16 agosto 2025

Música e o Espírito Humano: Da Liturgia à Maçonaria


A musica é uma linguagem universal que acompanha a humanidade desde tempos imemoriais. É consensual que a flauta tenha sido o primeiro instrumento a ser fabricado por mãos humanas, no entanto é a voz humana que com a sua capacidade de expressão, se assume como primeiro e mais poderoso instrumento musical. É através da musica que o sentimento humano é exteriorizado seja em ambiente ritualistico ou em ambientes de descontração. A musica tem um lugar no coração e na voz de cada ser humano.

O Papel da Música na Religião e na Sociedade

A música religiosa é de importância central desde a Idade Média, com o canto gregoriano a dominar as cerimónias. A polifonia, o uso de múltiplas vozes, começou a desenvolver-se neste período e floresceu de forma notável no Renascimento. É a partir daí que a musica serve a religião para dar vida aos rituais e ao sentimento esmagador de Deus perante a insignificância humana. Esse sentimento é ainda mais exacerbado a partir do período Barroco. No entanto é nesta época que se desenvolve em paralelo a musica de câmara, mais apetecível ás cortes, com um semblante de pureza, bem estar e leveza.  

Em seguida entramos no período Clássico em que os compositores procuraram afastar-se de alguns “exageros” do Barroco. A musica tornou-se mais leve e menos complexa mas, com a mesma emoção. Tanto Beethoven como Mozart mostraram que o estilo clássico pode ter várias vertentes e uma infinidade de ideias. Um dos grandes exemplos da grandiosidade desta época é a Lacrimosa do Requiem de Mozart (K. 626) onde o coro apresenta um peso e emoção avassaladores.  

Com o Romantismo, a música passou a ser a expressão da individualidade do compositor. O foco mudou das grandes composições corais religiosas para a música instrumental, onde a expressividade dramática ganhava destaque. Embora a música religiosa tenha perdido a sua centralidade social, grandes obras como o "Requiem Alemão" de Brahms ou o "Messa da Requiem" de Verdi ainda foram compostas. A música tornou-se mais acessível a todos, em grande parte devido à ascensão da burguesia e à popularização do piano.


Por fim entramos na época contemporânea que procura descobrir e utilizar novas sonoridades e novos estilos. Aqui a musica separa-se completamente da época anterior entrando-se no estilo minimalista e atonal. No entanto, a vertente religiosa não desapareceu, com compositores como Arvo Pärt e John Tavener a dedicarem-se ativamente à música de caráter espiritual e sagrado.



A Música nos Rituais Maçónicos

A maçonaria, embora não seja uma religião, reconhece a importância da música nos seus rituais. Existem vários ritos na maçonaria. Na minha opinião, a musica faz imensa diferença no sentimento que o ritual nos transmite. Já assisti a sessões sem musica, e o sentimento que tive foi de maior foco no trabalho. Com música, o sentimento que me é transmitido vai para além do trabalho, adicionando uma camada extra de emoção.  

O organista tem a responsabilidade de escolher a música adequada para cada fase da sessão, conciliando o que é descrito no ritual com a emoção que se pretende transmitir. Não é tarefa fácil pois é preciso ter conhecimento musical, alguma experiência e, sobretudo sensibilidade musical. 

Não sendo a maçonaria uma religião, é importante ter em consideração a importância que a musica tem nos rituais liturgicos. Há partida , o organista tem de excluir a musica vocal, não só porque vem descrito no ritual, mas também para não criar distrações desnecessárias. 

Musica vocal coral tem um poder e uma força muito grandes, esmagam e viram a atenção para outros temas. Por sua vez a musica vocal, não coral, dá ênfase a uma mensagem contida num poema que, por sua vez, também pode ser distrativo. 

Resta-nos a musica instrumental. Dentro da musica instrumental retiro à partida a musica contemporânea. Já experimentei colocar numa sessão este tipo de musica e verifiquei que as dissonâncias características deste estilo não estão em consonância com o espirito que se pretende na sessão. A dissonância cria tensão, incerteza e hesitação. 

Por sua vez, as peças do período romântico são boas para a sessão, mas é preciso ter critério ao escolhe-las. A expressão dramática de algumas peças desta época podem prejudicar o ambiente da sessão. 

