12 setembro 2008

A verdade da alegoria


Sob o marcador genérico de "alegoria", tenho publicado algumas historietas que me enviam, geralmente de autor desconhecido, com que procuro ilustrar princípios de ordem moral. Todas as pequenas histórias que publiquei tive-as na conta disso mesmo, de histórias, ficções criadas com o propósito de ilustrar preceitos morais. Mas o José Ruah, que tem por hábito investigar a verdade e a mentira do que lê na Net, descobriu algo muito interessante: uma das historietas que publiquei não é, afinal, ficção! A situação nela contada ocorreu na realidade! Não exatamente como contada, de forma que embelezou a realidade ocorrida (quem conta um conto acrescenta um ponto... e este conto foi muito contado...), mas ocorreu! Ainda por cima, trata-se de uma das histórias de que mais gostei, com que procurei ilustrar uma das virtudes que mais aprecio, a gratidão, e que intitulei O copo de leite.

Essa informação foi obtida aqui, de onde traduzo algumas passagens:

Trata-se de uma história muito apreciada e muito divulgada. No seu cerne, é uma história verdadeira , mas tem sido tão fortemente exagerada que agora é apenas uma caricatura de si própria, tendo sido distorcida de inúmeras maneiras, para melhor contar a história de um médico que não aceitou o pagamento de honorários pelos seus serviços, de uma jovem que uma vez lhe deu um copo de leite.
O Dr. Howard Kelly (1858-1943) foi um médico distinto, que foi um dos quatro médicos fundadores da John Hopkins, a primeira universidade de investigação médica nos Estados Unidos, e indiscutivelmente um dos melhores hospitais do Mundo. Em 1895, criou nela o Departamento de Ginecologia e Obstetrícia. Ao longo de sua carreira, contribuiu para o avanço das ciências da ginecologia e da cirurgia, quer como professor, quer como médico.

De acordo com a biografia escrita por Audrey Davis, a história da fatura paga na totalidade pelo copo de leite é verdadeira: no decorrer de um passeio a pé pelos campos do Norte da Pensilvânia, Kelly parou numa pequena casa para pedir um copo de água. Uma jovem respondeu ao seu pedido e, em vez de água, trouxe-lhe um copo de leite fresco. Depois de uma curta e amigável conversa, ele prosseguiu o seu caminho. Alguns anos mais tarde, a mesma jovem e ele reencontraram-se por causa de uma operação a que ela foi submetida e em que ele a operou. Pouco antes de ela partir para casa, a sua fatura foi-lhe entregue, estando nela escrito: "Totalmente pago com um copo de leite."


No entanto, deve notar-se que, embora a história seja verdadeira, tem sido grandemente embelezada para torná-la mais tocante.
Kelly nunca foi um estudante pobre que resolveu mendigar uma refeição na próxima casa. Descendia de uma família relativamente rica e não teve que trabalhar para estudar e muito menos vender mercadorias porta a porta. Para além de a família lhe custear os estudos e o seu sustento, o jovem estudante recebia da sua família uma mesada de 5 dólares - uma quantia apreciável para a época. No seu 21.º aniversário, o futuro médico recebeu cheques de 100 dólares, dados pelo seu pai e por várias tias, o que seriam consideradas somas astronómicas naqueles dias (1879).
O futuro Dr. Kelly gostava de passear pelos campos agrícolas e matas da Pensilvânia. Tinha um gosto especial por efetuar grandes caminhadas. No dia referido na história do copo de leite, ele era apenas um caminhante sedento, que pediu um copo de água numa fazenda por onde passou.

A biografia de Kelly não contém nenhuma menção ao facto de a jovem do copo de leite estar criticamente doente ou de ter sido enviada para Baltimore por ser vítima de uma doença rara.
Com efeito, nada se diz do seu caso, que indicasse que era incomum, ou que sua vida estava de alguma forma em perigo. Com exceção para o facto de o Dr. Kelly ter escrito na fatura que a mesma estava paga com o copo de leite, o seu caso não teve nada de especial.

No que diz respeito à sua anulação da fatura,
Kelly cobrava honorários muito elevados pelo seu trabalho, mas fazia-o apenas relativamente a pacientes que podiam pagar, prestando gratuitamente cuidados médicos aos menos afortunados. Numa estimativa conservadora, em 75% dos seus casos, não recebeu pagamento pelos seus serviços. Além disso, durante anos, pagou o salário de uma enfermeira para visitar e prestar cuidados aos seus pacientes, que de outra forma não poderiam suportar os custos dos tratamentos, fornecendo-lhes, assim, tanto serviços médicos, como de enfermagem, sem encargos.


