outro desagradar. Há que compatibilizar, esclarecer, moderar, ajudar a que o espaço a que o novo elemento tem direito seja encontrado, de forma a que todos beneficiem.

Esta tarefa - quase que diplomática - de garante da boa integração do novo elemento no grupo e do bom acolhimento do grupo ao novo elemento incumbe, em primeira linha, ao Padrinho.

É dever do Padrinho assegurá-la, sob pena de a integração falhar, de um bom elemento se perder, de o grupo e o indivíduo gastarem tempo e energias em vão.

Costumam os maçons dizer que cada candidato iniciado é um Venerável Mestre (e um Grão-Mestre...) em potência. Para garantir que essa potencialidade possa, a seu tempo, evoluir para a possibilidade, depois a probabilidade, finalmente a realidade, é indispensável que o Padrinho exerça efetivamente a sua função e não se limite a rabiscar displicentemente a sua assinatura num formulário de candidatura.

Rui Bandeira

22 março 2011

A Maçonaria "restritiva e selectiva"



Li recentemente o seguinte comentário: «é por certo o grande mal da Maçonaria, ser tão restritiva e selectiva na escolha dos seus “Irmãos”». Este comentário traduz bem a ideia muito difundida de que a Maçonaria é só para alguns muito poucos, que está cheia de "personalidades" que não se misturam com o comum dos mortais, e que os critérios de admissão passam, essencialmente, pelo posicionamento económico, social ou político do candidato. Não é verdade; a Maçonaria não é isso.

Por outro lado, não poderia dizer que a Maçonaria não seleciona os candidatos, não exerce qualquer controlo sobre as admissões, nem coloca às mesmas qualquer obstáculo. Claro que exerce controlo, claro que seleciona, claro que coloca obstáculos. Os critérios de admissão, porém, são públicos e ao alcance de todos quantos pretendam, eventualmente, juntar-se à nossa Ordem.

O principal critério advém do cumprimento dos Landmarks da Maçonaria, que ditam muitas das restrições à admissão, como sendo a exclusividade de membros masculinos, a obrigatoriedade da crença no Grande Arquiteto Do Universo, ou a de dever ser o candidato uma pessoa honrada e de boa reputação. Os Landmarks são, como disse, públicos, apesar de não serem universais - há Obediências que aceitam uns e rejeitam outros.

Outros critérios de seleção advêm da própria natureza e propósito da Maçonaria, que se aprende na Instrução de Aprendiz:

- O que é um Maçon?
- É um homem nascido livre e de bons costumes, igualmente amigo do rico e do pobre, desde que sejam pessoas de bem.
- Que significa nascer livre?
- O homem que nasceu livre é aquele que, tendo morrido para os preconceitos comuns, renasceu para a nova vida que a iniciação confere.
- Quais são os deveres de um Maçon?
- Evitar o vício e praticar a virtude.
- Como deve um Maçon praticar a virtude?
- Colocando acima de tudo a justiça e a verdade.

Só alguém que se identifique com estes preceitos pode ser admitido na Maçonaria. Senão, não se iria sentir enquadrado - e não só perderia o seu tempo, como faria os demais perder o deles. Porque a adesão à Maçonaria implica um esforço e empenho não só pessoais como de toda a Loja que admite o neófito, esforço esse que se prolonga por vários anos, não é de ânimo leve que se aceita qualquer um. Os erros de casting saem caros a todos. Por isso, a imagem que se passa para fora deve ser essa mesma: a de que ser aceite maçon não é algo que possa ou deva ser feito com leviandade.

Não creio que seja bom, contudo, cair-se no extremo oposto, propalando-se uma imagem de tamanha exigência que leve a que praticamente ninguém sinta - pelo menos até que alguém lho pergunte - que poderá, querendo, pertencer a esta grande Fraternidade. Receio que seja este o maior obstáculo a que a Maçonaria seja e se torne mais numerosa.

Deveras, quantos não sentirão que não encontram quem partilhe dos princípios por que regem a sua vida - que, por acaso, até podem ser os princípios de tolerância, diversidade, paz e fraternidade que a Maçonaria defende e acarinha? Quantos não descobriram já, até, que se identificam com os ideais da Maçonaria, mas acreditam que a Maçonaria é só para "VIPs", e que nunca lhes abriria a porta?

A esses só posso dizer que ainda hoje se aplica um princípio simples e antigo: quem quer entrar tem que começar por bater à porta. Pode ser que tenha uma surpresa e - certamente ao fim de algum tempo - em vez de um polegar para baixo, receba um caloroso abraço de boas vindas...

Paulo M.

P.S.: Obrigado, M.A., por me dar tema para mais um texto; e sim, sei bem que o excerto que reproduzi acima não traduz a ideia do texto em que se insere...

