15 janeiro 2011

Os que ficam pelo caminho


"Nem todos os Aprendizes chegam a Companheiros. Nem todos os Companheiros ascendem a Mestres. E seguramente que nem todos os Mestres virão a exercer o ofício de Venerável Mestre. É assim a realidade!" Assim escreveu o Rui Bandeira num texto publicado em 2008, ainda não tinha eu recebido o meu avental branco. Na altura, quando o li, achei estranho o tom, a naturalidade, e o que tomei por critérios de seleção apertadíssimos. Recordo-me de ter pensado algo como "Estes tipos não brincam em serviço... Devem ser bestialmente exigentes, e só escolhem os melhores para progredir... Isto devem ser chumbos de três em pipa..."

Estava tão enganado!

Com o tempo vim a perceber que dificilmente a Loja "chumbava" fosse quem fosse, a não ser nas circunstâncias mais excecionais, mas que, não obstante, o Rui tinha razão: havia muitos que ficavam pelo caminho. Mas se a Loja não chumbava ou impedia a progressão, quem o fazia então? Ora... o próprio, quem mais?! Comecei a perceber que por detrás de cada nome que era chamado no início da sessão pelo Secretário e a que se seguia um silêncio em vez de ser anunciada a presença se encontrava um Irmão que não viera. E que os nomes que eu ouvia repetidamente e a que não associava uma cara eram de Irmãos que, de todo, não apareciam.

Uns - já Mestres - haviam-se desencantado, suponho, com a rotina da vida da Loja, e tinham agora outros entreténs - razão por que não punham os pés numa Sessão fazia tempo. Outros tinham, simplesmente, prioridades - frequentemente profissionais ou familiares - que se impunham sobre a presença em Loja, ou não tinham de todo disponibilidade para integrar a Linha de Sucessão assumindo um Ofício. Uns e outros lá iam aparecendo, uns mais e outros menos frequentemente, mas alguns desapareciam completamente de circulação.

A outros - ainda Companheiros - sucedia perderem o estímulo, ou não aguentarem tanto tempo sem poder falar e sem ser exaltados a Mestre. Ao fim de um tempo, também alguns destes começavam a faltar, a envolver-se pouco, e a certa altura eram, também eles, um desses nomes que se ouve e se associa a uma cara, mas que se tem uma certa nostalgia de não ver há meses...

Por fim, alguns Aprendizes eram iniciados, achavam graça à coisa, mas não tinham vida nem disponibilidade para pertencer a uma Loja que se reúne duas vezes por mês em dias e horas certos. Outros, quiçá mal conduzidos ou defeituosamente escrutinados, acabavam por se aperceber que a Maçonaria não lhes fazia vibrar corda nenhuma, e desapareciam.

Alguns interiorizavam que não queriam mais pertencer à Maçonaria, e pediam para sair. Outros, divididos entre o querer e o não poder, não assumiam a impossibilidade de permanecer, e iam ficando sem ficar. A certa altura, já nem as quotas pagavam, nem asseguravam os "mínimos olímpicos" da assiduidade - nós nem somos esquisitos: uma presença por ano basta-nos - e tinha que se lhes chamar a atenção para que cumprissem com os seus deveres.

E de facto confirmei ser precisamente assim, como o Rui tinha dito: há os que ficam pelo caminho, e os que vão progredindo de degrau em degrau, uns mais depressa e outros mais lentamente. Por vezes, alguns metem-se por becos sem saída e, ou adormecem, ou corrigem o percurso. Mas se é sempre triste vermos um irmão sentar-se na beira do caminho, descalçar as botas e adormecer encostado a uma árvore - pois sabemos que a maioria ficará ali para sempre - já nos enche de orgulho ver um irmão subir mais um degrau, assumir mais uma responsabilidade, receber mais um reconhecimento.

Os caminhos são muitos, e o destino é cada um que o escolhe. Não é, portanto, a Loja que é exigente e o "chumba" - pois para isso teria que ser a Loja a determinar os objetivos, e estes pertencem a cada um. É antes o Maçon que é muito ocupado, desiludido, ou simplesmente complacente, e se retira pelo seu pé. E assim deve ser. É que a Maçonaria não é para todos: é só para aqueles que de facto queiram - e façam por isso.

Paulo M.

12 janeiro 2011

Origem e primórdios do Rito Escocês Antigo e Aceite - Introdução

O Rito Escocês Antigo e Aceite é hoje um dos mais praticados ritos maçónicos no Mundo. Milhares e milhares de maçons o executam. Os seus ensinamentos são objeto de reflexão. As suas cerimónias tocaram e tocam o coração dos que neste rito trabalham. Embora com as normais variantes locais, é hoje um rito estabilizado, em que cada um, independentemente da sua língua ou da especificidade nacional, em qualquer parte do mundo o reconhece e facilmente se integra na sua execução. No entanto, poucos conhecem a sua origem e as vicissitudes dos seus primórdios - no fundo, aquilo que fez deste rito o que ele é hoje.

Nos Estados Unidos - apenas com a residual exceção de meia dúzia de "lojas vermelhas" na Louisiana - o Rito Escocês Antigo e Aceite não é praticado nos três graus simbólicos (Aprendiz, Companheiro e Mestre), existindo apenas como Sistema de Altos Graus, os chamados graus filosóficos. Na Europa, na América Latina e um pouco por todo o resto do Mundo, porém, o Rito Escocês Antigo e Aceite é trabalhado nos três primeiros graus (graus simbólicos) em Lojas agrupadas em Grandes Lojas ou Grandes Orientes, dedicados apenas ao trabalho nos "graus da Ordem" (Cratf degrees), os ditos três primeiros graus, ou graus simbólicos, de Aprendiz, Companheiro e Mestre, e nos restantes graus em Lojas, Capítulos ou Conselhos de Altos Graus ou graus filosóficos, normalmente sob a égide de Supremos Conselhos do Rito.

Que originou esta diferença?

E porque é que o Rito é Escocês? Terá sido por ter sido criado na Escócia? Terá - como algumas lendárias teses ciclicamente ressurgidas defendem - alguma coisa a ver com a mítica e escocesa Rosslyn Chapel e os não menos míticos Cavaleiros Templários alegadamente fugidos para aquele País, na sequência da destruição da Ordem do Templo pelas atuações conjugadas de Filipe IV, dito o Belo, mas certamente não de caráter, e do Papa Clemente V, que de clemente bem pouco teve?

E porque é que é Antigo? Porque existe desde tempos imemoriais, evoluindo em linha direta desde os tempos dos Mistérios egípcios, passando pelos geómetras gregos, pelos Cruzados e desembocando nos humildes canteiros europeus, pelo ramo popular, e nos orgulhosos Cavaleiros, pela via nobiliárquica? Ou simplesmente será Antigo por oposição a algo que era considerado Moderno?

E porquê Aceite? Em contraposição a algo que o não era? Ou tem esta designação algo a ver com os cavalheiros que, não sendo trabalhadores do ofício da construção em pedra foram aceites nas Lojas reguladoras do dito ofício?

E é tal Rito uma criação de alguém determinado, designadamente o também mítico Cavaleiro Andrew Michael Ramsay, ou simplesmente Chevalier Ramsay, ou resulta de contribuições dispersas?

Foi propositadamente estruturado e organizado? Ou é o resultado, o que sobreviveu, de uma confusa proliferação de ritos e graus?

Cada cabeça, sua sentença! Muitas lendas, bastantes interpretações ad hoc e considerações que na realidade no sei veras, embora nos atraiam por serem bene trovatas por aí pululam relativamente ao REAA.

Não sou historiador. Não estou por isso capacitado para dar uma versão cientificamente fundada dos factos que deram origem ao rito. Mas, sendo um leitor compulsivo e voraz e tendo-me habituado a pensar pela minha cabeça, penso poder dar uma opinião não demasiadamente infundamentada de como realmente apareceu e se estruturou o rito, procurando destrinçar factos de lendas, sucessos de especulações, acontecimentos de ficções.

E, por falar em factos, estabeleça-se já o primeiro: o Rito Escocês Antigo e Aceite estruturou-se ao longo do século XVIII e fixou-se na sua forma muito semelhante à atual no início do século XIX.

Como e em que circunstâncias, é o que começarei a tentar explicar a partir do próximo texto.

Rui Bandeira

10 janeiro 2011

Porquê "meu irmão", e não "meu amigo"?


Os maçons tratam-se, entre si, por "irmão", tratamento que é explicitamente indicado a cada novo maçon após a sua iniciação. Imediatamente após terminada a sessão de Iniciação é normal que todos os presentes cumprimentem o novo Aprendiz com efusivos abraços, rasgados sorrisos e, entre repetidos "meu irmão", "meu querido irmão" e "bem vindo, meu irmão", recebe-se, frequentemente, mais afeto do que aquele que se recebeu na semana anterior.

O que seria um primeiro momento de descontração torna-se, frequentemente, num verdadeiro "tratamento de choque", num momento de alguma estranheza e, quiçá, algum desconforto para o novo Aprendiz. Afinal, não é comum receber-se uns calorosos e sinceros abraços de uns quantos desconhecidos, para mais quando estes nos tratam - e esperam que os tratemos - por irmão... e por tu! Sim, que outro tratamento não há entre maçons, pelo menos em privado - que as conveniências sociais podem ditar, em público, distinto tratamento.

O primeiro momento de estranheza depressa se esvai - e os encontros seguintes encarregam-se de tornar naturalíssimo tal tratamento, a ponto de se estranhar qualquer "escorregadela" que possa suceder, como tratar-se um Irmão na terceira pessoa... Aí, logo o Aprendiz é pronta e fraternalmente corrigido, e logo passa a achar naturalíssimo tratar por tu um médico octogenário, um político no ativo, ou um professor universitário. E de facto assim é: entre irmãos não há distinção de trato.