Por fim, os estilos que considero mais seguros para serem usados numa sessão maçónica são os da época barroca e clássica, preferencialmente peças de piano solo e musica de câmara. Talvez sejam as épocas musicalmente mais equilibradas.

Apenas um apontamento relativamente ao que é a musica maçónica. Um dia um I da minha RL referiu que a musica maçónica era aquela que era composta por maçons.. É fácil ter chegar a esta ideia pois só quem foi iniciado tem a perceção e o sentimento inerente a cada sessão. No entanto, não considero que seja unanime. Para mim a musica maçónica é aquela que reflete o sentimento maçónico da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, a musica que nos faz sentir libertos de dogmas e que, acima de tudo, nos faz sentir vivos e fraternos para com todos. Sendo assim, pode ser escrita por qualquer um, desde que exista o sentimento. 


Conclusão

Fico profundamente triste quando alguém diz que a musica não serve para nada ou que vivíamos todos bem sem musica. Não consigo imaginar um mundo sem musica. Seja ela com um propósito ou mesmo sem propósito nenhum. Seja musica popular, rock, liturgica, a musica tem lugar em todas as culturas e na consciência humana. Seja na maçonaria, seja no mundo profano, a musica faz parte de todos e só acabará quando o ultimo homem do planeta der o ultimo suspiro.

09 agosto 2025

Maçonaria não vota, não apoia e não opina

Esse é um post para não-maçons.

Nos últimos tempos, tenho acompanhado com alguma preocupação a forma como a Maçonaria tem sido retratada na mídia, e confesso que isso me incomoda profundamente. Ao ver manchetes como as que se acumulam no print que guardei (e que certamente vocês também já viram por aí ) fico com a nítida sensação de que há uma tentativa insistente de encaixar a Maçonaria numa caixa que simplesmente não lhe pertence.

"Maçonaria apoia candidato X", "Maçonaria volta em força com ligações ao Governo", "Líder maçônico agita campanha eleitoral". Parecem trechos de um roteiro de ficção, onde uma entidade monolítica e quase sobrenatural manipula os cordéis do poder. Mas a realidade, meus caros, está muito longe disso.

É preciso deixar bem claro, e com letras garrafais se preciso for: A Maçonaria não vota, não apoia e não opina.

A Maçonaria é uma instituição de caráter iniciático e filosófico, que reúne indivíduos livres e de bons costumes, unidos por ideais de fraternidade, aperfeiçoamento moral e busca pela verdade. E a palavra-chave aqui é indivíduos. Cada membro da Maçonaria é, antes de tudo, uma pessoa com suas próprias convicções, suas próprias opiniões políticas, suas próprias escolhas religiosas e suas próprias preferências em todos os aspectos da vida.

Dizer que a Maçonaria tem uma posição unificada sobre qualquer assunto, seja ele político, social ou econômico, é tão absurdo quanto afirmar que todos os membros de um clube de leitura torcem para o mesmo time de futebol ou que todos os frequentadores de uma academia de ginástica votam no mesmo partido. Não faz sentido, não é mesmo?

Dentro das Lojas, o debate sobre política partidária ou temas que gerem discórdia é explicitamente desencorajado. Nosso foco é o aprimoramento individual, a discussão de princípios éticos e morais, a prática da caridade e a construção de uma sociedade melhor, sim, mas através do exemplo e da influência individual de cada um de nós.

Não temos um “Papa” da Maçonaria, um líder supremo global que dita as regras ou as posições de todos os maçons no mundo. A Maçonaria é descentralizada, composta por Grandes Lojas independentes em cada país ou jurisdição, cada uma com sua própria autonomia. A ideia de um comando centralizado que emite diretivas sobre quem deve ser apoiado ou o que deve ser pensado é uma fantasia.

Quando um maçom se destaca na política, na vida pública ou em qualquer outra área, isso se deve ao seu próprio mérito, às suas próprias convicções e ao seu próprio trabalho. Se ele é maçom, isso é uma característica pessoal dele, assim como pode ser músico, médico ou pai de família. Não é a Maçonaria, como instituição, que o está impulsionando ou opinando através dele. Ele é um cidadão exercendo seus direitos e deveres, com suas próprias visões.