16 março 2011

Lição de um Mestre ao seu Aprendiz - IV


Meu Irmão:

Antes de tudo e acima de tudo, quero expressar-te, em nome de toda a Loja o júbilo que aquece nossos corações. Enfim, estás entre nós! Mas, meu Irmão, o júbilo não brota diretamente do facto de estares entre nós. Resulta principalmente de estar entre nós alguém que foi por nós reconhecido como um homem bom. Mas, meu Irmão, nota que esse júbilo não resulta apenas de estar entre nós um homem bom. Nasce principalmente de esse homem bom poder tornar-se e ter a vontade de se tornar um homem melhor. E decorre ainda de termos a esperança de que te podemos auxiliar nessa demanda!

O caminho que hoje encetas é um caminho novo e diferente de tudo o que fizeste na vida até agora. Tens à tua disposição um método – o método maçónico de aperfeiçoamento através do estudo dos símbolos e aplicação dos conhecimentos com esse estudo obtido. Não terás, porém, aulas. Terás uma panóplia de símbolos perante ti, para que os descubras e trabalhes por ti, terás um guia para começares a fazê-lo, terás à disposição das tuas perguntas, disponíveis para ajudar à remoção das tuas dúvidas, dezenas de Irmãos, que fizeram e continuam a fazer o trabalho que ora vais encetar.

A Maçonaria é uma instituição que estimula e favorece o mais belo dos egoísmos: o egoísmo de querer ser melhor. Melhor homem, melhor crente, melhor familiar, melhor profissional. A Maçonaria incessantemente te incita à busca da excelência, em todos os campos da tua vida. É esse o grande múnus da Maçonaria. O caminho da excelência é talvez o mais solitário dos caminhos. A Maçonaria consegue realizar o aparente paradoxo de proporcionar que esse solitário percurso seja efetuado com a companhia de teus Irmãos. Todos o fazem em conjunto – mas cada um o fará afinal só por si!

Esta noite de emoções foi-te propositadamente proporcionada. Não te terás ainda dado conta, mas hoje muitas lições recebeste. E recebeste-as da mais eficaz forma possível: não apenas ouvindo passivamente, mas vivendo o momento, sentindo, estando inserido na ação. A seu tempo apreenderás que não é só a tua inteligência intelectual que te permite aprender. Também a tua inteligência emocional to possibilita e quiçá de uma forma bem mais profunda e eficaz. Ao seres hoje o centro, o destinatário, o ator principal e o principal espetador da tua Iniciação, foi-te estimulada a Inteligência Emocional que o homem moderno desaprendeu de cuidar – mas que é a chave para a descoberta individual da resposta à grande questão que a todos, mais cedo ou mais tarde, assalta: qual o sentido da Vida, qual o significado da minha existência? Essa resposta não ta daremos nós. A essa resposta chegarás tu quando estiveres preparado para a ela chegares. Através da tua inteligência intelectual, mas também e indispensavelmente através da tua inteligência emocional.

Nos tempos mais próximos – que durarão algum tempo, que o Tempo também é construtor! – observa, lê, raciocina, impregna-te de ambientes e estados de espírito. Interroga-te e interroga. Responde, emenda as tuas respostas, recomeça e chega a nova conclusão, que descobrirás ser afinal uma nova pergunta. Mas sobretudo pensa, reflete, medita. Arranja maneira de reservar alguns minutos de cada um dos teus dias para o fazeres. Será através desse momentos de pensamento, de reflexão, de meditação, que descobrirás as perguntas que verdadeiramente te interessam e as respostas que é possível dar-lhes. Todos os demais o mesmo fazem. Este é o espaço da partilha do resultado desse trabalho. E descobrirás que, ao assim fazeres, cada vez mais te é agradável fazê-lo, que cada vez maior proveito tirarás. Até que um dia assim farás sem esforço e naturalmente. Nesse dia, serás verdadeiramente Mestre. Mestre daquilo que importa: Mestre de ti próprio!

Bem-vindo, meu Irmão. O teu trabalho inicia-se a partir de agora. O limite está para além do horizonte. Descobre-o!

Rui Bandeira

14 março 2011

A recomendação


Quem de nós nunca ficou subitamente sem empregada doméstica e precisou de encontrar outra com rapidez? Nestas circunstâncias o mais comum é pegar-se no telefone e telefonar a amigos e conhecidos, a ver se alguém conhece alguém de confiança que esteja disponível... Só esgotados os contactos pessoais - e os amigos dos amigos - é que se recorre, a contragosto, a anúncios, centros de emprego ou se contrata uma empresa que trate do recrutamento.

O que fazemos na nossa casa faz-se, do mesmo modo, nas empresas. Quando alguém, numa empresa, precisa de reforçar uma equipa ou de recrutar um profissional, é comum perguntar entre os seus conhecidos: "Olha, conheces alguém com este perfil assim-assim, e que me recomendes?" Aqueles a quem se recorre são, sempre, pessoas em cujos critérios se deposita confiança. Assim, ter bons contactos, conhecer pessoas capazes e competentes e saber fazer confluir as necessidades complementares de uns e outros é algo que a todos beneficia.