Portanto, em suma:

  • Howard Kelly não era um jovem estudante arruinado que vendia mercadorias porta a porta, na prossecução do seu sonho de um dia se tornar um médico e, por isso, não foi resgatado da fome por um fortuito copo de leite. Foi um caminhante sedento, que pediu água numa fazenda e, em vez dela, foi-lhe dado leite.
  • A jovem que lhe deu o leite mais tarde veio a ser sua doente, mas provavelmente não porque estava morrendo ou porque o seu estado era incomum.
  • O Dr. Kelly escreveu que a fatura estava paga, mas procedia de igual modo com três em cada quatro pacientes tratados por si.
Embelezada, a história é bonita. Mesmo despida dos pontos acrescentados ao conto, continua a sê-lo, talvez não tão incisivamente como exemplo de gratidão, mas seguramente como exemplo de um homem bom que, tendo o privilégio de uma vida confortável, procurou auxiliar os menos afortunados do que ele. A verdade da alegoria é, pelo menos, tão edificante como a lição que se pretendeu ilustrar com o que se pensava ser só ficção, sem suporte na verdade.

Rui Bandeira

11 setembro 2008

Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 - Base IV


BASE IV

DAS SEQUÊNCIAS CONSONÂNTICAS

1º) O c, com valor de oclusiva velar, das sequências interiores cc (segundo c com valor de sibilante), cç e ct, e o p das sequências interiores pc (c com valor de sibilante), pç e pt, ora se conservam, ora se eliminam.

Assim:

a) Conservam-se nos casos em que são invariavelmente proferidos nas pronúncias cultas da língua: compacto, convicção, convicto, ficção, friccionar, pacto, pictural; adepto, apto, díptico, erupção, eucalipto, inepto, núpcias, rapto.

b) Eliminam-se nos casos em que são invariavelmente mudos nas pronúncias cultas da língua: ação, acionar, afetivo, aflição, aflito, ato, coleção, coletivo, direção, diretor, exato, objeção; adoção, adotar, batizar, Egito, ótimo.

c) Conservam-se ou eliminam-se, facultativamente, quando se proferem numa pronúncia culta, quer geral, quer restritamente, ou então quando oscilam entre a prolação e o emudecimento: aspecto e aspeto, cacto e cato, caracteres e carate­res, dicção e dição; facto e fato, sector e setor, ceptro e cetro, concepção e conceção, corrupto e corruto, recepção e receçâo.

d) Quando, nas sequências interiores mpc, mpç e mpt se eliminar o p de acordo com o determinado nos parágrafos precedentes, o m passa a n, escrevendo-se, respetivamente, nc, nç e nt: assumpcionista e assuncionista; assumpção e assunção; assumptível e assuntível; peremptório e perentório, sumptuoso e suntuoso, sumptuosidade e suntuosidade.

2º) Conservam-se ou eliminam-se, facultativamente, quando se proferem numa pronúncia culta, quer geral, quer restritamente, ou então quando oscilam entre a prolação e o emudecimento: o b da sequência bd, em súbdito; o b da sequência bt, em subtil e seus derivados; o g da sequência gd, em amígdala, amigdalácea, amigdalar, amigdalato, amigdalite, amigdalóide, amigdalopatia, amigdalotomia; o m da sequência mn, em amnistia, amnistiar, indemne, indemnidade, indemnizar, omnímodo, omnipotente, omnisciente, etc.; o t da sequência tm, em aritmética e aritmético.

Esta é a grande alteração que o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 traz, relativamente à anterior norma lusitana da escrita, passando a deixar de se usar a primeira de duas consoantes, em sequências interiores de palavras, quando a mesma não se pronuncia. Anteriormente, utilizava-se, por razões de ordem etimológica.

Basicamente, a regra é simples: se a primeira consoante é articulada, escreve-se; se não existe articulação de consoante, não existe consoante na escrita, abandonando-se a escrita de consoantes não articuladas, por razões exclusivamente de ordem etimológica.