Não se pense, todavia, que todos se relacionam do mesmo modo. Afinal, não somos abelhas obreiras, e mesmo entre essas há as que alimentam a rainha ou as larvas, as que limpam a colmeia, e as que recolhem o néctar. Do mesmo modo, todos os maçons são diferentes, têm distintos interesses, e não há dois que vivam a maçonaria de forma igual. É natural que um se aproxime mais de outro, mas tenha com um terceiro um relacionamento menos intenso. Não é senão normal que, para determinados assuntos, recorra mais a um irmão, e para outros a outro - e podemos estar a falar de algo tão simples quanto pedir um esclarecimento sobre um ponto mais obscuro da simbologia, ou querer companhia ao almoço num dia em que se precise, apenas, de quem se sente ali à nossa frente, sem que se fale sequer da dor que nos moi a alma.

Mas não serão isto "amigos"? Porquê "irmãos"? Durante bastante tempo essa questão colocou-se-me sem que a soubesse responder. Sim, havia as razões históricas, das irmandades do passado, mas mesmo nessas teria que haver uma razão para tal tratamento. O que leva um punhado de homens a tratarem-se por "irmão" em vez de se assumirem como amigos? Como em tanta outra coisa, só o tempo me permitiu encontrar uma resposta que me satisfizesse. Não é, certamente, a única possível - mas é a que consegui encontrar. 

Quando nascemos, fazêmo-lo no seio de uma família que não temos a prerrogativa de escolher. Ninguém escolhe os seus pais ou irmãos de sangue; ficamos com aqueles que nos calham. O mais natural é que, em cada núcleo familiar, haja regras conducentes à sua própria preservação e à de todos os seus elementos, regras que passam, forçosamente, pela cooperação entre estes. É, igualmente, natural que esse fim utilitário, de pura sobrevivência, seja reforçado por laços afetivos que o suplantam a ponto de que o propósito inicial seja relegado para um plano inferior. É, assim, frequente que, especialmente depois de atingida a idade adulta, criemos laços de verdadeira e genuína amizade com os nossos irmãos de sangue, que complementa e de certo modo ultrapassa, em certa medida, os meros laços de parentesco.

Do mesmo modo, quando se é iniciado numa Loja - e a Iniciação é um "renascimento" simbólico - ganha-se de imediato uma série de Irmãos, como se se tivesse nascido numa família numerosa. Neste registo, os maçons têm, uns para com os outros, deveres de respeito, solidariedade e lealdade, que podem ser equiparados aos deveres que unem os membros de uma célula famíliar. Porém, do mesmo modo que nem todos os irmãos de sangue são os melhores amigos, também na Maçonaria o mesmo sucede. Não é nenhum drama; o contrário é que seria de estranhar. Diria, mesmo, que é desejável e sadio que assim suceda, pois a amizade quer-se espontânea, livre e recíproca. E, tal como sucede entre alguns irmãos de sangue, respeitam-se e cumprem com os deveres que decorrem dos laços que os unem, mas não estabelecem outros laços para além destes. Pode acontecer - e acontece. Mas a verdade é que o mais frequente é que, especialmente dentro de cada Loja, cada maçon encontre, de entre os seus irmãos, grandes amigos - e como são sólidos os laços de amizade que se estabelecem entre irmãos maçons!

Paulo M.

05 janeiro 2011

A burocracia e a Loja


Uma Loja maçónica não se dedica apenas ao estudo do simbolismo, ao compartilhamento de saberes, experiências, opiniões, reflexões, nem à execução e aperfeiçoamento rituais, nem ainda às cerimónias próprias da Arte Real. Uma Loja maçónica tem também que assegurar a parte burocrática do seu funcionamento.

Muitas Lojas têm, por natureza, esse fardo aligeirado, porquanto constituíram associações de direito civil que lhes conferem personalidade jurídica e é no âmbito dessas associações e dos seus Corpos Gerentes que as tarefas burocráticas inerentes às obrigações do coletivo perante o Estado são realizadas. Mas, ainda assim, muitas tarefas de cariz burocrático respeitam apenas à Loja e são responsabilidade dela própria.

A forma de lidar com estes assuntos são diversificadas. Temos desde a forma de funcionamento de muitas (talvez a maior parte) das Lojas americanas, que dedicam grande e enfadonha parte de muitas das suas reuniões a aprovar, uma por uma, as despesas da Loja e do Templo, por mais corriqueiras (eletricidade, água) que sejam - porque só se paga o que for autorizado em Loja que seja pago - às Lojas que delegam numa Comissão de Oficiais o tratamento dessas questões, limitando-se a, em regra anualmente, tomar conhecimento dos relatórios das atuações tidas e a preconizar as diretrizes a serem seguidas no ano subsequente.

A Loja Mestre Affonso Domingues está entre estes dois extremos. Muitas matérias são decididas pelo Venerável Mestre ou pelas Luzes (o Venerável Mestre e os dois Vigilantes), ou por uma das Comissões de Oficiais (Administrativa, de Beneficência, de Justiça). Mas um número não negligenciável de assuntos são, quer por razões e prática rituais, quer por tradição, quer pela prática da Loja, decididos em sessão de Loja: assuntos disciplinares (felizmente, poucos e raros), de fixação de quotas ou comparticipações para despesas, admissão de novos elementos, alterações regulamentares, opções de gestão ou de organização, etc..

Consoante as solicitações do género, o Venerável Mestre pode optar por diluir o tratamento das questões burocráticas no trabalho geral, reservando um espaço de tempo, geralmente curto, para resolver uma ou duas questões dessa natureza por sessão, ou, se o volume ou complexidade das matérias que há que tratar é grande, dedicar uma ou duas sessões (de preferência sem serem seguidas) para arrumar os assuntos burocráticos todos de uma vez e por um tempo razoável.

As questões administrativas são cansativas e nada apelativas – todos o sabemos. Mas é indispensável delas tratar. Uma orquestra executa música e é isso que os músicos gostam de fazer. Mas uma orquestra não conseguirá produzir música de qualidade se os músicos não se dedicarem às menos interessantes tarefas de cuidar dos seus instrumentos, de bem os guardar, de organizar a sua colocação na sala de concertos, de preparar as pautas, enfim, todas as “questões administrativas” menores mas indispensáveis para que a orquestra execute música.

Também uma Loja maçónica não pode abstrair das questões de organização e de gestão administrativa. Consideramo-las menores e aborrecidas. Mas são essenciais para nos podermos dedicar ao que gostamos de fazer, ao que queremos fazer, ao que necessitamos de fazer: aprender em conjunto a ser cada um de nós um pouco melhor a cada momento.

Gostamos de aparelhar, polir e pousar nossas pedras no Templo que ensaiamos de construir. Mas só o podemos fazer devidamente se mantivermos as nossas ferramentas em ordem, o nosso local de trabalho ordenado e agradável, os nossos materiais preparados e ordenados.

Costuma-se dizer que tão necessários são os solistas como os carregadores de piano. Nós, maçons, procuramos levar mais longe essa ideia: carregamos o piano e os outros instrumentos, ensaiamos e tocamos em conjunto e, quando podemos, ainda nos atrevemos, aqui e acolá, a uns solos...

Numa Loja, como em quase tudo na vida, todos gostamos de brilhar. Mas, para o conseguir, também é preciso puxar do pano e da solarina...

Rui Bandeira

31 dezembro 2010

A (im)perfeição e as Old Charges (III)



Para além da questão da deficiência física coloca-se a da deficiência mental. Poderá um deficiente mental ser iniciado maçon? Neste caso, a porta já não se abre tanto quanto face à deficiência física, mas também não se fecha de todo. É tudo uma questão da natureza e das consequências da deficiência. Um profano, para ser iniciado maçon, tem que ser "livre e de bons costumes". A pedra de toque da questão da deficiência mental coloca-se, precisamente, na liberdade. Há três vertentes em que se exige que uma pessoa seja livre se quer ser admitido:

- Liberdade da luta pela auto-suficiência. Para ser admitida na maçonaria, uma pessoa tem que dispor dos meios económicos para se bastar a si mesma de modo que o sustento diário não seja uma preocupação tal que se sobreponha a todo o resto. Não está em causa a quantidade dos rendimentos, mas que este sejam suficientes e adequados ao garante do sustento do próprio e daqueles que tenha a cargo - descendentes ou ascendentes. Deve, ainda, permitir que os custos decorrentes da pertença à maçonaria (quotas, material, etc.) não causem transtorno. Uma pessoa que viva constantemente assoberbada com o que vai amanhã colocar na mesa para os filhos, ou falte mesmo aos seus deveres familiares, não tem disponibilidade mental para ser maçon - decorra essa carência económica ou não de deficiência mental.

- Liberdade de pensamento. Uma pessoa que não seja livre de poder, voluntariamente, alterar a sua forma de pensar não tem lugar na maçonaria, pois a maçonaria tem como objetivo o aperfeiçoamento do Homem, e aperfeiçoar-se é, forçosamente, mudar. Ora, procurar aperfeiçoar-se é sinal de que se admitiu já a própria imperfeição, e isto só pode ter decorrido de uma auto-análise - que, por sua vez, só pode ter tido lugar numa mente suficientemente ordenada para a ter efetuado. Por esta razão, quem não tenha a capacidade de ver e aceitar como válido um ponto de vista distinto do seu - o que sucede, por exemplo, com alguns fundamentalistas, cujas crenças podem ser rígidas a ponto de que o impeçam de pensar por si mesmo - também não está apto, independentemente da sua sanidade mental, a ser iniciado.