Começa, por isso, a ser frequente as empresas retribuírem - até pecuniariamente - aos seus funcionários que indiquem pessoas que venham a revelar-se bons quadros. Afinal, se contratassem para o efeito uma empresa de recrutamento, teriam sempre que lhe pagar... Beneficiam os que procuram quem saiba cumprir certa função - pois obterão com maior probabilidade a indicação de um profissional à altura - e estes últimos, evidentemente, pois terão mais facilidade em se moverem de uma posição para outra na sua carreira.

A expetativa de quem contrata é a de que, por reconhecer o mérito e o bom juízo da pessoa que recomenda, haja maior probabilidade de se estar a contratar uma pessoa mais próxima do perfil ideal pretendido, quer porque quem indica este conheça a realidade interna da empresa, quer porque tenha um conhecimento privilegiado da pessoa recomendada que nunca um recrutador profissional conseguiria obter no curto tempo de que dispõe.

Mas há mais formas de recomendação para além da pessoal. Os membros de uma associação profissional, por exemplo, podem ter um placard de anúncios onde refiram a sua disponibilidade - ou onde publicitem o facto de procurarem quem saiba desempenhar certa função. Quem dia uma associação profissional diz uma igreja, uma coletividade, ou qualquer outro conjunto de pessoas cuja opinião, critério e juízo se tenha em melhor conta do que a do cidadão médio anónimo.

Por esta razão é, para voltar às empregadas domésticas, frequente serem estas indicadas por alguém da igreja a que pertençam, um outro pai da escola onde tenham os filhos, ou por outra pessoa do Atelier de Ponto de Cruz que frequentem. Mas alguém acha credível que uma pessoa contrate outra apenas porque faz ponto de cruz com ela?! Claro que não. Será, certamente, porque durante essa atividade se apercebeu das suas qualidades e da sua habilidade.

Claro que há casos de favorecimento abusivo. Quem não ouviu já falar de pessoas que chegam a certas posições por causa da sua cor política, laços de amizade ou parentesco, ou... "afinidade" com o patrão, que gosta especialmente de ruivas? Esses casos são falados por uma razão simples: as pessoas em causa nunca ocupariam esses lugares se não fosse o tal "laço".

Mas não é desses casos que falo. Falo de recomendações como as que se fazem quando se indica uma oficina de confiança a um amigo, um advogado a um colega, ou um fornecedor a um parceiro de negócios - em que se veicula informação sobre o mérito objetivo de certa pessoa ou empresa.

De facto, se um amigo me disser: "Olha, sei que precisas de um contabilista; conheço um fantástico", e depois eu vir os honorários dele e os considerar exagerados, não me sinto na obrigação de o contratar - o que não impedirá que, em igualdade de circunstâncias, se tiver que escolher entre dois e um vier recomendado por um conhecido, eu não hesite. Não é o que fazemos todos?! E ninguém o estranha, nem condena, nem vem nos jornais.

Por que será, então, que se estranha quando vem a lume que entre os maçons suceda precisamente o mesmo?! Mas é claro que, se preciso de um serviço, poderei perguntar aos meus Irmãos se conhecem alguém que o preste com qualidade - pois confio na sua integridade e na qualidade do seu conselho. E se um Irmão está disponível para prestar um trabalho de que eu preciso, e sei que ele é consciencioso, bom profissional e o preço do seu trabalho é justo, é natural que o contrate.

Será isso assim tão estranho?!

Paulo M.

09 março 2011

Lição de um Mestre ao seu Aprendiz - III


(Nota: as lições anteriormente publicadas neste blogue foram escritas por Jean-Pierre Grassi e estão aqui e aqui)

Meu Irmão:

A melhor forma de manifestar os calorosos sentimentos fraternos de toda esta Respeitável Loja para contigo é sublinhar que não foste simplesmente aceite aqui, não foste simplesmente admitido à Iniciação, foste verdadeiramente cooptado para este grupo, para esta Loja.

Cada vez que alguém entra ou sai da Loja, esta modifica-se, pois a Loja é o conjunto de todos os seus obreiros, a soma de todas as suas capacidades, a multiplicação de todas as suas potencialidades, a divisão por todos dos pesares de cada um, enfim, a Loja é um conjunto vivo cujas células são os seus obreiros. E se, quando um obreiro parte, a Loja pouco perde, perde apenas as suas potencialidades futuras, conservando tudo o que esse obreiro, enquanto entre nós esteve aqui deixou, aqui ensinou, connosco partilhou, a cada um de nós influenciou, sempre que um novo elemento é cooptado pelos que já a integram para também nela ingressar, muito ela ganha, muito ela se transfigura, porque os novos, aprendendo, integrando-se, partilhando, novas capacidades, outros ensinamentos, trazem e juntam.

Meu Irmão: a melhor forma de demonstrar os calorosos sentimentos fraternos de toda esta Respeitável Loja para contigo é deixar claro que a Loja em ti, na tua entrada, na tua junção a nós, deposita o que de mais precioso tem, a sua própria identidade, confiante e certa que não só não a irás degradar, como serás fator do seu aprimoramento.

Bem-vindo, pois, meu Irmão. Estamos certos que honrarás a confiança que em ti depositámos. Procuraremos corresponder à esperança que em nós tens.

