04 maio 2011

Maçonaria e Filosofia Pitagórica - o DOIS

No texto anterior, deixei a interrogação: O Um é Único e Singular. Sendo assim, e uma vez que Um é o princípio que tudo origina, como é que Um se torna muitos?

Segundo a Filosofia Pitagórica, o UM transforma-se em DOIS refletindo-se a si próprio e separando-se, original e reflexo, através do movimento ilustrado pela imagem acima. Note-se que, com esse movimento, o centro do círculo define uma linha reta. Atente-se na ligação, que os pitagóricos faziam, da essência dos números à Geometria. Através da essência do UM apreendemos o ponto. Com a essência do DOIS deparamos com a linha reta.

À figura acima reproduzida, e que, para os pitagóricos, correspondia à representação gráfica do DOIS, chamavam estes a díade e esta representava o princípio da dualidade ou da diversidade. Essencial à díade era a polaridade, que ocorre em toda a parte e que está na origem da nossa noção de separação um do outro, da natureza e da nossa própria divindade.

A díade ilustra a divisão, logo, a separação da unidade, mas os seus polos opostos (os centros de cada um dos círculos) atraem-se um ao outro, numa tentativa de se fundirem e regressarem à unidade. A díade simultaneamente divide e une, repele e atrai. A díade é o meio de passagem entre o UM e muitos. Se o UM é o Princípio Criador estático, o DOIS ilustra a dinâmica da criação. Se nada existia, como criar a partir do nada? Utilizando o único "material" disponível: o próprio Criador, que se divide e separa, Dele próprio criando o Tudo. A Criação é o reflexo do Criador. O DOIS representa a ação do Criador a ponte, a ligação entre este e o que foi criado. O DOIS é assim a representação da dualidade que em tudo no Universo existe, a dupla natureza do criado que provém do Criador, Dele separado, mas para Ele sempre irremediavelmente atraído.

O UM é o Princípio Criador e simboliza o Masculino, a força ativa que gera a Criação. O DOIS simboliza o Feminino, a força passiva resultante do ato de criação e simultaneamente condição indispensável a esta e à vida. Note-se que, na imagem gerada pela sobreposição dos dois círculos, o espaço comum destes tem a forma de uma vulva. O DOIS é assim também associado à fertilidade e ao Feminino Divino.

O UM é a Força Criadora em potência; o DOIS é o ato concretizador dessa potência. O UM é imóvel; o DOIS é movimento. O UM é absoluto, o DOIS é relativo. O UM é o Tudo sincrético; o DOIS é o Tudo analítico, dotado de diversidade. É através do DOIS que o UM gera os demais números. Assim, para os pitagóricos, o UM e o DOIS eram considerados os pais de todos os outros números.

A imagem que simboliza o DOIS pitagórico não é exclusiva destes. Esta forma de dois círculos que se sobrepõem aparece desde tempos imemoriais. É também designada por vesica piscis (bexiga de peixe, em latim). Na Índia chamam-lhe mandorla (amêndoa). Esta imagem aparece em várias civilizações antigas da Mesopotâmia, África e Ásia, sempre associada ao processo da Criação.

A Maçonaria, mais especificamente o Rito Escocês Antigo e Aceite, ensina, relativamente ao número DOIS, que a razão humana divide e confina artificialmente o que é UM e não tem limites. Assim, a unidade é repartida entre dois extremos, aos quais só as palavras prestam uma certa aparência de realidade.

O conceito abstrato de DOIS dos pitagóricos, enquanto manifestação atual (em ato) do Princípio Criador, dualidade fecunda que da potência do UM gera o Tudo, que, assim, se reveste das características da dualidade e da polaridade (dia/noite; bem/mal; masculino/feminino; luz/escuridão; branco/negro; repouso/movimento) evolui, na conceção maçónica, no meu entender, e tal como sucedeu com o UM para uma corruptela mais concreta: a perceção humana da Criação; a separação artificial, imprescindível à compreensão pelo Homem do Incompreensível Mistério da Criação, em contraposição ao ilimitado e total UM; a dualidade como degradação, separação, divisão artificial do que é real, mas incompreensivelmente, único e uno.