- Liberdade de agir em consciência. Uma pessoa incapaz de pôr em prática os seus próprios desígnios e de agir de acordo com os ditames da sua consciência dificilmente poderia tirar algum proveito da maçonaria. Se a maçonaria não tiver repercussões na forma de agir do maçon, então estamos perante um caso de insucesso. É essencial que o maçon não só tenha uma consciência bem formada - uma boa noção do bem e do mal - como paute o seu modo de agir por esses mesmos princípios. Uma pessoa que, em virtude de uma dependência (do jogo, de uma droga...) que condicione a sua vontade, não possa agir em consciência - não porque esta não exista, mas porque a sua concretização esteja fortemente condicionada - não deverá ser iniciada.

Não esqueçamos, por fim, que o conceito de normalidade é puramente arbitrário e estritamente decorrente das características da população em que o indivíduo se insira: um indivíduo "normal" numa população pode ser "anormal" se inserido noutra. A fronteira tem que ser traçada algures, mas isso quer dizer o quê? Que, se a pessoa estiver num dia bom, pode ser iniciada, e depois, num dia mau, é excluída? Mas não temos todos momentos melhores e piores, de maior ou menor lucidez, uns mais felizes do que outros?

Uma pessoa dependente do álcool a ponto de que isso perturbe a sua vida quotidiana está tão privada de liberdade de ação como uma pessoa que tenha o espírito igualmente embotado mas sem que tal decorra da bebida. Ou um fanático religioso pode ser tão inabalável e impermeável à mudança quanto um obsessivo-compulsivo. Não é a deficiência mental, em si mesma, o obstáculo, mas as limitações - que podem ter variadas origens para além da deficiência mental - a que a liberdade do indivíduo esteja sujeita.

Pretender que apenas seres perfeitos e perfeitamente livres se tornem maçons seria um contrassenso. Por não existirem homens perfeitos, seria esta uma excelente receita para se acabar com a maçonaria. Mas, acima de tudo, a maçonaria é um método de aperfeiçoamento - e só se aperfeiçoa quem não é perfeito. Pedras polidas não precisam de desbaste - e liberdade absoluta não existe. Como em tantas outras coisas, aqui só podemos socorrer-nos das linhas gerais e, para cada caso particular, aplicar uma das mais importantes regras: a do bom senso.

Paulo M.

P.S.: Este é o meu último texto deste ano. Para todos, um feliz ano novo de 2011!

29 dezembro 2010

Paulo Guilherme D'Eça Leal, maçom irreverente


Passou ao Oriente Eterno em 9 de outubro deste ano, após uma profícua e criativa vida de setenta e oito anos. A notícia da sua saída deste mundo físico foi publicada em vários órgãos de comunicação social, seguida do habitual rol de realizações, breve historial de vida em meia dúzia de linhas. Sim, foi ilustrador - prolífico e genial. Sim, foi decorador de edifícios emblemáticos (a sede do Banco Pinto e Sotto Mayor, no Porto, por encomenda de António Champalimaud, o Aeroporto de Lisboa, o Museu do Centro Cultural de Macau em Lisboa). Sim, foi pintor e escultor de qualidade que permanecerá reconhecida. Sim, foi escritor, contista, investigador do esotérico. Sim, foi autor de diversos selos, moedas e medalhas. Sim, foi cenógrafo. Sim, foi, em resumo, um artista multifacetado, que espalhou a sua criatividade, qualidade e originalidade.

Mas, para mim, para nós, os mais antigos da Loja Mestre Affonso Domingues, foi simplesmente o Paulo Guilherme, um dos nossos, um pouco, um tudo nada, excêntrico, um espírito vivo e irreverente. E uma língua afiada também...

O Paulo Guilherme fez parte da Loja Mestre Affonso Domingues nos anos noventa. A sua permanência entre nós foi mais breve do que ele e nós gostaríamos. Nunca chegou a ser exaltado Mestre maçom. Foi iniciado Aprendiz e passado a Companheiro maçom.

Depois, a doença que, anos mais tarde, veio a vitimar o seu invólucro físico revelou-se. Fumador inveterado, o cancro da laringe apareceu. E foi o calvário dos tratamentos, a operação, a perda das cordas vocais, a incapacidade de falar, a aprendizagem da fala pelo esófago, com o auxílio do amplificador que gera aquela estranha voz metálica. Outras prioridades assolaram o Paulo Guilherme. A doença forçou-o a ficar mais caseiro. O trabalho em Loja não mais foi uma prioridade séria. E o Paulo Guilherme fez aquilo que um maçom que se preza deve fazer, quando as circunstâncias e a vontade própria a isso obrigam: pediu o seu quite e adormeceu.

Mas sempre permaneceu interessado na busca esotérica a que dedicou a parte final da sua vida. O seu estudo e tese sobre a Pirâmide de Quéops aí estão para o demonstrar.

À distância, foi mantendo contacto com alguns de nós. Em particular, com o Luís R. D., com quem, de longa data, manteve laços de amizade. Na parte final da sua vida, alguns contactos manteve comigo, também.

A idade, a doença e a debilidade foram-no tornando um pouco mais rezingão do que o habitual. Mas o génio, o vivo espírito crítico, a autoconfiança, esses, permaneceram sempre. O Paulo Guilherme foi, de facto, um artista com um génio admirável. A sua ironia enfeitiçava-me. A sua cultura maravilhava qualquer um.

Tenho pena que a doença e as circunstâncias tenham impedido que o Paulo Guilherme tivesse continuado mais tempo o seu percurso junto dos demais na Loja. Estou certo que, tivesse isso sido possível, ele deixaria uma intensa marca na Loja, quiçá inolvidável. Não posso deixar de tentar imaginar como seria se as coisas tivesse sido diferentes e o Paulo Guilherme tivesse permanecido até culminar o seu percurso com a sua Exaltação como Mestre Maçom, como seria se tivesse feito o normal percurso que todos na Loja fazemos até à Cadeira de Salomão, que surpreendente e inolvidável seria o seu tempo de Venerável Mestre da Loja. Não me atrevo a perspetivar se seria bom ou mau - sei, sem sombra de dúvida, que seria intensamente diferente!

Com o Paulo Guilherme, a Loja aprendeu a conviver com o génio algo excêntrico. Se ele a tivesse dirigido, teria sido, não duvido, algo de épico e inolvidável. Não sei se a Loja seria hoje melhor ou pior do que é. Mas de certeza, certezinha, que seria diferente!

A irreverência do Paulo Guilherme só não deixou marcas mais profundas na Loja porque a sua doença e as circunstâncias não deram tempo a que as sementes dela germinassem. Mas nós, os mais antigos, testemunhámos um pouco dessa irreverência. E eu tenho para mim que - é inevitável... - algum dia um outro artista de génio, também irreverente, deixará a sua marca na Loja. E então teremos um pouco da noção do que teria sido a marca do Paulo Guilherme na Mestre Affonso Domingues.

Paulo Guilherme, o artista nunca passa despercebido. E tu não o passaste na Mestre Affonso Domingues. Até um dia, em outra dimensão, que a todos nós espera! Suspeito que a esta hora, a marca da tua irreverência já se faz sentir e que, parafraseando o Poeta, o assento etéreo onde subiste já está, no mínimo, muito mais bem decorado! Olha, se puderes, faz um favor a este teu admirador: usa as tuas capacidades e faz lá uma ilustração de como agora o puseste. Sei que só em sonho a poderei ver - mas estou certo que vou gostar!

Rui Bandeira


25 dezembro 2010

A (im)perfeição e as Old Charges (II)


Em pleno século XIX houve diversas tentativas de se tornar menos estrita a regra que impedia a admissão de deficientes físicos na Maçonaria, alegando-se ser esta um legado dos tempos da maçonaria operativa. Algumas Grandes Lojas deixaram, mesmo, cair este requisito, exigindo apenas que o candidato tivesse a capacidade física estritamente necessária a que pudesse ser iniciado e receber os ensinamentos da Ordem. Mas logo vozes se elevaram, recordando que o que estava em causa era um dos landmarks da Maçonaria, que são por definição imutáveis, e por isso a questão não careceria sequer de mais discussão. Independentemente da origem do preceito residir na maçonaria operativa e ter, entretanto, deixado de fazer sentido, este deveria ser cumprido, sob pena da retirada do reconhecimento às Obediências que não o cumprissem e fizessem cumprir. Mas não se pense que, sem mais debate, a questão se ficava por aqui, ou que os argumentos alegados eram desprovidos de substância; pelo contrário.

Alegava-se, por exemplo, que a Bíblia descreve, repetidamente, como só um animal perfeito e sem mancha podia ser oferecido em sacrifício. Se o bicho tivesse a mínima imperfeição deixava de ser passível de ser oferecido em holocausto: ao Divino não se oferecia senão o que se tinha de melhor. Ainda nesta perspetiva, uma vez que, em Maçonaria Regular, se trabalha "À Glória do Grande Arquiteto do Universo" - donde decorre que o trabalho que se faz é feito em Sua intenção, sendo cada maçon a sua própria oferenda - a aplicar-se à letra o antigo princípio da perfeição da vítima sacrificial, poder-se-ia discorrer que um deficiente físico não seria "suficientemente bom" para ser oferecido ao Grande Arquiteto do Universo.

Outro dos argumentos teria que ver com a capacidade de trabalhar. A Maçonaria - mesmo a Especulativa - socorre-se do trabalho como forma e método de aprendizagem, pelo que a incapacidade para desempenhar tarefas úteis poria em causa todo o método maçónico. Por outro lado, é essencial que um maçon se baste a si mesmo, pois de outro modo não teria a disponibilidade mental para se aperfeiçoar enquanto pessoa. É uma questão de prioridades: primeiro o sustento do corpo, depois o apuramento do espírito.

A própria simbologia maçónica era usada como argumento. Discutia-se, com a maior seriedade, se, uma vez que a maçonaria tinha por objetivo a "construção do Templo" a partir das pedras que cada um ia tratando de polir, não seria contrário à mesma maçonaria aceitar pedras "tortas"? Que Templo Perfeito poderia a Maçonaria almejar construir à Glória do Grande Arquiteto se as pedras não fossem todas perfeitas?