Quanto à sucinta explicação do sentido e finalidade da Arte Real, uma frase chega: é um meio, um método, um caminho, um ambiente, para o teu aperfeiçoamento pessoal, moral, cívico e espiritual. Os primeiros tempos são de silêncio e de observação. Olha, vê, ouve, sobretudo medita, relaciona, interpreta. Através de símbolos, de parábolas, de linguagem figurada, nada te será ensinado, mas muito aprenderás, pela melhor forma de aprender que existe: por ti mesmo, em função da tua própria experiência. Este trabalho só termina à meia-noite. Fá-lo bem, para que, chegada essa hora, estejas satisfeito contigo próprio.

Começa por olhar em volta e atentar nos pormenores. Todos têm significado. Procura entendê-los. Não tenhas receio de perguntar e, sobretudo, não te esqueças nunca que as melhores respostas que irás receber serão aquelas que te não satisfizerem e te levarão a procurar mais longe ou diferentemente.

Lê muito atentamente o ritual e catecismo que hoje recebeste. Fá-lo sem pressas, mas frequente e persistentemente. Cada frase, bem meditada, é fonte de preciosos ensinamentos. Sei-o bem: há mais de vinte anos que faço o mesmo e o que aprendi é uma ínfima parte do que ali ainda tenho para aprender.

Sê pois bem-vindo, meu Irmão, e hoje festeja. O teu trabalho podes começá-lo amanhã...

Rui Bandeira

06 março 2011

O conceito maçónico de "Grande Arquiteto Do Universo" - Epílogo


Depois de tudo o que foi dito, e de se entender como o conceito de Grande Arquiteto do Universo se foi progressivamente alargando, resta a questão final: porque é que a Maçonaria Regular insiste em exigir dos seus membros esta crença, quando não a define cabalmente? Porque é que não deixa, de uma vez por todas, de estabelecer essa restrição? Qual a razão, enfim, por detrás da obrigatoriedade da crença no Grande Arquiteto do Universo?

Revisitemos rapidamente a evolução do conceito: do Deus de várias denominações cristãs, passou a significar o Deus das religiões "do Livro" (cristianismo, islão e judaísmo); daí alargou-se a qualquer conceito equivalente, fosse de que religião fosse - ou mesmo de uma crença sem religião nenhuma. Continua, todavia, a insistir-se que o maçon tem que ter fé - seja lá no que for. Porquê?

Por mais diferentes que sejam as suas religiões, duas pessoas que creiam que a existência não é "só isto", só este deambular por um mundo condenado a esvair-se de novo no pó das estrelas, conseguirão encontrar pontos comuns que não terão nunca com um ateu. Sob formas distintas, partilharão do conceito de que a existência tem algum propósito, que não é indiferente a forma como levamos a nossa vida, e que o Bem é um valor e o Mal deve ser evitado.

Não é o ser ou não ateu que determina se uma pessoa é "boa" ou "má". Muitos ateus são excelentes pessoas, e muitos crentes são execráveis simulacros de ser humano. Contudo, há uma certa visão do mundo, a valorização - ou não - de certos pormenores, a prevalência ou prioridade que se dá a certos princípios sobre outros, que separa incomensuravelmente um crente de um ateu, de uma forma que não separa um judeu de um muçulmano, um evangélico de um animista, ou um budista de um sikh. De uma forma ou de outra, todos - com exceção do ateu - crêem na continuidade da vida depois da morte, e que o Bem que se faça será recompensado.

As prioridades são, por isso, forçosamente diferentes, bem como os princípios prevalecentes. Alguém que não acredite num futuro para além desta existência dificilmente se poderá conformar com a privação, o sofrimento ou o despojamento - mesmo que voluntários - em nome de que se estará a "fazer o Bem", e que este será, mais tarde, adequadamente recompensado. "E de que te serve isso?" - perguntarão. De facto, a partir de certo ponto, o fosso é inultrapassável - as diferenças são profundas demais. Ciente desse fosso, a Maçonaria Regular mantém como Landmark a crença no Grande Arquiteto de Universo, e fá-lo a meu ver por três razões distintas. 

Em primeiro lugar, por uma questão formal: os Landmarks são considerados algo de inamovível que ninguém tem a legitimidade de alterar. Alterar a interpretação de um Landmark - como foi feito ao alargar-se o conceito de Grande Arquiteto de Universo de modo a torná-lo mais inclusivo - é uma coisa; outra completamente distinta seria eliminar de todo o Landmark. Os Landmarks são, literalmente, o que marca as extremas dos terrenos; por analogia, são o que marca os limites da Maçonaria Regular. Fora destes, ou não é regular, ou não é, de todo, Maçonaria.

Em segundo lugar, porque não há necessidade: esse foi, precisamente, o caminho tomado pela Maçonaria Liberal. Esta constitui em si mesma um diferente entendimento do que é a Maçonaria - com claras diferenças face à Maçonaria Regular - como inevitável reflexo de princípios distintos, prioridades distintas e, como consequência, um ethos e uma praxis algo diferentes. A existência destas várias correntes na Maçonaria tem a virtude de permitir que uma maior diversidade de pessoas possa encontrar o seu lugar na Maçonaria se assim o desejar.