A Maçonaria não é um partido político disfarçado, nem um lobby de interesses ocultos. É um espaço de encontro para homens que buscam o autoconhecimento e a prática da virtude, e que, uma vez fora dos templos, atuam no mundo de acordo com suas próprias consciências e princípios.

Portanto, da próxima vez que você ler uma manchete que tenta pintar a Maçonaria como uma unidade pensante, peço que reflita sobre o que acabo de dizer. Lembre-se que por trás do véu do mistério, há apenas homens independentes, cada um com sua voz e seu voto, mas unidos por uma senda de aprimoramento pessoal. E essa distinção é fundamental para compreender a verdadeira natureza da nossa Ordem.

Fábio Serrano, MM




02 agosto 2025

Temos Tempo ou apenas Pressa?

Há dias em que sinto que o tempo já não é meu, desde que o teletrabalho se instalou como o "novo normal", no pós confinamento pandémico, o que era suposto trazer liberdade trouxe, afinal, uma aceleração quase silenciosa. Já não há separação entre o que é trabalho e o que é pausa, e mesmo quando há, é invadida por notificações, prazos, chamadas e a estranha urgência de responder a tudo.



Se me perguntarem quando foi a última vez que parei mesmo, sem telemóvel, sem tarefas, sem estímulos, talvez tenha de recuar até à última sessão de Loja e a todas as ultimas sessões. Isso, por si só, já diz muito.

Na vida profana, tudo parece correr, nas estradas, nos corredores dos supermercados, nos gabinetes e nas escolas., até os reformados. Aqueles que deveriam ter tempo para o “dolce far niente” ou descansar à sombra do chaparro, parecem sempre com algo urgente para fazer. 

O tempo tornou-se um luxo e a lentidão, um pecado.
Quem abranda é ultrapassado. Quem pára, fica para trás.

E, no entanto, o tempo continua a ser o mesmo. Não é o mundo que gira mais depressa, somos nós que deixámos de o escutar. O tempo não se mede apenas em minutos, mas em presença, talvez seja por isso que vivemos com tanta pressa, para não estarmos realmente onde estamos, para não sentir o peso de cada instante. 

A pressa não é apenas um vício, é uma forma de ausência, uma fuga bem disfarçada.

Em Loja, tudo muda, o tempo não acelera ou abranda, assume um ritmo próprio, cadenciado, harmonioso, quase litúrgico. O ritual não está feito à medida da pressa, mas da harmonia. Há pausas e há compassos. Há silêncio e nesse silêncio, não há vazio,  há sim construção.

Dizem que os antigos sabiam viver devagar. Os monges, os operários, os mestres de ofício, sabiam que ouvir o tempo era ouvir-se a si mesmos. Hoje já não o fazemos, corremos. Mas corremos para onde?

Gostava de mudar isso, de ter a capacidade para conseguir parar dez minutos por dia, só para refletir, para me ouvir. Não para produzir, não para responder a ninguém, apenas para reencontrar o compasso interior que o mundo me rouba.

Talvez um dia volte a conseguir, talvez seja esse o verdadeiro trabalho de uma vida, recuperar o tempo.

João B. M∴M

30 julho 2025

O Equilíbrio que Mantém o Mundo e a filosofia

Frequentemente, associamos a vida a uma noção de equilíbrio. Contudo, do ponto de vista da física, esta ideia merece uma análise mais aprofundada. Os sistemas vivos, sendo sistemas abertos, não existem num estado de equilíbrio, mas sim num estado estável dinâmico. O equilíbrio, em termos termodinâmicos, define-se como o estado de máxima entropia, onde todas as diferenças de potencial se anulam e a capacidade de realizar trabalho desaparece por completo. É um estado de inércia final.

Pelo contrário, o aparente equilíbrio que observamos na vida, o seja,  o seu estado "estável" é um motor de trabalho constante. Exige um fluxo contínuo de energia para manter a distância que o separa do verdadeiro e derradeiro equilíbrio. É nesta dança que reside a essência da vida: manter-se através da mudança e conservar-se através da transformação. Esta coexistência de estabilidade e mudança é uma das suas características mais fundamentais.