Espantosamente, este debate ainda persiste; ainda há Obediências - Grandes Lojas - cujos regulamentos proíbem a admissão de deficientes físicos. Contudo, mesmo a maioria dessas admite que, se um Irmão ficar limitado (amputado, paralisado...) após a sua admissão, terá todo o apoio da loja.

Na Grande Loja Legal de Portugal/GLRP a questão, tanto quanto sei, não se coloca. As condicionantes à admissão são, de acordo com a Constituição e Regulamento Geral da GLLP, apenas que os candidatos sejam "homens livres e de bons costumes que se comprometem a pôr em prática um ideal de paz" , que tenham "o respeito pelas opiniões e crenças de cada um", e sejam "homens de honra, maiores de idade, de boa reputação, leais e discretos, dignos de serem bons irmãos e aptos a reconhecer os limites do domínio do homem, e o infinito poder do Eterno".

Pode argumentar-se que um deficiente físico não é inteiramente livre. Fosse esse um requisito - ser inteiramente livre - e não haveria quem pudesse ser admitido na maçonaria. Todos nós só o somos até certo ponto. Quanto à iniciação, será que se perde alguma coisa se for feita de cadeira de rodas? Claro que sim. Mas não se perde mais numa iniciação do que num passeio na cidade; quem está limitado sabe que o está, e em que medida.

E um surdo? Ou um cego? Poderão ser iniciados maçons? Não vejo porque não. Desde que aptos a comunicar, estou certo de que se providenciaria o que fosse razoável para os acomodar. Um surdo pode, por exemplo, ler nos lábios; e poderia "falar" por escrito, à falta de melhor. Um cego pode ouvir e falar - apesar de poder ser curioso ouvir da sua boca algumas fórmulas rituais que se referem à Luz e às Trevas, por exemplo, mas basta que interiorizemos que a Luz e as Trevas, em Maçonaria, são simbólicas, não precisando nós dos olhos para as poder entender, para que logo as suas palavras deixassem de soar estranhas.

Pode um amputado praticar natação? Ou um paraplégico jogar basquete? Sabemos que podem. E podem competir de igual para igual com uma pessoa não deficiente? Tenho as minhas dúvidas. Mas poderá a prática desportiva tornar a sua vida mais completa, incrementar a sua saúde, torná-los pessoas mais felizes? Disso já tenho a certeza. Do mesmo modo, poderá um deficiente físico tirar partido da maçonaria tanto quanto alguém que o não seja? Bom... em muitos casos até pode, mas admitamos que não podia. Seria essa lacuna, esse inultrapassável obstáculo, razão para que fosse impedido de atingir todo o resto?

Paulo M.

24 dezembro 2010

A distância não se mede em segundos

Porque se se medisse em segundos eu estaria a anos luz do A-Partir-Pedra.

E por que, quer queiremos quer não, para nós esta época tem um tratamento diferente, trago ao blog a imagem e as palavras que me ocorrem neste momento.

A imagem foi apanhada por mim há uma semana, as palavras são do nosso saudoso José Carlos Ary dos Santos que soube, nos poucos anos que viveu, escrever sentimentos como muito poucos alguma vez o fizeram.

Para todos o desejo de uma época de Paz, gozando a Paz mas, principalmente, fazendo a Paz.

É ela a saúde da Humanidade.



És meu irmão amigo

Tu que dormes a noite na calçada de relento
Numa cama de chuva com lençois feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençois feitos de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da mulher
Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e comboios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da mulher.
Ary dos Santos

JPSetúbal





23 dezembro 2010

Boas festas!


O "A-partir-pedra" deseja a todos Boas Festas,
e um ano de 2011 menos mau do que se antecipa!

Paulo M.

22 dezembro 2010

Elegia a um homem bom


Chegámos, a minha mulher e eu, ao hospital ao fim da tarde. Íamos visitar o pai de uma amiga que sabíamos estar gravemente doente. Encontrámo-lo rodeado pela família - a mulher e as duas filhas. Um olhar atento e alguns momentos chegaram-me para perceber que o seu estado não era apenas grave. A agonia começara. Não obstante, o homem doente estava lúcido. Fraco, muito fraco, mas lúcido. Não sei se consciente de que a travessia do umbral da eternidade estava próxima, mas lúcido.

Escondi o meu pensamento, proferi as palavras de conforto e encorajamento que devem ser levadas por quem visita quem está doente - esperando que às mesmas conseguisse conferir um pouco de credibilidade. Como é meu hábito (defesa?) nestas situações, procurei orientar a conversa para temas ligeiros e lançar um par de larachas que, por momentos embora, desanuviassem o ambiente. Senti-me grato por ter conseguido vislumbrar um par de sorrisos no homem doente. Pensei que, quando chegasse a altura de ser eu a fazer a mesma viagem que adivinhava que aquele homem não demoraria muito a fazer, também gostaria que alguém conseguisse fazer-me sorrir - a tal viagem é certa para todos nós, já que todos temos que a fazer, que se faça bem-disposto...

Da família que rodeava o homem, uma das filhas já se apercebera da iminência da partida. A outra guardava ainda uma réstia de esperança que a técnica médica ainda pudesse adiar o momento que a irmã já sentia chegando. A mãe de ambas, companheira de toda uma vida, incansavelmente acompanhava o seu marido, refugiando-se em pequenas coisas, não querendo pensar nem encarar o que temia sucedesse.

Uma hora depois, deixámos o homem doente. Outras solicitações de uma vida sempre atarefada nos aguardavam.

Na manhã seguinte, a notícia! O homem bom que tínhamos visitado, partira para o além desconhecido durante essa noite. A minha mulher soltou a sua emoção. Eu pensei - mas reservei para mim esse pensamento - que fora uma felicidade que a agonia tivesse sido breve. Vim a saber depois que a viagem fora feita durante o sono - e de novo dei graças por tal. A minha mulher, imersa na sua emoção, perguntava, insatisfeita, porque eram os bons que partiam quando tantos maus ficavam por aqui atormentando os seus semelhantes. Perguntei-lhe se sabia ela que se estava melhor aqui do que para onde se seguia...

Gostaríamos que os bons estivessem connosco sempre mais. Lamentamos a sua partida. Principalmente a família experimenta a orfandade da separação, o desgosto do desaparecimento. E tem de fazer o luto pela sua perda.

Quem não é crente, não tem, nestas ocasiões, arrimo para o sentimento de perda. Já quem crê em algo mais do que a materialidade que nos rodeia, sem deixar de sofrer o choque, tem a possibilidade de se consolar com a noção de que o fim deste caminho não é o fim do caminho, que, para além do que vemos e sentimos e sabemos, mais e diferente caminho existe para caminhar, não sabemos de que forma, como - mas existe.

O maçom confronta-se com a ideia do seu desaparecimento físico e aprende a não o temer, a entender que o momento inescapável é apenas uma passagem - um fim, mas também um novo princípio.

Um homem bom terminou a sua caminhada entre nós. Como todos os que gostam da companhia de quem é bom, lamento que essa companhia tenha cessado. Mas creio que a razão porque a sua presença física cessou foi apenas porque a sua missão aqui foi cumprida. Nova missão, novo desafio, nova jornada, encetou - como todos nós havemos de encetar. Foi cedo de mais? Poderia a Providência ter-lhe dado, a ele e aos seus e a todos nós um pouco mais de tempo para apreciarmos a nossa mútua companhia? É humano que o desejemos. Mas a hora foi esta porque a sua missão aqui fora ultimada, cumprida, realizada - e com êxito! Já o homem bom era, porventura, mais necessário onde seu espírito agora prossegue a sua caminhada.

Os bons vão primeiro? Pudera! É por serem bons que melhor e mais depressa cumprem a sua missão aqui!

O solstício de inverno - que hoje decorre - lembra-nos que a escuridão, o frio, a noite longa e o dia breve, o fim, afinal são um recomeço e, a partir do ponto de transição, a escuridão pouco a pouco de novo cede o lugar à luz, o frio desaparece, a noite se encurta e o dia se alonga, o fim é afinal um novo princípio.

É disto que nos devemos lembrar sempre que vemos partir um homem bom.

(Homenagem a um homem bom que partiu).

Rui Bandeira

20 dezembro 2010

A (im)perfeição e as Old Charges (I)


No Livro das Constituições de Andersen, de 1723, aprovado por maçons ilustres como Desaguliers, Cowper e Payne - reputados e reconhecidos pela sua sabedoria maçónica - podem encontrar-se estas palavras: "The men made masons must be free-born, no bastard, and of mature age, and of good report, hale and sound, not deformed, or dismembered at the time of their making" (Os homens feitos maçons devem ter nascido livres, não bastardos, de idade madura, boa fama, saudáveis e sãos, não deformados ou amputados na altura da sua admissão). Isto levanta a questão: manter-se-á esta exigência nos dias de hoje? Não há melhor forma de entender uma lei do que descobrir e entender o propósito do legislador quando se deu ao trabalho de a elaborar.

Em Junho de 1718 - fazia a Grande Loja de Inglaterra um ano - o Grão-Mestre manifestou o desejo de que os Irmãos que tivessem acesso a registos e escritos antigos sobre Maçons e Maçonaria os trouxessem à Grande Loja, para que pudessem ser constatados os antigos usos e costumes da Maçonaria Operativa. Era importante, no contexto da altura, conferir à Ordem recém criada uma certa patine, alguma daquela aura de autoridade que só a idade proporciona. Foi assim que, nesse ano, apareceram diversas cópias de documentos referente à Maçonaria Operativa - as "Gothic Constitutions". Face a estas, e não as achando adequadas, o Grão-Mestre e a Grande Loja ordenaram ao Irmão James Andersen que as coligisse e elaborasse um novo e melhor Método.