Em terceiro e último lugar, aprende-se na Maçonaria que a vida é um caminho solitário que se faz acompanhado. Solitário porque estabelecido por cada um no exercício da sua liberdade, e forçosamente diferente dos demais porque todos somos diferentes; mas acompanhado porque os Irmãos estão sempre a curta distância, disponíveis para dividir connosco as alegrias e as tristezas que o caminho nos traz, e para partilhar os ensinamentos advindos de tais situações. É, por isso, mais proveitoso, mais frutuoso, que cada um, ao aconselhar-se junto dos seus Irmãos, receba os seus conselhos na certeza de que os princípios que lhes estão subjacentes são tão próximos quanto possível daqueles que regem a sua própria existência.

Paulo M.

02 março 2011

Origem e primórdios do Rito Escocês Antigo e Aceite - Conclusão


Dedicar sete textos (com este, oito) à origem e primórdios do Rito Escocês Antigo e Aceite para quê?

Em primeiro lugar, para se saber. Conhecer o passado, visitar a História, habilita-nos a compreender o presente, a enquadrar o que vemos, o que vivemos, o que fazemos. Saber como base para refletir, para perceber, para analisar, para inferir. Não podemos planear o futuro, não conseguimos atuar eficazmente no presente, se o nosso planeamento, a nossa atuação forem deixadas ao mero acaso e sabor da inspiração, do desejo, da impressão. Conhecer o passado, saber a origem das coisas, é um lastro indispensável para nos equilibrar nas nossas ações e um auxiliar precioso para a nossa preparação do futuro. O passado é o chão onde nos equilibramos hoje e que nos proporciona a base para o impulso para o amanhã.

Em segundo lugar, para compreender. Compreender que o Rito Escocês Antigo e Aceite não resulta de nenhuma revelação divina, que foi criado, que, mais do que isso, foi fabricado, trabalhado, aperfeiçoado, fixado, por homens. Homens como nós, de carne e osso e sangue e pele e cérebro e emoções. Compreender que o Rito Escocês Antigo e Aceite, tal como hoje o conhecemos resulta de uma evolução. Compreender que essa evolução inclui uma mescla de acasos, momentos-chave, resultados inesperados, muito trabalho e idealismo, também algumas querelas. Compreender que resulta, afinal, daquilo que existe de mais precioso: a Vida! A Vida, com as suas voltas, reviravoltas, momentos fortuitos, trabalhos preparados, acertos e desacertos. Compreender que o Rito Escocês Antigo e Aceite que hoje praticamos, sendo uma obra humana e o resultado de uma longa e por vezes tumultuosa evolução, não é nada de sagrado nem de intocável, mas é algo cuja essência e forma e lição devemos respeitar. Que é o produto de muito trabalho, de muitos saberes, de muita motivação. Que, não sendo intocável nem imutável, não é para ser mudado de ânimo leve, ao sabor de uma qualquer inspiração (por muito brilhante que ela pareça), pelo acaso do acumular de más execuções, pela prosápia e negligência primas da ignorância e parentes do desleixo. Compreender que o rito que hoje e aqui praticamos é o resultado de intenso trabalho, de longa, lenta e sólida evolução, de subtil acomodação às idiossincracias de cada povo, de cada região. Compreender que há diferenças entre o que fazemos hoje e o que se fazia há cem anos, que há dissemelhanças entre o que se faz aqui e o que se pratica acolá, mas que essencialmente se faz hoje a mesma coisa que se fazia ontem e que se pratica nesta banda o mesmo que na banda de lá se faz. Compreender que as próprias pequenas diferenças fazem parte do todo. Compreender que o rito é um instrumento, uma das ferramentas que os maçons usam para o seu aperfeiçoamento e como tal deve ser entendido e usado e praticado e que as evoluções havidas, as diferenças geográficas notadas, derivam desse mesmo uso como ferramenta.

Finalmente, apreciar. Apreciar como uma obra humana resultado de mil acasos pode ser tão eficazmente bela, tão diretamente impressiva. Apreciar como muitos ontem trabalharam para nos proporcionar hoje um conjunto de mensagens que apelam ao mais fundo do que de bom há em nós e ajudam a fortalecer o nosso lado positivo e a dominar o negativo. Apreciar a execução hoje essencialmente do mesmo que se executa há mais de duzentos anos, aqui e um pouco por todo o mundo, o mesmo apesar das pequenas diferenças, o mesmo porque existem pequenas diferenças.

O Rito Escocês Antigo e Aceite é apenas um dos ritos da Maçonaria. Como os outros, é, repito, essencialmente uma ferramenta que os maçons usam no seu aperfeiçoamento. Vale a pena, acho eu, saber, compreender e apreciar o processo como nasceu e se implantou e se desenvolveu até ao que encontramos aqui e agora.