A Hipótese de Gaia

Esta mesma ideia de um sistema dinâmico e autorregulado é expandida para uma escala planetária através da Hipótese de Gaia. Proposta na década de 1960 pelo cientista britânico James Lovelock, esta hipótese sugere que a biosfera e os componentes físicos da Terra formam um complexo sistema interativo. Este superorganismo, que Lovelock batizou de Gaia, mantém as condições climáticas e biogeoquímicas do planeta favoráveis à vida. Segundo esta visão, a vida, uma vez surgida, assumiu o controlo do ambiente inorgânico, moldando-o para garantir a sua própria perpetuação. A Terra, neste sentido, comporta-se como um gigantesco organismo vivo em busca de um estado estável.

A Ordem no Caos e a Busca Humana

No entanto, a natureza também nos apresenta o seu oposto: a perda de controlo. A Teoria do Caos demonstra que uma pequena alteração nas condições iniciais de um sistema pode gerar consequências futuras de uma magnitude imprevisível. Este "efeito borboleta" revela um universo que, na sua essência, é complexo e caótico.

O ser humano, por natureza, lida mal com esta imprevisibilidade. A nossa mente procura a ordem, a estrutura e o equilíbrio como forma de se manter e prosperar. Tentamos incessantemente classificar o que nos rodeia em categorias claras. Como referiu o filósofo Bertrand Russell, todo o conhecimento definido pertence à ciência; todo o dogma sobre o que transcende esse conhecimento pertence à teologia. Mas entre a ciência e a teologia existe uma "Terra de Ninguém", exposta aos ataques de ambos os campos: essa Terra de Ninguém é a filosofia.

A Maçonaria: Uma Senda de Equilíbrio

É precisamente nesta Terra de Ninguém que a Maçonaria encontra o seu lugar, enquanto instituição essencialmente filosófica, filantrópica, educativa e progressista. A sua busca é, na essência, a busca pelo equilíbrio. Classificamo-la como filosófica porque, nos seus atos e cerimónias, se debruça sobre a essência, as propriedades e os efeitos das causas naturais, investigando as leis da natureza e alicerçando as bases da moral e da ética pura.

Na nossa Ordem, a filosofia do equilíbrio está presente em múltiplos atos, símbolos e alegorias. Espera-se que um Maçom seja justo e tenha uma vida equilibrada, mas também que seja um promotor incansável da justiça e da igualdade, compreendendo que a harmonia reside muitas vezes entre a dualidade e a polarização.

É por isso que o número Três assume uma importância tão central, especialmente no Rito Escocês Antigo e Aceite. Ele simboliza a reconciliação e o ponto de equilíbrio que resolve a tensão do binário, representando a síntese que devolve a dualidade à unidade. Como escreveu Rui Bandeira neste mesmo blog:

"o TRÊS é o resultado, em equilíbrio e harmonia, da união do UM com o DOIS, a forma de resolução harmónica do conflito entre a potência e a ação do Princípio Criador, o resultado dessa resolução harmoniosa: a Criação."

Cabe a cada Irmão internalizar este ensinamento, agindo como catalisador de uma sociedade mais justa e perfeita. Esta é a nossa principal missão: promover a Verdade e combater a ignorância, sendo o ponto de equilíbrio que gera a luz.

Esta busca pela Verdade, que nasce da harmonia e se manifesta como a própria Criação, é uma força inevitável. E assim, a conclusão do nosso raciocínio encontra um eco perfeito nas palavras atribuídas a Buda. Ele disse: "Há três coisas que não podem ser escondidas por muito tempo: o sol, a lua e a verdade."

Nesta poderosa imagem, não temos apenas uma lista de três elementos. Temos o Sol e a Lua — a eterna dualidade, os polos que governam o dia e a noite, a luz e a sombra. E temos a Verdade, o terceiro princípio. Ela não surge ao lado deles, mas como a realidade fundamental que, tal como os dois grandes luzeiros, é inevitável e acabará sempre por se revelar. A Verdade é o equilíbrio manifesto, a luz que, inevitavelmente, dissipa todas as trevas.

Fábio Serrano, M∴M∴

26 julho 2025

Polimento da Pedra - Imigração


A história que vou contar passou-se há muitos anos numa guilda, algures na história do mundo.
Estávamos ainda na construção do 1º templo de Salomão. O Mestre Arquiteto do Templo já não
era Hiram Habiff...