James Anderson, em 1723, com a aprovação da sua Grande Loja, publicou o resultado do seu laborioso trabalho, no que se tornou uma das obras que mais influenciou a Maçonaria até aos nossos dias: o primeiro livro de "The Constitutions of the Free-Masons". Nele incluiu uma secção chamada "the Charges of a Free-Mason" - os chamados "Antigos Deveres" - extraída de registos de lojas "para além do mar", bem como de Inglaterra, Escócia e Irlanda, para uso pelas Lojas de Londres. Foi assim que James Anderson fez uso dos antigos manuscritos a que chamou "The Old Gothic Constitutions", e que citou e parafraseou extensivamente na sua obra. É por esta razão que, num livro destinado a Maçons Especulativos, encontramos regras que só fazem sentido quando aplicadas a Maçons Operativos.

Os "Antigos Deveres" são os documentos históricos que constituem as tais "Gothic Constitutions". De um total de 119 documentos, cerca de dois terços são anteriores à primeira Grande Loja de 1717 - talvez uns 75 - e uns 55 são anteriores a 1700. Quatro foram escritos por volta de 1600, um é datado de 1583, outro de cerca de 1400 ou 1410, e outro será de cerca de 1390.

Quase todos começam com uma invocação: "Que a vontade do Pai do Céu, com a sabedoria do seu Glorioso Filho, através da graça e bondade do Espírito Santo, que são três Pessoas num só Deus, estejam connosco no nosso início, e nos dêem a graça de que governemos a nossa vida aqui de modo que possamos chegar à Sua felicidade que não tem fim. Amen."

Pode ler-se então o anúncio do propósito e do conteúdo, seguido de uma breve descrição das Sete Artes Liberais ou Ciências, uma das quais é a Geometria. Seguia-se uma extensa História Tradicional da Geometria, Maçonaria e Arquitetura, que tomava mais de metade do texto, e que se iniciava nos tempos bíblicos de Noé, terminando no ano de 930, em que o Príncipe Edwin reuniu uma assembleia de maçons na cidade de York, e estabeleceu os regulamentos usados "desde esse dia até aos dias de hoje".

A seguir vinha a forma de se fazer um juramento: "Um dos anciãos segurava o Livro, de modo que ele ou eles pudessem colocar as mãos sobre o Livro, e então as regras eram lidas." a que se seguia o aviso: "Que cada maçon tome nota destes juramentos, pois se alguma vez se vir culpado de ter violado um, que possa reconciliar-se com Deus. E especialmente tu que vais prestar juramento, toma atenção ao cumprimento destes juramentos, pois é um grande perigo para um homem quebrar um juramento feito sobre um Livro".

Seguia-se a lista das regras a cumprir, algumas de cariz comercial, outras de índole comportamental. Sem dúvida que eram essenciais a uma comunidade de artesãos que trabalhavam em grande proximidade vinte e quatro horas por dia. Por fim, vinha o juramento: "Estas ordens que ensaiámos, e outras que pertençam à Maçonaria, iremos guardar, assim Deus nos ajude, e por este Livro e para o seu poder. Amen."

Paulo M.

15 dezembro 2010

O tempo de Companheiro

O tempo de Companheiro é um tempo difícil. O obreiro já não é um Aprendiz rodeado, apoiado, apetece até dizer mimado, por todos os Mestres da Loja. Alcançado o seu aumento de salário, afinal o prémio que obtém é apenas uma mudança do seu lugar na Loja, um pouco de cor no seu avental e... uma sensação de menor apoio.

Após uma Cerimónia de Passagem que é um verdadeiro anti-clímax em relação à sua recordação do que experimentou quando foi iniciado, depara-se com um par de símbolos novos, metem-lhe uns regulamentos e um ritual e catecismo na mão e... parece que se desinteressaram dele, ele que se oriente...

Não é assim, embora pareça que seja assim. E é assim que deve ser.

A Iniciação foi o nascimento para a vida maçónica. O tempo de Aprendiz é a sua infância, em que se é guiado, educado, amparado, mimado. O tempo de Companheiro, esse, é o da adolescência. Já não se admite ser tratado como criança – como Aprendiz – pois já se cresceu – já se evoluiu – mas... sente-se a falta do apoio que se recebia em criança. Já não se quer, mas ainda afinal se tem a nostalgia do apoio do tempo de Aprendiz. O Companheiro, tal como o adolescente, sofre a sua crise de crescimento. É o preço que tem a pagar pelo seu trajeto em direção à idade adulta maçónica, em que será reconhecido como Mestre.

No entanto, só aparentemente o Companheiro é deixado só. Os Mestres permanecem atentos a ele e, de entre eles, em especial o Primeiro Vigilante, responsável pelos Companheiros. Simplesmente já não tomam a iniciativa de sugerir caminhos, orientar trabalhos, avançar explicações, dar opiniões. Porque o Companheiro já não é Aprendiz, tal como o adolescente já não é criança. O tempo é de aprendizagem por si próprio, de exploração segundo os seus interesses. E só se houver grande desorientação no caminho se deve intervir. Tal como em relação ao adolescente é contraproducente pretender-se guiá-lo, impor-lhe caminhos, pois ele ou não aceitará o que considerará indesejável intromissão ou tornar-se-á dependente de uma superproteção que muito dificultará a sua vida adulta, também os Mestres não devem abafar o Companheiro com recomendações, intromissões, solicitudes a destempo. O tempo é de o deixar explorar, ele próprio, o que tiver a explorar. Se errar, aprenderá com o erro. Mas, no final, crescerá até à responsável maturidade da Mestria. É o que se pretende.

No início é – sabemo-lo bem! – confuso. Mas afinal as ferramentas foram fornecidas ao Companheiro logo no primeiro dia, tal como o guia de trabalho lhe foi apresentado. O Companheiro só tem de perceber isso, pegar nas ferramentas e seguir o trilho que, desde o início, lhe foi mostrado. Só não foi levado, empurrado, carregado, até ao seu início. Afinal, já não é criança...

A prancha de proficiência culmina o percurso do Companheiro. Mostra que ele entendeu o que escolheu entender, que trabalhou no que optou por trabalhar. A idade adulta está ao virar da esquina. O que implica virar essa esquina já é outra história...

Rui Bandeira

12 dezembro 2010

Meus irmãos em todos os vossos graus e qualidades... ... ... disse!

Era a primeira vez que este irmão tomava a palavra em Loja. Enquanto companheiro ou aprendiz fora-lhe vedado fazê-lo. Por isso, agora, ao fim dessa longa caminhada, tendo acabado de ser exaltado ao grau de Mestre, podia, finalmente, falar!!! Eu, aprendiz recentemente iniciado, esbugalhava os olhos e tudo absorvia com sofreguidão, e talvez por isso este episódio tenha ficado indelevelmente marcado na minha memória. Assim, chegado o momento em que, numa sessão maçónica, o Venerável Mestre põe a palavra nas colunas - que é como quem diz: autoriza que os mestres peçam a palavra - o novo Mestre pediu-a da forma regulamentar, e esta foi-lhe dada. Colocando-se de pé e à ordem - como é suposto - começa a sua intervenção como quase todas começam:

"Venerável Mestre, meus Irmãos em todos os vossos graus e qualidades..."

Fez-se silêncio absoluto na Loja - como, de resto, é suposto acontecer. Todos aguardavam com curiosidade e expetativa as primeiras palavras que este irmão proferiria em sessão. Contudo, estas teimavam em não surgir. O silêncio, já denso, adensava-se a cada segundo que passava sem que fosse quebrado. Visivelmente, o Irmão debatia-se com as palavras que queria dizer. O esforço mental transparecia-lhe na face, e começava, decorridos alguns silenciosos segundos, a ficar visivelmente horrorizado com a circunstância em que ele mesmo se havia colocado. É que as palavras não saíam.

"... ... ..."

Nem um sopro se ouviu. Todos partilhavam do esforço, da atrapalhação, do embaraço do Irmão. Mas ninguém podia socorrê-lo. Uma vez dada a palavra a um Irmão, só o Venerável Mestre ou o Orador podem tomá-la antes que esse irmão indique ter terminado a sua alocução. Não fez, porém, nenhum destes qualquer diligência nesse sentido, pois todos sentiam que só ele podia - e só ele devia - quebrar o silêncio que iniciara. E assim foi. Com grande esforço, recorreu à fórmula com que, em Loja - e por vezes, fora dela - os maçons indicam ter terminado a sua intervenção:

"... Disse!"

E sentou-se.

Toda a Loja sorriu de alívio e, prazenteiramente, vários, no fim da sessão, entre abraços de cumprimentos, lhe disseram ter sido uma intervenção memorável. E foi-o de verdade - o certo é que nunca mais a esqueci. Recentemente outro episódio semelhante sucedeu - de novo com um Mestre recém-exaltado - que me fez, de novo, recordar o primeiro. Para além do evidente humor da situação, que ensinamentos se pode retirar destes episódios?

Em primeiro lugar, constatou-se que qualquer dos Mestres em questão aprendera de que forma a sua intervenção teria que ocorrer: como e quando pedir a palavra, como se colocar para falar, as fórmulas a utilizar para marcar o início e o fim da sua intervenção, e o que fazer após ter terminado; nisso ambos foram irrepreensíveis. Foi, por isso, uma lição de forma, mais do que de conteúdo, como se alguém experimentasse uma peça de roupa e se mirasse ao espelho, fazendo-a sua, imaginando-se a usá-la na rua ou numa circunstância especial, para que, chegada esta, a roupa nova o não atrapalhasse.