Rui Bandeira

28 fevereiro 2011

O conceito maçónico de "Grande Arquiteto Do Universo" - III



São conhecidas as raízes cristãs da Maçonaria, e como a partir destas a Maçonaria foi, progressivamente, acomodando outras crenças, até se chegar à situação atual, em que a Maçonaria se manifesta e se vive, neste aspeto, de formas muito diversas. Podemos encontrar, assim, desde Obediências estritamente cristãs - como é o caso da Maçonaria Regular na Suécia - até Obediências que prescindem de todo do conceito de "Grande Arquiteto do Universo" - como acontece com a Maçonaria Liberal.

As linguagens da lógica e da matemática permitem-nos estabelecer conceitos inequívocos com fronteiras precisas, de que decorrem conclusões claras e incontroversas; contudo, o conceito de "Grande Arquiteto do Universo" não é um desses conceitos passíveis de ser espartilhado dessa forma. É, antes, com contínuo difuso e vápido como o nevoeiro, que de longe parece sólido e opaco mas se nos vai furtando por detrás de uma progressiva transparência e incorporeidade à medida que dele nos tentamos abeirar.

Não creio que possamos, por isso, dizer sem medo de errar que o conceito de GADU vá daqui até ali, e que esta interpretação do mesmo esteja "de dentro" e aquela "de fora". Onde houver a afirmação de que "sim, creio", mesmo quando se siga de um "mas", devemos admitir que o conceito se alargue um pouco, mesmo correndo-se o risco de que, qual diluição homeopática, pouco ou nada reste no fim daquilo que se pretendia garantir. Afinal, quem somos nós para dizer "a fronteira é aqui"?

E para terminar este tema, trago-vos as palavras de Christopher Haffner, no seu livro "Workman Unashamed: The Testimony of a Christian Freemason":

"Agora imagina-me em Loja com a minha cabeça curvada em oração entre o Irmão Mohammed Bokhary e o Irmão Arjun Melwani. Nenhum deles entende o Grande Arquiteto do Universo como sendo a Santíssima Trindade. Para o Irmão Bokhary Ele revelou-se como Allah; para o Irmão Melwani Ele é provavelmente entendido como Vishnu. Uma vez que eu creio que há apenas um Deus, vejo-me confrontado com três possibilidades:
- Eles estão a rezar ao demónio enquanto eu estou a rezar a Deus.
- Eles estão a rezar a nada, pois os seus deuses não existem.
- Eles estão a rezar ao mesmo Deus que eu; todavia, o seu entendimento da Sua natureza é parcialmente incompleto (como de resto é o meu: 1 Cor. 13:12)
É sem hesitação que aceito a terceira possibilidade."

Atrevo-me a ir mais longe: mesmo se, chegado o fim do caminho, nada haja afinal no alto da Montanha, não poderia ter feito melhor viagem do que a que tenho feito na companhia dos Meus Queridos Irmãos.

Paulo M.

23 fevereiro 2011

Origem e primórdios do Rito Escocês Antigo e Aceite - de 1805 em diante

Digo frequentemente que os maçons não são perfeitos e sabem-no: por isso buscam aperfeiçoar-se. A querela que levou à rutura do acordo entre o Supremo Conselho do Rito Escocês Antigo e Aceite e o Grande Oriente de França, referido no texto anterior, é mais uma ilustração deste meu entendimento. A rutura teve uma razão tão mal amanhada que, ou foi resultado de uma muito pouco inteligente falta de tolerância e de paciência, ou foi mero pretexto para encobrir as verdadeiras razões desta - talvez mesquinhas lutas de ilusório poder.

Recorde-se que, até à celebração do acordo com o Supremo Conselho do Rito Escocês Antigo e Aceite, o Grande Oriente de França apenas praticava o Rito Francês, semelhante ao rito praticado pela Grande Loja dos Modernos. Com o acordo, o GOF passava a praticar também o Rito Escocês Antigo e Aceite, inspirado no rito praticado pela Grande Loja dos Antigos.

Mas as instalações onde o GOF reunia estavam preparadas para o Rito Francês. Era normal. Seria também natural que demorasse algum tempo até estarem disponíveis templos especificamente preparados para o Rito Escocês Antigo e Aceite. E seria logicamente admissível que, até lá, o trabalho no REAA se fizesse nas instalações disponíveis. E era razoável que, assim sendo, houvesse as necessárias adaptações na prática do rito em função das instalações disponíveis.

Porém, logo em 1805 o Supremo Conselho declarou que o GOF tinha violado o acordado pela prática do REAA nessas circunstâncias e os seus membros retiraram-se do GOF, passaram a trabalhar o rito sozinhos e reativaram a Grande Loja Geral Escocesa, para trabalhar os três primeiros graus do rito. Depararam-se, porém, com um problema: a falta de quadros suficientes para manter o rito em funcionamento, atento o interesse que despertara. Tentaram, sem grande êxito, aliciar Oficiais do GOF para dirigirem os Altos Graus do rito.

Entretanto, o GOF reagiu lutando contra as tentativas de afirmação e implantação do REAA sob os auspícios do Supremo Conselho e da Grande Loja Geral Escocesa.