...mas essa história... Bem, fica para outra ocasião.

As guildas eram compostas por pessoas com a mesma profissão que se juntavam para debater
assuntos de variada ordem, laboral e não só. Esta guilda tinha um nome hebraico ”ha-moreh”1 e
era a guilda de Noah, o Aprendiz que estava a estudar os instrumentos da arte da pedraria e que
já se encontrava num estágio avançado da sua formação.

Num certo dia de luz os obreiros juntaram-se para tomar a refeição e discutir alguns dos assuntos
que os preocupavam.

Paulo um dos Oficiais da guilda, conhecido pela sua justiça e imparcialidade, era um dos
elementos que pautava pela união e alegria daquele grupo. Era ele que orientava Noah nos seus
trabalhos.

Pedro, outro oficial da guilda, era reconhecido entre todos como uma pessoa que pautava a sua
conduta pela igualdade. Tinha uma grande força de caráter e era visto como o justo herdeiro das
funções de João.

João era o mestre que, estava à frente de tão responsabilizável obra. Foi eleito por ser um
homem sábio, reto e ponderado.

Noah já tinha um conhecimento bastante avançado acerca das suas funções, dos seus
instrumentos de trabalho e das possibilidades que estes lhe ofereciam no seu estado final. Sentia
cada vez mais que era um membro da guilda e que estava a percorrer um caminho muito positivo
através dos seus trabalhos.





Já no final da refeição um dos irmãos da guilda, um pouco irritado com o facto de Pedro lhe estar
sempre a chamar à razão, afirmou bem alto:

— Mas o que queres tu dizer com isto?! Estamos nós a dar de comer aqueles que não são da
nossa terra? Primeiro nós, e a seguir os outros. Eles nem sequer pensam e agem como nós. A
cultura deles é distinta da nossa. Eles estão todos a destruir o espirito que existia na construção
deste templo. Está tudo muito pior. Temo que isto tudo acabe muito brevemente.

— André, meu irmão — disse Pedro compassadamente e sem irritação— temos de pensar que
eles são seres humanos tal como nós. Têm as mesmas necessidades, têm o direito de ter um
teto para morar e comida para sobreviver. Só porque uma minoria é criminosa, não podemos
colocar todos no mesmo saco. Além disso, se proporcionares a todos os cidadãos boas
condições, ninguém vai sentir necessidade de roubar ou extorquir. É a lei da vida, é a justiça que
temos de fazer aos seres humanos.

— Isso parece tudo bonito Pedro mas quando te assaltarem a ti e á tua família vamos ver como
reages e se continuas a pensar da mesma maneira.

— Claro que penso da mesma maneira. Em momento algum disse que não deveriam obedecer
ás nossas normas. Em nossa casa, as nossas leis. Se cometerem algum crime terão de ser
julgados cá.

— Aos poucos eles vão-nos substituindo. Qualquer dia estaremos em vias de extinção - afirmou
André, triunfante.

Entretanto, Paulo, ao ver que a discussão estava a ganhar certas proporções, resolveu intervir
de forma enérgica, como era seu costume.

— Meus Irmãos, penso que só há uma maneira de resolver este assunto. A verdade é que não
podemos deixar entrar toda a gente pois, não temos capacidade para tal. Por outro lado, estamos
a falar de seres humanos. Não podemos deixar de lhes dar condições sobrevivência. Para
sermos assertivos, devemos criar regras para que possam usufruir das nossas condições. É na
criação de regras de acesso que podemos encontrar todos estes problemas resolvidos.

Paulo foi assertivo. Parecia que aquela face da pedra cubica estava finalmente perpendicular e
bem nivelada. Faltava verificar as outras faces para averiguar se a “pedra deste assunto” estava
realmente perfeita.

Depois da intervenção da Paulo, ficaram todos calados. Parecia que estava o assunto resolvido,
até que Noah resolveu intervir de forma tímida, mas bem ciente do que iria dizer.