Em segundo lugar, a Loja comportou-se com enorme dignidade. Apesar de ser uma situação confrangedora - todos partilharam do evidente desconforto do Irmão que, engasgado, não sabia como prosseguir - todos se mantiveram impávidos, sem um sinal de impaciência, sem esboçar um sorriso. A disciplina da Loja revelou que todos tinham interiorizado o valor do silêncio, que sabiam praticá-lo, e que não era só coisa de aprendizes e companheiros; não, o silêncio e a contenção eram para todos.

Em terceiro lugar, veio-se a constatar que esse Irmão - que, da primeira vez, "entupiu" e quase nada conseguiu dizer - até tinha o que partilhar, até possuía ideias válidas, até acabou por ter algumas intervenções muito pertinentes, que se foram tornando mais sólidas e seguras de cada vez que lhe era concedida a palavra. E quem não podia, ainda, falar, teve a oportunidade de ver um outro percorrer o seu caminho, e com isso aprender que apesar de falar não ser, de início, tarefa fácil, é algo que a experiência vai ensinando.

Falar é, mais do que um direito, um dever dos Mestres. Faz parte da formação de um homem - e, consequentemente, de um maçon - saber dirigir-se a uma assembleia e transmitir por palavras o que lhe vai na alma. Poder ir aprendendo a fazê-lo face a uma assistência disciplinada, paciente e cooperante é só mais um dos pequenos privilégios que advêm do facto de se estar integrado numa Loja Maçónica.

Paulo M.

08 dezembro 2010

Quite


Um maçom deve estar sempre quite para com a sua Loja, isto é, ter cumpridas as suas obrigações para com esta. As obrigações mínimas do maçom perante a Loja respeitam ao dever de assiduidade, isto é, à comparência em todas as sessões de loja para que for convocado, e o pontual pagamento da quota mensal.

Estar quite é cumprir estes deveres SEMPRE. Sempre que um obreiro injustificadamente falte a uma sessão, viola o dever de assiduidade e, portanto, não está quite. Sempre que se inicia um mês do calendário civil sem ter pago a sua quota do mês anterior, não está quite.

Não está quite perante si próprio, perante a sua consciência. Porque, incumprindo o seu dever de assiduidade, sem justificação para tal, incumprindo, podendo fazê-lo, o seu dever de pagar a sua quota mensal, o obreiro está, antes de mais, a faltar aos compromissos que assumiu, respetivamente, de assiduidade e de comparticipação para o Tesouro da Loja. E o cumprimento dos compromissos livremente assumidos é uma questão de honra! Logo, o maçom que injustificadamente falte a uma sessão de Loja para que foi convocado, que se deixa, sem razão que o justifique, entrar em mora no cumprimento do seu dever de contribuição para as despesas da Loja, antes de tudo e cima de tudo sente-se ele próprio desonrado.

O atraso no pagamento das quotas pode ser remediado: basta pagar o que está em dívida e ficar-se-á quite. Já o incumprimento do dever de assiduidade causa sempre prejuízo. À Loja porque fica privada do contributo do maçom. E todos os contributos de todos os maçons da Loja são inestimáveis e imprescindíveis. Do Mestre mais antigo ao Aprendiz mais recente, todos e cada um são essenciais para o aperfeiçoamento de cada um e global da Loja. Mas o incumprimento do dever de assiduidade prejudica sobretudo o próprio incumpridor. E, de alguma forma, é incompreensível: pois não tomou o maçom a decisão de pedir a Iniciação para beneficiar da ajuda da Loja no seu crescimento pessoal, na sua jornada própria? E vai prejudicar a sua demanda, prescindir do contributo do grupo não comparecendo? O tempo não para, não se pode rebobinar o filme. A única forma de remediar a falta sem motivo é diligenciar pelo estrito cumprimento do dever de assiduidade. Assim se diluirá o atraso, assim se recuperará o trabalho que ficou um dia por fazer. Assim se fica, de novo, quite. Quite para com a Loja. Mas sobretudo – e principalmente! – quite perante si próprio!

O maçom tem, a todo o tempo, direito a que a sua Loja certifique que se encontra quite. Se o fizer na constância e na permanência da ligação à sua Loja, é-lhe emitida uma declaração de good standing, com a qual poderá provar, perante qualquer outra Loja que visite, ser um maçom quite, em boa posição, de pé e à ordem, perante a Loja, a Maçonaria e ele próprio. Se o fizer no âmbito do processo de desvinculação da sua Loja – que é um direito que todo o maçom a todo o tempo pode exercer -, seja por entender dever adormecer, isto é, suspender a sua atividade maçónica ou por decidir mudar de Loja, é-lhe então emitido um atestado de quite. Com esse documento, fica ultimada a sua desvinculação da Loja. O maçom pode assim pedir a sua admissão a outra Loja, comprovando perante a mesma estar quite de todas as suas obrigações perante a Loja de que se desvinculou. Ou, se simplesmente pretender suspender a sua atividade maçónica, pode, se e quando o entender, retomá-la reintegrando-se na mesma ou em outra Loja, comprovando que cumpriu os seus deveres enquanto esteve em atividade maçónica, pelo que saberá voltar a cumpri-los ao retomá-la.

Mas, no fundo, o atestado de quite é apenas uma declaração num papel. O que verdadeiramente interessa é que o maçom se sinta, ele próprio, pessoalmente, perante si mesmo, sempre quite. E é para que assim seja que a Loja existe e se disponibiliza e auxilia e coopera. Porque a razão de ser da Loja, da Obediência, da Maçonaria é, afinal, simplesmente, o maçom. Cada um deles. Cada um de nós. Livre, especial, insubstituível e... quite!

Rui Bandeira

01 dezembro 2010

O décimo nono Venerável Mestre


O décimo nono Venerável Mestre da Loja Mestre Affonso Domingues, João F., foi instalado no ofício, no segundo sábado de setembro de 2008, por um dos Vice-Grão-Mestres, na presença do Muito Respeitável Grão-Mestre, que pessoalmente dirigiu algumas partes da Cerimónia de Instalação. Augurava-se mais um bom e bonançoso ano para a Loja Mestre Affonso Domingues, sob a sua direção.

Com efeito, João F., um empresário calmo, metódico, simpático, percorrera toda a "linha de sucessão" tal como estava informalmente instituída na Loja Mestre Affonso Domingues. Depois de, já Mestre Maçom, ter assegurado ocasionalmente alguns ofícios em substituição do titular, foi eleito Tesoureiro da Loja e exerceu tal ofício um ano. Seguidamente, cumpriu outro ano no ofício de Secretário. e depois mais outro no de Orador. Cumpriu então mais dois anos de exercício de maiores responsabilidades, assegurando sucessivamente os ofícios de 2.º e 1.º Vigilante. Inegavelmente, estava bem preparado. Tinha a experiência, a competência e a vontade necessárias para ter um mandato auspicioso.

Mas, mesmo quando se julga que tudo está reunido em nosso favor, por vezes o destino trai-nos.

João F., mal foi instalado na Cadeira de Salomão, apresentou o programa do que se propunha fazer e formou a sua equipa. Sob a sua liderança, tudo estava pronto e começou a ser executado.

Depois, caiu-lhe a crise em cima da cabeça! Não qualquer crise interna, como sucedera, mais de uma década antes ao José Ruah. Caiu-lhe em cima a crise - a económica, aquela que ainda vai dificultando as nossas vidas. Empresário de um setor especialmente vulnerável, de um dia para o outro teve de se preocupar, praticamente em exclusivo, com a sua atividade profissional. As suas qualidades de liderança tiveram de ser totalmente aproveitadas na sua empresa.

Entre acorrer à gestão do seu negócio, profundamente afetado, e dedicar-se à gestão da Loja, a escolha era óbvia. Para ele e para todos nós. As prioridades existem e têm de ser respeitadas. Havia postos de trabalho a assegurar, o sustento e o conforto da sua família a defender. João F. teve de deixar para segundo plano a liderança da Loja. Não tinha nem tempo, nem cabeça, para se dispersar da sua principal preocupação.

João F. tomou a decisão que devia tomar e toda a gente compreendeu. Aliás, era a mais lógica: a Loja, essa, estabilizada como estava, podia suportar esse contratempo.

João F. e a Loja tiveram, então, que, ao contrário do que ele e ela pretendiam, entrar num regime de "serviços mínimos". Não havia disponibilidade para mais!

Poderia a Loja ter colmatado a menor disponibilidade do seu Venerável Mestre, organizando-se para prosseguir o seu normal ritmo de trabalho sem ele? Poderia. Mas não devia! A Loja segue e respeita a liderança do seu Venerável Mestre. Nas condições em que essa liderança é possível. Substituir-se a essa liderança, ultrapassá-la, seria liquidá-la. E uma Loja maçónica, não sendo apenas isso, é também uma escola de liderança e de aceitação de liderança - não da sua subversão.

O ano em que a Loja foi dirigida por João F. foi, assim, um ano de relativa acalmia, de alguma pausa, de trabalho de rotina (também necessário). E também de reflexão e de programação do que se faria seguir.

Mas não se pense que nada se fez. Fez-se porventura menos do que a nossa ambição pretendia. Mas fez-se: foi elaborado e aprovado o regulamento de funcionamento do sítio da Loja na Internet; organizou-se e realizou-se o já tradicional almoço de solstício de inverno da Loja, com leilão de objetos doados, para recolha de fundos para doação a instituição de solidariedade social; efetuou-se uma ação de doação de sangue, em colaboração com os escuteiros da Pontinha; auxiliou-se e preparou-se a criação da Loja João Gonçalves Zarco, ao Oriente do Funchal; a Loja geminou-se com a Loja Hippokrates, do Oriente de Viena, da Grande Loja da Áustria; fizeram-se iniciações, passagens e elevações; apresentaram-se pranchas.

Bem vistas as coisas, que agradável que é olhar para uma lista destas e considerar-se que só se fez trabalho de rotina, "serviços mínimos"...