Em menos de um ano estragou-se tudo o que se conseguira em 1804. Em menos de dez anos, o REAA praticamente desapareceu de França, a Grande Loja Geral Escocesa desvaneceu-se na irrelevância e o Supremo Conselho Francês, continuando a dar mostras de pouca razoabilidade, não só não conseguia impedir o naufrágio como ainda se esgotava em querelas com o primeiro Supremo Conselho instituído, o americano. O resultado desse acumular de erros, más decisões, querelas, irrelevâncias, dificilmente poderia ser diferente do que foi: em 1814, por decisão unilateral, o Grande Oriente de França, invocando o acordo de 1804, assumia diretamente o controlo sobre o Rito Escocês Antigo e Aceite, em conjunto com o Rito Francês, nos três primeiros graus, e, em 1816, assumiu a jurisdição do rito até ao grau 18 (Cavaleiro Rosa-Cruz), criando Lojas Capitulares, presididas por Cavaleiros Rosa-Cruz, que trabalhavam os graus desde o 1.º ao 18.º. Do 19.º em diante, o rito continuava sob a alçada do Supremo Conselho.

No entanto, o Supremo Conselho americano permaneceu com a sua estrutura inicial: os três primeiros graus sob a alçada das grandes Lojas e os restantes sob administração do Supremo Conselho.

Com o decorrer do tempo, a fórmula original, americana, cresceu, implantou-se um pouco por todo o lado e veio a lograr retomar o controlo para o Supremo Conselho dos graus 4.º ao 18.º, também em França. Demorou anos e muitos esforços para reparar o erro de 1805! Uma vez atingida a unificação da prática do rito a nível global, este desenvolveu-se na sua forma atual, por todo o Mundo. Até hoje.

Fonte:
http://www.oficina-reaa.org.br/v1/index.php?option=com_content&view=article&id=53:detalhes-dos-rituais-azuis-do-reaa&catid=38:trabalhos0&Itemid=2

Rui Bandeira

20 fevereiro 2011

O conceito maçónico de "Grande Arquiteto Do Universo" - II



Todo-poderoso, Senhor, Altíssimo, Santo de Israel, Criador, Eterno; Deus sempre foi referido por muitos nomes, não só nas tradição judaico-cristã como noutras. "Grande Arquiteto do Universo" é só mais um nome, para além dos muitos que já existiam, dirigido à mesma Entidade. A designação escolhida liga o Divino ao simbolismo adotado pela Maçonaria, tornando-O mais próximo ao atribuir-lhe um nome partilhado por poucos - assim como aqueles nomes por que somos conhecidos apenas no mais restrito círculo familiar, mas não mais além.

Não creio - mas é questão de mera convicção pessoal, que vale o que vale e só até que encontre verdade mais sustentada - que estivesse na génese da criação desta expressão a preocupação em encontrar-se uma designação que fosse neutra de modo que nenhuma religião ou fé pudesse reclamá-la para si, e que igualmente nenhuma pudesse ver como absolutamente estranha. Todavia, à medida que a Maçonaria foi abarcando no seu seio mais do que apenas cristãos - como sucedia de início - e alargou o seu âmbito às outras religiões "do Livro", e depois a muitas outras, a neutralidade dessa designação acabou por revelar essa enorme utilidade.

No entanto, só depois de ser iniciado e de assistir a várias sessões é que me apercebi do quanto ainda existe na maçonaria que trai as suas origens judaico-cristãs: a expressão "Deus" ainda é referida, bem como algumas passagens da Bíblia / Torah. Nada surge que seja inequivocamente do acervo de outras religiões. No entanto, a designação "Grande Arquiteto Do Universo" é recorrente, especialmente numa circunstância: na expressão "À Glória Do Grande Arquiteto Do Universo". Esta expressão, no meu entender, é que é a chave para a exigência da fé no "Grande Arquiteto do Universo".

De facto, o facto de a Maçonaria Regular trabalhar "À Glória Do Grande Arquiteto Do Universo" constitui uma afirmação mais estrita do que a mera manifestação de fé no "Grande Arquiteto Do Universo". Não basta então crer em Deus; é preciso estar disposto a trabalhar à Sua glória, e isso limita, de imediato, as diversas conceções possíveis de Divindade. Uma divindade apenas criadora - qual pai ausente tendo abandonado o lar, apenas gerador mas não educador - não cairá, possivelmente, dentro deste conceito. Uma difusa "força impulsionadora para o bem", como é entendida por alguns budistas, não o será também.

A crença em que dos nossos bons atos decorre a Glória daquele a quem chamamos "Grande Arquiteto Do Universo" constitui um poderoso elemento de coesão e de identificação - e, na perspetiva oposta, pode constituir forte fator de desconforto e alienação para quem não partilhe dessa convicção. E a exigência desta crença serve, precisamente, para manter os maçons regulares coesos pela partilha dessa identidade.