— Se me permitirem, — afirmou com cautela, pois não costumava falar quando as discussões
eram assuntos assim tão expansivos — penso que o que disseram até agora está tudo bem,
mas acho que há um pormenor que ninguém se lembrou. Até agora vocês estiveram a tratar do
tema como se fossem pessoas isoladas. Ainda não falámos das famílias. Também não se falou
da necessidade de termos mais mão de obra para trabalhos menores, aqueles que ninguém querfazer. Acho que são duas coisas que é preciso ter em consideração. E, no que diz respeito ao
último aspeto, podemos nós próprios ficar a ganhar na construção do nosso templo.

— Tens toda a razão, meu jovem aprendiz – disse André com a sua preeminência habitual e
cofiando a sua farta barba — a par da criminalidade e da nossa extinção, ainda temos de levar
com o desemprego criado pela vinda deles e com as famílias numerosas que nos vão substituir
a todos.

— Não me referia ao desemprego gerado pela vinda das pessoas, até porque os lugares que
vão ocupar normalmente são de profissões que nós normalmente rejeitamos. Aquelas que, pela
nossa arrogância nos recusamos a executar. Se forem eles a ocupar esses lugares estaremos a
ajudá-los, desde que não lhes tiremos a dignidade enquanto pessoas.

— Noah, Noah — disse André com desdém — não aprendeste nada desde que aqui chegaste.
Infelizmente, se calhar vais ter de passar mais uns tempos a conhecer os desígnios desta guilda.
Ao verem esta arrogância por parte de André, Paulo interveio com a força de um martelo:
— André, não podes falar assim com Noah, já te esqueceste de como eras? Vamos lá a ter tento
na língua.

Pedro prevendo a intensificação do cenário, tentou controlar a contundência de Paulo, intervindo
com a sabedoria do cinzel, controlando a sua agressividade e sem deixar de os tratar com
igualdade.

— Vamos ter ponderação nas palavras. André, tens de pedir desculpa a Noah. Estamos a dar
as nossas opiniões e todas são válidas, independentemente de tu as aceitares ou não...
Entretanto João, ao ouvir toda esta argumentação interveio, no sentido de terminar aquela
discussão que já se estava a tornar infrutífera.

— Meus irmãos — começou por dizer interrompendo Pedro de forma fraterna, calma,
descontraída e brincalhona — vamos acalmar os ânimos. Afinal ainda estamos cá todos. André
só está à espera que lhe encham o copo para ficar mais calmo. Temos de conversar com os
nossos novos irmãos, ser mais fraternos, independentemente da sua proveniência. Só assim
eles se vão sentir bem ao pé de nós.

Ao dizer isto, as caras dos obreiros, que eram de zanga, passaram a envergar um sorriso. André
percebeu que se excedeu e que tinha de mudar a sua atitude. João continuou, agora mais sério:

— Todos vós deram parte da solução. André mostrou que haviam alguns problemas com estas
taxas de aceitação excessivas e que elas podiam interferir na construção do templo. Pedro
mostrou o lado humano que não deveremos descurar. Paulo referiu que temos de criar regras
para colmatar os problemas descritos por André, e Noah mostrou o lado mais realista da questão.

Portanto, todos foram importantes para a solução do problema. Estamos todos de parabéns.
Vamos brindar e ter com as nossas famílias. Amanhã veremos como colocar em prática o que
discutimos hoje. Vamos aceitá-los fraternalmente, agora só falta discutir como.João mostrou ser um bom líder. Com a sua forma descontraída terminou uma discussão que se
estava a mostrar cada vez mais acesa e que poderia terminar com o afastamento de obreiros da
sua guilda. Mostrou a importância que todos têm para a resolução de um problema. E mostrou,
também que não são as atitudes e pensamentos extremistas que levam a boas soluções. O que
levou à solução foi a discussão bem conduzida.

Por sua vez Noah aprendeu muito com este episódio. Em primeiro lugar que todos os seres
humanos são colocados no mesmo nível, pois são todos iguais enquanto Homens. Também
aprendeu que um líder, como demonstrou ser João, deve agregar e não dividir, dando a
importância que todos têm para a tomada das decisões. Por fim, que o conhecimento das ideias
extremistas são necessárias para chegar a conclusões moderadas e válidas. Essas conclusões
devem ser moderadas pelo uso correto dos instrumentos. Com isto Noah sentiu que os seus
valores já mais desbastados. Só lhe falta polir a sua pedra para chegar mais perto da perfeição.