Com João F., a Loja aprendeu que a liderança tranquila e aparentemente rotineira não é, afinal, de menosprezar. E deu-se conta da sua ambição. Ambição de fazer cada vez mais. Mas tomou nota que há tempos para tudo. Que as pausas são necessárias, que o refúgio na rotina é, por vezes, necessário, para retemperar forças, acorrer a outras prioridades e preparar novos voos.

E, todas as contas feitas, a Loja estava afinal melhor, mais bem preparada, mais adulta, mais experiente, no fim do mandato do João F..

João F. deu-nos a ocasião de experimentarmos que o ótimo é inimigo do bom... e que o bom, afinal, não é mau...

Rui Bandeira

28 novembro 2010

A pedra bruta



O aprendiz tivera recentemente a sua primeira lição sobre a pedra bruta e a pedra polida. Foi-lhe explicada a base, o essencial, o ponto de partida do significado desses símbolos, que depois interiorizaria e desenvolveria por si mesmo. Aprendeu, então, que a pedra é cada um de nós; que o nosso trabalho consiste em "aparar" as nossas asperezas de modo a atingirmos um estado de maior perfeição - ou de polimento - para que, por fim, juntos, formemos essa sublime construção, esse supremo templo que o Homem edifica, a partir de si mesmo, à Glória do seu Criador.

Várias noites seguidas o aprendiz adormeceu sobre o assunto, e sonhou com pedras de todos os feitios. Sonhou com enormes e antigos rochedos cobertos de um musgo ancestral; sonhou com areia fina, outrora parte de imponentes escarpas e agora reduzida a pó; sonhou com mós de moinho, com as pedras dos muros das aldeias da sua infância, com a calçada da cidade, com esquinas de prédios, com gravilha, com os seixos rolados que lançava fora quando abria um buraco no quintal e cuja forma traía um longo percurso de leito de rio e de enxurradas de Outono.

Num dos seus sonhos, o seu olhar recaiu sobre um calhau quase em bruto, semi-enterrado, com um dos lados mais plano - o mais batido pela intempérie - e o resto, por ter passado a maior parte do tempo oculto debaixo da terra, ainda cheio de rugosidades e imperfeições. Algo de familiar lhe chamara a atenção para com aquela pedra, pelo que a fixou com atenção. Logo acordou, mas aquele calhau, mais áspero de uns lados, mais liso de outro, não lhe saía da cabeça.

Só dias depois, ao fazer uma introspeção sobre as suas fraquezas e as suas forças, se reconheceu, não sem algum embaraço, na pedra com que sonhara. O seu lado mais polido - aquele, afinal, em que mais tempo investira, e que era aquele que lhe punha o pão na mesa - estava, não obstante, rachado e eivado de sulcos aqui, mas ali ainda com sinais de pouco trabalho e pouca perseverança que traíam a rugosidade original. Do resto nem valia a pena falar; precisava de tudo.

Inspirou fundo e quase desistiu; a tarefa era árdua, e não sabia sequer por onde começá-la. Apercebeu-se, então, que nem sequer sabia onde queria chegar, pelo que não fazia sentido meter-se, antes disso, ao caminho. O que deveria fazer dessa pedra que era ele mesmo?

Inquieto, procurou junto de um dos seus Mestres orientações quanto ao que deveria fazer. Este, à guisa de resposta, mostrou-lhe dois muros, igualmente sólidos e compactos: um, formado por pedras de forma paralelepipédica, cada um com as suas 6 faces laboriosamente aparadas; outro, formado por pedras irregulares mas firmemente encaixadas umas nas outras, em que apenas uma ou duas faces - as exteriores - tinham sido polidas, mas essas, oh, como brilhavam!

Mais baralhado ainda, perguntou ao Mestre que pedra deveria ser, e o que deveria fazer para o atingir. Deveria ir aparando, nas várias faces, as rugosidades maiores, esperando que, ao fim de muitas passagens, a forma se fosse compondo? Ou deveria investir numa ou duas das faces e ignorar as restantes? Ou, pelo contrário, deveria trabalhar todas, mas dando forte preponderância a uma ou duas, e limitando-se a atingir os mínimos nas remanescentes?
Respondeu-lhe o Mestre que não tinha resposta para lhe dar. Que cada um deveria aparelhar a sua pedra da forma que entendesse ser a mais perfeita, e que o Grande Arquiteto saberia usá-la, como ficasse, na construção do Templo. Umas, mais toscas, seriam usadas como enchimento, sem o qual as paredes não teriam consistência para se suster; outras, mais ornamentadas, seriam colocadas em lugar de destaque, mas seriam eventualmente mais frágeis; outras ainda, robustas e fortes, aparadas de forma milimétrica mas sem quaisquer adornos, tornar-se-iam nas pedras que susteriam os vãos e as abóbadas. Algumas pedras, pela sua própria natureza, nunca poderiam servir para certos fins; mas todas conseguiriam tornar-se úteis para alguma coisa, e tanto mais úteis quanto mais trabalho tivesse sido despendido nas mesmas.

O Aprendiz olhou então, longamente, a sua pedra, inspecionou minuciosamente a face mais polida - mas imperfeita - bem como as outras, rugosas e ásperas, e lançou-se ao trabalho.

.·.

Anos mais tarde, já o Aprendiz chegara, por sua vez, a Mestre, tendo a oportunidade de ir apreciando os trabalhos dos Aprendizes e Companheiros da sua Loja, e o quanto eram diferentes uns dos outros. Enquanto uns se esforçavam mais por distribuir o seu esforço por várias faces - obtendo belas peças geométricas que formavam um todo harmonioso, em que nenhuma face sobressaía das demais - outros persistiam em trabalhar a mesma face até que esta brilhasse como um espelho, ofuscando as imperfeições que haviam ficado por trabalhar nas restantes, e que podiam, mesmo, ser vistas como uma promessa de aperfeiçoamento futuro. Em todas elas o Mestre teve oportunidade de aprender algo de novo. E apercebeu-se, então, de que o seu  Mestre tivera razão, pois que de nenhuma poderia dizer, com segurança, que fosse melhor do que as outras.

Paulo M.

24 novembro 2010

O Orador


O Orador é o guardião da Tradição Maçónica e zelador pelo cumprimento das leis e regulamentos em Loja, pela Loja e pelos obreiros da Loja. Integra, com o Venerável Mestre e o 1.º Vigilante, a Comissão de Justiça da Loja. É o único obreiro que pode interromper qualquer outro obreiro, incluindo o Venerável Mestre, quando se lhe afigure necessário para assegurar o cumprimento dos princípios, leis ou regulamentos maçónicos. Não admira, assim, que a medalha do Orador seja constituída por uma imagem das Tábuas da Lei.

O Orador é um ofício específico do Rito Escocês Antigo e Aceite, que não deve ser confundido, por exemplo, com o ofício de Capelão em outros ritos. Com efeito, o Orador é o oficial da Loja que tem, além da anteriormente referida, a função ritual de proferir Orações. Mas isso não quer dizer Preces... A Oração proferida por este Oficial da Loja é de outra natureza: o Orador tira, de cada debate, as suas conclusões e nisso deve consistir a Oração final (no sentido de "intervenção oral") que lhe compete produzir. Assim, compete ao Orador, no final de cada debate, resumir e organizar as várias posições que tenham sido expostas e, em função das mesmas dar o seu parecer ao Venerável Mestre sobre a decisão a tomar e a forma como deve ser tomada.

Recorde-se que o debate em Loja processa-se segundo regras rígidas, tendentes a possibilitar a livre expressão da opinião de cada um, sem constrangimentos nem perturbações. Importa a substância do que é transmitido, não a sua forma. Debate-se, no sentido de se analisar uma questão e tomar uma decisão; não se discute para procurar fazer valer a sua opinião, para levar de vencida opositores (pois em Loja não há opositores, apenas Irmãos que cooperam) ou rebater argumentos. Em Loja, o debate estabelece-se sempre relativamente a uma questão concreta, em relação à qual cada Mestre deve proceder à sua análise, dar a sua opinião, apresentar o seu entendimento da melhor forma de proceder. Cada Mestre intervém uma e só uma vez em cada debate. Não se interrompe ninguém (o único que pode fazê-lo, e unicamente para salvaguarda dos usos e costumes, leis e regulamentos maçónicos é precisamente o Orador - e esta situação só raramente ocorre). Cada Mestre só inicia a sua intervenção após estar terminada a intervenção anterior e depois de devidamente autorizado a fazê-lo pelo Venerável Mestre. Em caso algum se estabelece diálogo: cada Mestre fala para toda a Loja, não para uma pessoa em particular. Cada um dá a sua opinião sobre o tema, não gasta o seu latim e a paciência dos demais a refutar ou criticar outras opiniões anteriormente expressas: a assembleia é composta de homens inteligentes, que facilmente podem discernir que se A entende branco e B amarelo, B não concorda com A e tem uma opinião diversa dele - não vale a pena afirmá-lo expressamente. A mera expressão da fundamentação da sua opinião chega para mostrar a todos as concordâncias e discordâncias com intervenções anteriores. Em resumo, em Loja não se diz "não concordo com...", declara-se "o meu entendimento sobre o assunto em debate é este, por estas razões").

O Orador efetua o resumo do debate com o máximo de objetividade possível e coloca em relevo o sentir da Loja, o que resultou do debate. Ao fazer o resumo, o Orador evidencia se se verificou uma posição unânime, e em que sentido, se se manifestaram entendimentos diversos, mas um deles foi largamente maioritário, e qual, se há diversos entendimentos, sem que se tivesse destacado uma posição largamente maioritária, ou se o debate não foi conclusivo, por falta de elementos ou de opiniões consolidadas sobre a questão em análise.

