O regresso da tolerância
Permito-me apenas fazer notar três pontos.
O primeiro é a confirmação de que o início do conceito advém no âmbito da religião ou, talvez melhor dito, do confronto de religiões. O conceito virá a evoluir para além deste específico campo de aplicação, com a inevitável densificação do seu significado.
O segundo é que, salvo melhor opinião, com a Reforma, aparece a questão da tolerância, mas sem tratamento filosófico desenvolvido, sendo com Locke que surge a primeira estruturação consistente do conceito.
O terceiro é que a visão de Locke sobre o assunto é duplamente importante: em termos gerais, porque, enquanto no Continente Europeu, lidar com as diferentes opções religiosas cristãs era um problema de ´"nós" e "eles", já que ocorreu uma verdadeira distribuição geográfica entre católicos e protestantes, em função da opção dos detentores do poder político em cada região (onde o senhor permaneceu católico, o povo assim continuou; onde o senhor aderiu à Reforma, todos os seus súbditos foram levados a fazê-lo), na Grã-Bretanha a mesma questão punha-se em termos muito mais pessoais e directos, já que, por força da sua particular evolução histórica (Henrique VIII e as vicissitudes, políticas e pessoais, que originaram a rotura com o Papado e a criação da Igreja de Inglaterra), aí se deu uma efectiva divisão interna entre católicos e protestantes, com lutas e perseguições mútuas, e, portanto, aí ganhou uma particular relevância a questão da Tolerância religiosa; em termos particularmente relevantes para a Maçonaria, pela evidente influência que o pensamento de Locke teve na génese da Maçonaria especulativa, cuja gestação estava em curso aquando da publicação das três cartas de Locke sobre a Tolerância, visível, designadamente, pela específica referência que ao tema é dada no Sexto Landmark.
Quanto ao conceito exposto por Locke, referenciado no texto Tolerância: o início enquanto conceito filosófico, a leitura do resumo efectuado por Carlos Fontes elucida-nos claramente que, ao contrário do entendimento apresentado pelo JoséSR (que, recorde-se, foi a questão subjacente a todo o conjunto de textos sobre o tema no corrente mês de Janeiro), não integra tal conceito a noção ou postura de superioridade do "tolerante" para com o "tolerado".
Pelo contrário, quer na fundamentação da necessidade da tolerância, quer na sua justificação filosófica, Locke enfatiza a igualdade, a paridade entre pessoas com entendimentos e vivências divergentes.
Não há qualquer superioridade, antes intrínseca igualdade, quando se defende que
A única coisa que é importa no cristianismo é a salvação das almas, a qual dependente unicamente da conduta que os indivíduos levarem. Deus irá julgá-los não pelas ideias que manifestaram sobre a interpretação da doutrina, mas sobre a sua conduta, isto é, se foram ou não virtuosos.
Ou ainda quando se entende que
Todos os homens são iguais e nenhum tem mais direitos que outro.
Ninguém se pode arvorar com mais autoridade que o seu semelhante em matéria de religião. Os sacerdotes, como os magistrados são homens, neste sentido estão face a Deus em igualdade de circunstâncias como quaisquer outros.
A Tolerância funda-se, pois, na Igualdade. E é em nome da Igualdade que devemos aceitar os que pensam ou crêem de forma diferente de nós. Tolerância não é Concordância. Pelo contrário, só havendo discordância se justifica que surja a Tolerância. Mas a Discordância, embora se funde na noção de que "eu entendo que o meu pensamento é mais correcto do que o teu", também não implica qualquer noção de superioridade. Pelo contrário, discorda-se do que se entende estar ao mesmo nível do que nós pensamos (senão, nem nos daríamos ao trabalho de manifestar discordância...).
Em reumo, e citando uma definição que li aqui (COMTE-SPONVILLE, André - Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Lisboa : Ed. Presença, 1995, p. 170-185, um texto muitíssimo interessante sobre o tema e cuja leitura vivamente recomendo, mas infelizmente demasiado longo para ser aqui transcrito), Tolerante, pelo contrário, impôs-se, tanto na linguagem corrente como filosófica, para designar a virtude que se opõe ao fanatismo, ao sectarismo, ao autoritarismo, enfim, à intolerância.
Ou seja, o fanático, o sectário, o autoritário, é que funda o seu fanatismo, o seu sectarismo, o seu autoritarismo numa pretensa superioridade de que se arroga; não é o seu oposto, o tolerante, que padece de tal vício!