Nota: O texto aqui lido foi integralmente escrito pelo autor, D∴ G ∴
. Não foi utilizada a Inteligência Artificial.

D∴ G∴ 

23 julho 2025

Caminhos que se Cruzam: A Liberdade de Discordar na Maçonaria

A Maçonaria constrói-se no encontro de pedras brutas. 

No silêncio do Templo, mas também na fricção de ideias, no debate fraterno, na busca sincera de sentido. Quando dois Mestres discordam sobre o modo certo de acompanhar os Aprendizes, a discussão que nasce não é um problema. É um sinal de vitalidade.

Foi precisamente isso que aconteceu numa troca de ideias recente entre dois Irmãos, dois Mestre Maçons e eternos Aprendizes. Um confronto respeitoso entre duas formas de entender o papel do Mestre na formação dos mais novos, um diálogo intenso que revelou, mais do que certezas, dois caminhos possíveis dentro da mesma Tradição.


Presença Activa

Para um dos mestres, acompanhar significa estar presente, literalmente. Um Mestre deve sair do templo com os Aprendizes quando estes necessitam de sair, por a loja subir de grau, por exemplo. Deve dirigir os seus trabalhos, orientar os seus raciocínios, corrigir os seus erros logo à nascença. A ideia é simples, se queremos formar bons Maçons, temos de estar próximos. 

O abandono é o inimigo silencioso da Iniciação, quem defende esta posição acredita que muitos dos desvios que vemos em alguns Irmãos mais avançados talvez tenham começado precisamente aí, na ausência de quem os orientasse no momento certo.

Este modelo, mais próximo da pedagogia clássica, propõe que o erro deve ser evitado na origem e que a primeira abordagem a um conceito deve ser guiada, para que o entendimento não fique enviesado. Há aqui um zelo, até nobre, que parte da convicção de que se deve cuidar do Aprendiz como quem planta uma árvore.  É preciso tutorá-la, protegê-la do vento, guiá-la na direcção certa.

Após o aprendiz ter as suas raízes estáveis, pode partir para um caminho solitário e de autoaprendizagem pois, a profundidade das raízes não vai permitir que ele saia do terreno em que se encontra.

Confiança na Jornada

Mas há outra forma de ver a mesma floresta. A Maçonaria é, por natureza, um caminho individual, cada um trilha o seu percurso de aperfeiçoamento com as ferramentas que lhe são dadas e claro também com as que for buscar por si próprio. A presença dos Irmãos é essencial, mas não para orientar os raciocínios, corrigir erros ou dirigir os trabalhos. É para inspirar, esclarecer quando solicitado, abrir portas e respeitar o ritmo de cada um.

Nesta visão, o erro faz parte do processo iniciático, não deve ser evitado a todo o custo, mas sim integrado, compreendido e ultrapassado. Não há crescimento sem tentativa e não há liberdade sem responsabilidade. 

Os Aprendizes são buscadores, com intuições próprias, dúvidas legítimas e formas únicas de interpretar os símbolos. A instrução existe. e é crucial, mas nem toda se dá com um Mestre ao lado. Ela acontece nas suas buscas, em Loja, entre colunas, no exemplo dos outros, nas leituras, na repetição do ritual, nas pranchas, na reflexão individual. 

O Mestre pode orientar, provocar, lançar desafios. Mas se precisar de estar sempre presente para que algo aconteça, talvez esteja a impedir mais do que a ajudar.

O Que Está em Causa

No fundo, o desacordo não é sobre a importância da instrução, nisso concordam. A questão é o método, e, acima de tudo, o limite entre orientar e condicionar.

A posição da Presença Activa parte de uma boa intenção, evitar os desvios e erros precoces de forma que o caminho se faça sem percalços. Mas corre o risco de transformar o processo iniciático numa tutoria constante, que restringe o leque de ideias ao essencial e direcciona a forma de pensar. 

Da mesma forma que o erro pode ser aceite, também existem exemplos de erros que saíram caros tanto à maçonaria como às lojas e, individualmente, aos próprios maçons. Assim, uma Presença Activa ajuda a que o erro seja evitado desde o início.

A posição da Confiança na Jornada defende que o verdadeiro Mestre é aquele que aponta o norte e depois confia que o Aprendiz saberá, a seu tempo, lá chegar, mesmo que se possa perder algumas vezes no caminho.