Por esta razão, e no meu entender, a pergunta feita a um neófito não deveria ser apenas "Acredita no Grande Arquiteto do Universo?", mas mais na linha de "Identifica-se com a ideia de que o Homem deve trabalhar À Glória do Grande Arquiteto do Universo?"  Mais do que estéreis (porque inconclusivas) discussões filosóficas entre teísmos e deísmos, parece-me ser esta convicção de que não só há um Deus, mas de que Ele é glorificado pelos que fazemos de bom, o que estabelece a resposta a que crenças cabem - ou não cabem - no seio da Maçonaria Regular tal como esta é entendida nos dias de hoje.

Paulo M.

16 fevereiro 2011

Origem e primórdios do Rito Escocês Antigo e Aceite - 1804


Em outubro de 1804, foi criado o Segundo Supremo Conselho do Rito Escocês Antigo e Aceite no Mundo. Foi em Paris e destinava-se a difundir o Rito na Europa.

Recorde-se que fora na Europa que fora concebido o rito de Altos Graus em 25 graus denominado Rito de Perfeição. Exportado para a América, nos Estados Unidos veio a evoluir para um rito de 33 graus, incluindo os três graus simbólicos de Aprendiz, Companheiro e Mestre com a denominação de Rito Escocês Antigo e Aceite.

No entanto, na Europa o que existia era, por um lado, a Maçonaria que hoje denominamos de Simbólica, dos três graus de Aprendiz, Companheiro e Mestre, praticada no rito exportado pelos Modernos da Premier Grande Lodge de Londres e, por outro, a profusão de chamados Altos Graus, algo desorganizada.

Ainda em outubro de 1804, uma Assembleia Geral do nóvel Supremo Conselho de França deliberou fundar, também em Paris, uma Grande Loja Geral Escocesa, para organizar o ritual das Lojas Azuis do Rito Escocês Antigo e Aceite. Emulava-se assim a regra da Maçonaria inglesa de colocar sobre a jurisdição de uma grande Loja os três primeiros graus e estabelecia-se concorrência com o rito inglês nas Lojas Azuis. O ritual estabelecido teve como base o Rito Antigo e Aceite praticado pela Grande Loja dos Antigos em Inglaterra.

Cabe aqui chamar a atenção que, na época, estava pujante a rivalidade entre Modernos e Antigos. Só em 1815 a reunificação maçónica ocorreria em Inglaterra, com a fusão das duas Grandes Lojas rivais na Grande Loja Unida de Inglaterra. Tendo isto em perspetiva, impõe-se a consideração de que a implantação em França dos três primeiros graus do Rito Escocês Antigo e Aceite foi feita em claro contraponto aos Modernos e apoio às posições dos Antigos, daí resultando a reivindicação do rito da sua antiga linhagem de direto herdeiro da verdadeira maçonaria, preservada pelos Escoceses (os adeptos dos Stuarts e não os nacionais da Escócia, note-se) e pelos Antigos.

O Grande Oriente de França tinha como rito oficial o chamado Rito Escocês dos Modernos, também chamado Rito Francês ou Moderno, semelhante ao praticado pelas Lojas inglesas dos Modernos, que passou assim a sofrer a concorrência do Rito Escocês Antigo e Aceite, nos três primeiros graus.

Inteligentemente, e a fim de evitar que viesse a crescer e a fazer efetiva concorrência ao Grande Oriente de França a Grande Loja Geral Escocesa, braço do Supremo Conselho de França para os três graus das Lojas Azuis, o Grande Oriente de França logrou celebrar, ainda em 1804, um acordo com o Supremo Conselho através do qual o Rito Escocês Antigo e Aceite nos três primeiros graus seria também praticado dentro do Grande Oriente de França. Foi um acordo inteligente, porque com ele ambas as partes asseguraram os seus principais objetivos: o Grande Oriente absorvia à nascença a possibilidade de concorrência institucional quanto aos três graus das Lojas Azuis; o Supremo Conselho obtinha a caução institucional para o desenvolvimento do Rito Escocês Antigo e Aceite em França e, podia, a partir daí, difundi-lo pela Europa.

Tudo parecia justo e perfeito. O Rito Escocês Antigo e Aceite chegava (regressava, enquanto sucessor do Rito de Perfeição) à Europa e, em menos de um trimestre, obtinha caução institucional, estabelecia-se nos três primeiros graus e tinha abertas as portas da grande Obediência continental europeia, o Grande Oriente de França. Porém costuma dizer-se que, na cultura cigana, não se gosta de ver bons começos aos filhos, porque serão ilusórios e seguidos de dificuldades sem que estes se tenham preparado para elas. No caso da implantação do Rito Escocês Antigo e Aceite assim veio a suceder: o inteligente acordo durou pouco, muito pouco, torpedeado por querelas de poder e o bom princípio viria a ser apenas um breve introito para um período de turbulência. Veremos isso no próximo texto.

Fonte:

http://www.oficina-reaa.org.br/v1/index.php?option=com_content&view=article&id=53:detalhes-dos-rituais-azuis-do-reaa&catid=38:trabalhos0&Itemid=2

Rui Bandeira