Afigura-se-me, pois, que, tal como sucedeu em relação ao UM, a interpretação maçónica do DOIS é uma corruptela, uma simplificação, uma visão parcial e limitada, do ensinamento pitagórico, decorrente das alterações, perdas, usuras do tempo, decorridas desde o tempo dos pitagóricos e o século XVIII. Mas o princípio de base está lá: os pitagóricos viam o UM e o DOIS como os pais de todos os números; os maçons vêem-nos como geradores do número que se lhes segue.

Fontes:

Rito Escocês Antigo e Aceite, Ritual de Aprendiz, GLLP/GLRP, junho de 6007
O Código Secreto, Priya Hemenway, ed. Evergreen, 2010.

Rui Bandeira

4 comentários:

Marcos Amaro disse...

@Rui Bandeira;

Magnifico texto, no entanto atrevo-me a deixar mais uma visão do 2 (dois), não sobre o conceito numérico, mas sobre a “Dualidade” que ele também representa.

Dualismo de René Descartes:

De acordo com a teoria de René Descartes sobre o dualismo, a mente é uma substância distinta do corpo.

No dualismo, de Descartes, o conceito de mente pode ser aproximado aos conceitos de intelecto, de pensamento, de espírito e de alma do ser humano.

René Descartes propôs o dualismo das substâncias (que seriam uma entre duas coisas: res cogitans ou res extensa). Para ele o espírito e o corpo seriam nitidamente distintos. Espírito e matéria constituiriam dois mundos irredutíveis, assim não seriam nunca uma substância só, mas sempre duas substâncias distintas. Espírito seria do mundo do pensamento, da liberdade e da actividade; e matéria seria do mundo da extensão, do determinismo e da passividade.
Fonte/Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

Bem-haja por nos brindar com mais um magnifico trabalho/texto,

Candido disse...

Boas Marcos:
@MA: "Espírito e matéria constituiriam dois mundos irredutíveis, assim não seriam nunca uma substância só, mas sempre duas substâncias distintas".
Até aqui está correcto, falta agora o elemento que os liga...
Abraço e bom fim de semana para todos.

Marcos Amaro disse...

Dualismo de Descartes:

Espírito & Matéria.

Esta não é uma visão de Marcos Amaro é apenas, e tal como escrevi, uma outra visão sobre 2 (duas) partes, dois, não no sentido numérico, mas numa vertente mais filosófica/teórica da existência de duas partes, ou duas possibilidades, ou de dois princípios, ou duas substâncias, ou ainda de duas realidades opostas e inconciliáveis, irredutíveis entre si e incapazes de uma síntese final ou de recíproca subordinação.

Nesta visão e ou teoria do Dualismo está demonstrada a visão de Descartes e fiz questão de afirmar isso, no texto introdutório do meu “Post”, chato como sempre, eu tinha que escrever alguma coisa, pois sem duvida o magnifico trabalho de pesquisa e estruturação que o Rui Bandeira fez e com o qual nos brindou, neste “Post”, como em outros tantos, pouca margem de manobra deixou para que fosse necessário completar fosse com o que fosse, salvo com uma visão alternativa, no que diz respeito à tal parte mais filosófica.

@candido

Respondendo à sua questão, sobre qual a parte que liga estas duas partes eu apenas lhe digo que existe mais uma sim, mas essa já faz 3 partes, e eu gostaria de continuar a ter algo mais para voltar a escrever (talvez mais um comentário desnecessário, quem sabe) no próximo texto/trabalho sobre “Maçonaria e Filosofia Pitagórica”, espero eu que sobre o “Três” (fica aqui já o meu pedido, ao Rui Bandeira, a ver se é escutado e, claro, concedido).

Bem-haja quem de bem está por bem.

Candido disse...

Viva Marcos
Não quero antecipar-me a ninguem, pois o RB é dificil de ultrapassar.
Mas é a evidencia! Um compasso tem 3 pontos, dois "bicos" e o ponto de apoio, de contrario não marcava coisa alguma e a balança tem dois pratos mas também tem ponto de apoio, senão não seria balança nenhuma e não mediria diferenças e equilibrios.Por este caminho já estamos a ver...
Abraço