16 março 2022

EM TEMPO DE GUERRA, A LUCIDEZ POSSÍVEL

 Todos vamos vendo as imagens. Todos nos sentimos indignados com a barbárie, com a inútil destruição, com a contabilidade, sempre crescente, do número de mortos. Todos nos emocionamos com as imagens de mulheres, idosos e crianças em fuga desesperada aos horrores da guerra que lhes bateu à porta e, sem pedir licença, lhes entrou pela vida dentro.

A primeira reação é tomar partido. A nossa simpatia vai para quem foi agredido, todos os que foram agredidos. A nossa condenação, dirigimo-la ao agressor, a todos os agressores. Logo de seguida – e muito bem! – desperta a nossa solidariedade, a busca de meios para ajudar quem sofre.

É natural, é humano, horrorizar-nos com o horror, solidarizar-nos com a vítima, condenar o agressor. É quase que instintivo fazê-lo. As nossas emoções impelem-nos a tal. Qual pintura impressionista, retemos a noção geral de que os agredidos, a Ucrânia e a população ucraniana, são as vítimas e que os russos são insensíveis agressores. De um lado os bons, do outro os maus.

Mas a nossa Razão, sendo influenciada pela nossa Emoção, deve impelir-nos a ir para além dela. Se tivermos o cuidado de verificar alguns dados, saberemos que, segundo o censo ucraniano de 2001, mais de oito milhões de residentes na Ucrânia (um pouco mais de 17 % da população total) são russos. É certo que no Dombass, a região mais a leste da Ucrânia, vivem – ou viviam? – cerca de quatro milhões e meio de russos e que esta região não é atacada pelas tropas às ordens de Putin. Mas ainda sobram cerca de três milhões e meio de russos que vivem – ou viviam? – no resto da Ucrânia e que, por isso, sofrem também bombardeamentos, também têm que se abrigar no subsolo ou onde puderem, também estão tão cercados ou atacados como o resto dos seus concidadãos. Um morteiro ou míssil russo, ao explodir, tanto pode matar ucranianos como russos.

Não obstante, neste confronto entre Vladimir Putin e Volodymyr Zelenski, naturalmente que a nossa simpatia vai para este, a nossa condenação para aquele.

Mas temos que ter em atenção que muitos mais Volodymyr há na Ucrânia e muitos mais Vladimir há na Rússia. E que, se é certo que muitos desses Volodymyr são heróis como o seu Presidente que resiste, outros não o serão tanto assim e seguramente que também alguns haverá que não são flor que se cheire… E, no outro lado, nem todos são filhos de Putin!

Isto é facilmente entendível pela nossa Razão, mas dificilmente aceite pela nossa Emoção. Mas, em tempos de conflito, se temos de atender à nossa Emoção, temos que deixar que continue a ser a nossa Razão a sobrepor-se, a ter a última palavra. Senão, nós próprios cometemos injustiças que, para além de o serem, são sobretudo estúpidas!

Nos últimos dias, vimos e ouvimos notícias de que, cá pelo burgo, nas nossas escolas, crianças russas estavam a ser atacadas, injuriadas, agredidas, só por serem… russas. Mas que culpa têm as crianças de terem nascido num lugar e não em outro, de terem pais de uma nacionalidade ou grupo étnico e não de outro?

Este exemplo, infelizmente real, mostra-nos que não podemos, não devemos, ver o Mundo a preto e branco, os maus de um lado, os bons do outro. Nem todos os russos são agressores (aliás, suspeito, que muitos são, em primeiro lugar, oprimidos…), nem, seguramente, todos os ucranianos gostaríamos de ver casados com as nossas filhas…

Solidariedade e auxílio ao Povo Ucraniano, sim! São os agredidos, batem-se heroicamente em defesa da sua terra, das suas casas, das suas famílias, e merecem todo o apoio que lhes pudermos dar.

Mas tenhamos a lucidez de entender que, do outro lado, não podemos generalizar e classificar todos como os maus, os agressores, os violentos. Do outro lado, também há já milhares de detidos por se manifestarem contra a agressão à Ucrânia. E certamente que muitos combatem só porque são obrigados a fazê-lo.

Nesta guerra, não se trata de um Povo atacar outro. Trata-se um Poder Político atacar outro, indiferente ao sofrimento que causa aos Povos, o do outro e o dele próprio.

Sanções ao país agressor, sim, mas com a noção de que o sofrimento que se inflige ao povo do país agressor não se destina a punir, a castigar, esse povo, mas sim a induzir a cessação da agressão, talvez até por revolta desse povo contra o verdadeiro agressor.

Solidariedade e apoio aos agredidos, sim. Condenação ao agressor, também sim. Mas não deixemos de identificar bem quem é o agressor e quem apenas é utilizado, mandado, quiçá obrigado, por ele.

Esta distinção entre quem na realidade agride, manda agredir e obriga a agredir (e, não sejamos ingénuos, não é só Putin, é ele e toda uma clique que se assenhoreou do poder, para benefício próprio e não do povo que governam) e quem apenas obedece porque tem de obedecer, porque a revolta só é possível quando estão reunidas as condições para que ela possa emergir, é essencial, em termos de futuro.

Porque, por muito difícil, por muito desesperada, por muito horrível que esteja a situação atual, há algo que não podemos olvidar: tal como à Tempestade sucede a Bonança, depois da Guerra há de vir a Paz.

Em tempos de guerra, temos o dever de ajudar quem sofre, quem é agredido, mas não podemos perder de vista que há que preservar as condições para que, o mais brevemente possível, se alcance a Paz. A guerra pode ser desencadeada, pode ser mantida por um qualquer detentor do Poder. Mas a Paz, essa, só é possível entre Povos. Muitas feridas haverá que cicatrizar para que, da mera deposição das armas, se chegue à verdadeira Paz. Para que tal se consiga, temos que ter e transmitir a noção de que os Povos não são inimigos, que o inimigo é quem desencadeia, propicia e mantém a guerra. Porque os Povos, de um e do outro lado, o que anseiam é pela Paz.

Portanto, condenação de Putin e dos filhos de Putin que constituem a clique que lançou e mantém esta barbárie, auxílio ao Povo Ucraniano, mas também solidariedade com quem, de um e do outro lado, quer a Paz e é obrigado, por vontade de alguns, a suportar a guerra.

Solidariedade, principalmente, com todas as crianças, de um e do outro país – e com as crianças russas em Portugal -, que não têm culpa nenhuma dos desvarios dos detentores do Poder.

 Rui Bandeira

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