Feito o resumo do debate, o Orador tira a sua conclusão, isto é, o parecer, a recomendação, que transmite ao Venerável Mestre sobre a decisão a tomar. A conclusão do debate tirada pelo Orador nada tem a ver com a posição pessoal que porventura tenha. Assinala se houve unanimidade ou, pelo menos, uma posição largamente maioritária - e, nesse caso, recomenda que o Venerável Mestre decida em conformidade com o sentido expresso pela Loja, sem necessidade de votação - ou indica as posições expressas que, não sendo evidente uma tendência largamente maioritária, devem ser colocadas à votação pela Loja. O enunciar dessas posições deve ser claro e inequívoco, para que a Loja, ao votar, saiba exatamente o que está em causa na escolha que vai fazer. Quando tal se justifique, seja por das intervenções ressaltar a falta de elementos suficientes para uma decisão devidamente fundamentada, seja por se notarem mais dúvidas do que certezas, o Orador deve recomendar o adiamento da decisão, sugerindo as diligências a efetuar para possibilitar, em devido tempo, uma decisão mais esclarecida.

Note-se que o Venerável Mestre não está obrigado a decidir em conformidade com as conclusões do Orador. Pode discordar e decidir em sentido diferente, formal ou substancialmente. É o Venerável Mestre aquele a quem a Loja delegou o exercício da autoridade. O Orador é - sempre - um colaborador, um auxiliar, do Venerável Mestre, nunca uma eminência parda que se lhe imponha. E isto mesmo até quando o Orador, no uso da sua competência de guardião da Tradição Maçónica e zelador pelo cumprimento das leis e regulamentos, porventura chame a atenção do Venerável Mestre para uma infração ou falha que se esteja em vias de cometer. Ainda assim, o poder de decisão final é do Venerável Mestre e só do Venerável Mestre. Se errar, é ele quem erra e é ele que assume a responsabilidade do erro. Ao Orador compete avisar, não pretender sobrepor uma sua inexistente autoridade à única que vigora em Loja.

No final da sessão, após ter sido concedida a palavra a bem da Ordem ou da Loja (o que, em reuniões profanas corresponde ao "período depois da Ordem do Dia"...), o Orador tira as suas conclusões sobre a reunião. Não se trata aqui de sumariar as intervenções a bem da Ordem ou da Loja, porque estas, ou são meramente informativas ou, se carecerem de deliberação, são apenas introdutórias de um debate a efetuar em sessão futura. Trata-se de sumariar o que foi feito e deliberado na sessão. Este breve sumário, para além de evidenciar o trabalho realizado, facilita a tarefa do Secretário de elaboração da ata da sessão, a ser aprovada na reunião seguinte.

É também frequente que o Orador, nas suas conclusões finais, apresente uma (breve, muito breve) Prancha Traçada sobre um tema maçónico, preferentemente relacionado com o que se tratou na sessão em causa. Porém, tal NUNCA sucede quando na sessão tiver sido apresentada uma outra Prancha Traçada por um Mestre. Em cada sessão de Loja deve haver formação dos obreiros, deve ser apresentado, em contribuição para o trabalho de aperfeiçoamento dos obreiros, um trabalho, uma exposição, um estudo - em resumo, uma Prancha Traçada. É incumbência, dever, dos Mestres da Loja garantirem-no. Se o não fizerem, estão a prejudicar a aprendizagem e a integração dos Aprendizes e Companheiros e a própria evolução pessoal dos Mestres. Mas apenas deve ser apresentada e colocada à meditação da Loja uma única Prancha Traçada de Mestre. Mais do que isso, seria estabelecer a confusão. Um tema para meditação e estudo por sessão é o necessário e o suficiente. Assim, se nessa sessão, tiver sido apresentada por um Mestre uma Prancha Traçada, a conclusão final do Irmão Orador resumir-se-á ao sumário dos trabalhos (incluindo a referência a essa Prancha Traçada, obviamente). Se tal não tiver sucedido, incumbe ao Orador, Mestre que efetua a última intervenção formal antes do encerramento dos trabalhos, garantir que a Loja não fique sem matéria para estudo e meditação, através então de uma brevíssima Prancha Traçada, em que, mais do que ensinamentos ou proposições, deve levantar pistas para reflexão. Assim, ficam os trabalhos justos e perfeitos!

Rui Bandeira


21 novembro 2010

As elites e a curva de Gauss




Ao estudar a diversidade das populações, os matemáticos descobriram um facto curioso: muitas das populações, quando ordenadas por uma das sua dimensões - como o peso, a altura, ou mesmo a distância entre os olhos - distribuíam-se de acordo com uma curva em forma de sino, como a que pode ver-se na imagem que ilustra este texto. O ponto mais alto da curva corresponde ao valor médio, e as "pontas" correspondem aos valores que mais se afastam da média. No gráfico em causa, vemos a distribuição do QI (Quociente de Inteligência) de uma população. Sendo 100 o QI médio, vemos que podemos encontrar 68,2% (34,1 + 34,1) da população - mais de dois terços - entre os 85 e os 115. Entre os 70 e os 130 encontramos já 95,4% (13,6 + 34,1 + 34,1 + 13,6), o que significa que um pouco mais de 19 em cada 20 pessoas se encontram neste intervalo. Entre os 130 e os 145 encontramos 2,2% da população - tantos quantos encontramos entre os 55 e os 70. Mas é acima dos 145 (e abaixo dos 55...) que encontramos os grupos mais reduzidos: 0,1%. Um em cada mil. Os melhores - e os piores... - são sempre raros. Fácil é ser-se mediano. A este tipo de distribuição chama-se "distribuição normal", e a sua universalidade tem uma explicação matemática. Uma vez que o saber não ocupa lugar, e o conceito até é fácil de abarcar, vamos a ele.

Tomemos um dado de jogar: um cubo, com 6 faces, em cada uma das quais está inscrito um certo número de pintas: 1, 2, 3, 4, 5 ou 6. A probabilidade de cada face ficar por cima é igual para todas as faces. Suponhamos agora que lançamos o dado uma centena de vezes. é natural que "saia" cada um dos números o mesmo número de vezes - entre 16 e 17, uma vez que 100/6 = 16,666666. Até aqui, nada de novo.

As coisas começam, porém, a tornar-se interessantes se decidirmos lançar de cada vez não um mas dois dados, e registar a soma das pontuações. Podemos obter qualquer número de 2 a 12, inclusive, num total de 11 resultados diferentes, correspondentes respetivamente de um par de "uns" a um par de "seis". A probabilidade de se obter qualquer desses números é que não é igual. Senão, vejamos: para se obter "2" tem que se obter 1 no primeiro dado e 1 no segundo dado; não há outra forma. Já para se somar 3, podemos ter 1 no primeiro dado e 2 no segundo (1+2), ou 2 no primeiro dado e 1 no segundo (2+1). Pode, do mesmo modo, somar-se 4 com 1+3, 2+2 ou 3+1. A soma "7" pode ser obtida com 1+6, 2+5, 3+4, 4+3, 5+2 ou 6+1, ou seja, de seis formas distintas! Diz-se, por isso, que a probabilidade de obtermos "7" é 6 vezes maior do que a de obtermos "2". Se somarmos o número de formas que nos permitem obter um dado número, ficamos com:

Total de "2": 1 (1+1)
Total de "3": 2 (1+2, 2+1)
Total de "4": 3 (1+3, 2+2, 3+1)
Total de "5": 4 (1+4, 2+3, 3+2, 4+1)
Total de "6": 5 (1+5,2+4, 3+3, 4+2, 5+1)
Total de "7": 6 (1+6, 2+5, 3+4, 4+3, 5+2, 6+1)
Total de "8": 5 (2+6, 3+5, 4+4, 5+3, 6+2)
Total de "9": 4 (3+6, 4+5, 5+4, 6+3)
Total de "10": 3 (4+6, 5+5, 6+4)
Total de "11": 2 (5+6, 6+5)
Total de "12"": 1 (6+6)

Se lançarmos os dados cem vezes, é natural que obtenhamos a soma "7" cerca de seis vezes mais do que a soma "2". Os valores "2" e "12" são mais raros do que quaisquer dos restantes, ocorrendo em média uma vez em cada 36, enquanto que o valor "7" ocorrerá em média 6 vezes em cada 36, que é o mesmo que dizer 1 vez em cada 6. Os valores de "5" a "9", que são menos de metade dos números possíveis, acumulam entre si 24 em cada 36 lançamentos - ou seja, dois terços, ou quase 67%.

Se repetirmos o mesmo exercício com 3 dados, depois com 4, e por aí fora, ir-nos-emos aproximando sucessivamente de uma distribuição normal. É isto mesmo o que nos diz o "Teorema do Limite Central", de acordo com o qual "a soma de muitas variáveis aleatórias independentes e com mesma distribuição de probabilidade tende à distribuição normal".

Em qualquer população heterogénea há, incontornavelmente, quem se situe no topo, como sucede com a nata do leite que, rica em gordura, flutua sobre este, e donde vem a expressão "a nata da sociedade". Do francês - em que "crème" é, precisamente, a nata do leite - nos vem, precisamente, a expressão "la crème de la crème", que significa os melhores de entre os melhores. As elites, termo usado no século XVIII para nomear produtos de qualidade excepcional, viriam a constituir, por alargamento semântico do termo, grupos sociais superiores, tais como unidades militares de primeira linha ou os elementos mais altos da nobreza.

Quem tiver lido até aqui não estranhará, agora, ouvir-me dizer que as elites não são, no fundo, senão uma inevitabilidade matemática que tem na sua origem a própria diversidade humana. Se tomarmos como premissa que cada dimensão que procurarmos medir decorre de uma multiplicidade de fatores, podemos dizer que enquanto os homens forem diferentes haverá, para cada dimensão, uns grandes e outros pequenos, uns mais acima e outros mais abaixo, uns melhores e outros piores. As elites são, tão só, aqueles que se encontram junto ao limite superior da medida cujo critério tivermos estabelecido.

Paulo M.