Pode errar? Claro. Mas também pode surpreender. A Maçonaria precisa, talvez mais do que nunca, de aprendizes que surpreendam, não que repitam, que errem, mas que aprendam.  

Discordar Também é Construir

No fim deste diálogo, ninguém perdeu, só a Maçonaria ganhou. Ambos têm razão na sua visão. Um vê os perigos do abandono; o outro, os riscos do excesso de tutela. Do mesmo ritual surgiram duas interpretações diferentes.

Ambos protegem o que mais importa, o processo de crescimento. A discordância é sobre a distância certa a manter e sobre o que significa, afinal, "acompanhar".

Talvez, como em quase tudo na Maçonaria, a resposta esteja no equilíbrio. Entre presença e ausência. Entre direcção e liberdade. Entre o malhete que guia e o silêncio que permite descobrir. Porque cada caminho é único, mas nenhum se faz sozinho. 

Mais vale discordar e debater, do que afirmar a embirrar. 

João B. M∴M∴ /  D∴ G∴ M∴M∴

17 julho 2025

Quando a forma engana a essência

 "Quem acolhe um lobo julgando tratar-se de cão, descobrirá tarde demais que não é o latido que o define, mas os dentes."

Às vezes, abrimos a porta a alguém que não iniciou pelo nosso caminho iniciático., chega por transferência de outra, tudo regular, tudo conforme. Inquirido e Iniciado por outros irmão. Confiamos, porque queremos confiar, porque a confiança é parte do que somos e, talvez, porque baixamos a guarda quando um Irmão nos é apresentado por outro.

O processo foi cumprido, não houve irregularidade formal, mas falhámos no essencial. Devíamos ter esperado, devíamos ter observado, devíamos ter conhecido antes de acolher. Não o fizemos. Era prático, parecia seguro, mas principalmente porque confundimos silêncio com humildade, e dicção com profundidade.

Esse Irmão, ou ex irmão, antigo irmão, "reprofano", lia actas como ninguém, também pranchas o deveria fazer, mas nunca o ouvi. Tinha boa voz, tom grave, ar seguro, mas não construía um pensamento, não ligava ideias, nunca debateu para aprender, apenas para minar. 

Maltratava Aprendizes, deixava Companheiros desmotivados, e guardava sempre os comentários mais venenosos para os bastidores. Era cortês com os Mestres, mas pelas costas afiava cada palavra.



Os mais novos sentiam-se expostos, por vezes até aterrorizados, vi-me obrigado a intervir para que situações não escalassem. E durante demasiado tempo, deixámos andar. Porque a Loja estava habituada a confiar, porque ninguém queria ser o primeiro a desconfiar. Até que as mensagens se acumularam, e a serpente revelou a pele.

Quando decidiu sair, fê-lo sem confronto. Tentou voltar, por outra porta, para outra Loja E aí, não hesitámos. A votação foi rápida, clara, unânime, definitiva, sem dúvidas. Não pelo que foi, mas pelo que sabíamos que voltaria a ser, não poderíamos permitir que outros Irmãos passassem pelo que nós passámos, não seríamos cúmplices de não fazer nada quando o deveríamos ter feito, já tínhamos tido uma oportunidade e desperdiçamo-la, desta vez em vez de esperar para ver se o fogo ateava, não demos fosforos para que

Procurou depois abrigo noutro espaço, fora da nossa Obediência, onde as regras são outras. Aí já nada podemos fazer, mas a nossa lição está aprendida.

Este texto não é sobre ele, é sobre nós. Sobre como até uma Loja experiente pode falhar., sobre como até entre colunas bem assentes pode rastejar o que nos divide. E sobre como há momentos em que proteger a cadeia é saber dizer não, meter uma bola preta e encerrar a questão.

Como é do conhecimento de todos, cada macieira dá fruto em abundância, mas de vez em quando também uma maçã podre. É da sua natureza. A nossa tarefa é saber colhê-las com discernimento. e quando a serpente aparece, não é com violência que se responde, mas com firmeza, vigilância e memória.

Que esta lição nos fique gravada. A forma engana, mas a essência, mais cedo ou mais tarde, revela-se.

João B. M∴M∴