Esta alteração, se bem que cause alguma perturbação a quem estava habituado a grafar as palavras com as consoantes mudas, facilita clara e inequivocamente a aprendizagem da escrita da língua portuguesa, seja por crianças em processo de alfabetização, seja por estrangeiros.

Esta alteração afeta cerca de 0,54 % do vocabulário da língua portuguesa, um pouco mais de 600 palavras.

Note-se que esta alteração, visando simplificar a escrita, adotando o critério fonético, em detrimento do critério etimológico, não unifica a escrita da língua portuguesa, precisamente devido a diferenças de pronúncia existentes no espaço lusófono. Assim, cerca de 0,5 % das palavras do vocabulário geral da língua (pouco mais de 575 palavras) vão possuir dupla grafia, em função das diferentes pronúncias. Assim, em Portugal passa-se a escrever aspeto e conceção, mas os nossos irmãos brasileiros, porque pronunciam as consoantes que os lusos já deixaram de pronunciar, podem continuar a escrever aspecto e concepção. Por outro lado, em Portugal continua a escrever-se súbdito e amnistia, porque todas as consoantes aqui se pronunciam, enquanto que no Brasil se escreverá súdito e anistia, porque aí se deixaram de pronunciar as consoantes que por cá continuamos a usar.

De notar que, quando a consoante muda "p" cai e é antecedida por "m", este passa a "n": o que era peremptório em Portugal, passa a ser perentório.

É inevitável que o processo de habituação a estas alterações cause, no início, alguma perturbação e alguns esquecimentos na atualização das palavras alteradas. Mais uma razão para não deixar para o fim a habituação às alterações. Mas esta minha experiência de poucos dias mostra-me que é com alguma facilidade e rapidez que a habituação acontece, sobretudo se se estiver atento.

Rui Bandeira

10 setembro 2008

Já somos fonte!

,

Foi hoje publicado na edição eletrónica do jornal Ponto Final, de Macau, um artigo, da autoria do jornalista João Paulo Meneses, intitulado Está a nascer a terceira loja maçónica em Macau.

Para além de apreciarmos uma notícia genericamente bem feita relativa a uma Loja em constituição da GLLP/GLRP, Obediência em que se integra a Loja Mestre Affonso Domingues, que temos nós a ver com isso? Dois aspetos:

O primeiro, notar que a Imprensa tradicional começa a usar assumidamente como fonte de informação e pesquisa os blogues, no caso os blogues de temática maçónica. Com efeito, expressamente se refere na dita notícia que parte das informações recolhidas para a notícia foram obtidas no blogue Luz do Oriente (Macau) (in installation), para cujo endereço remete um dos atalhos que disponibilizamos na coluna da direita do A Partir Pedra.

O segundo, assumir que o "outro blogue que segue a mesma filiação da GLLP", no qual o "mestre instalador" escreveu um comentário transcrito na notícia foi o nosso A Partir Pedra. O comentário foi publicado por AMG, Mestre Instalador da Loja em processo de constituição, a propósito do texto Loja Luz do Oriente (Macau).

A notícia parece-me genericamente correta e elaborada com o propósito de informar. Detetei, no entanto, duas pequenas imprecisões: a GLLP/ GLRP foi criada, não em 1996, mas sim em 1990, então sob o nome de GLRP. Em 1996, na sequência da cisão dos elementos afetos ao que ficou conhecido como "golpe da Casa do Sino", mudou de nome para GLLP/GLRP; não é completamente exato que todas as Lojas da GLLP/GLRP trabalhem, como afirma a notícia, no Rito Escocês Antigo e Aceite: a maior parte das Lojas da GLLP trabalham no REAA, mas há Lojas trabalhando noutros ritos. Aliás, e não sendo contas do nosso rosário, creio que não será também correto afirmar-se que todas as Lojas do GOL trabalhem no Rito Francês... Mas, bem vistas as coisas, trata-se de imprecisões naturais em quem assumidamente teve alguma dificuldade em recolher as informações que pretendia.

Rui Bandeira

09 setembro 2008

Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 - Base III



BASE III

DA HOMOFONIA DE CERTOS GRAFEMAS CONSONÂNTICOS

Dada a homofonia existente entre certos grafemas consonânticos, torna-se necessário diferençar os seus empregos, que fundamentalmente se regulam pela história das palavras. É certo que a variedade das condições em que se fixam na escrita os grafemas consonânticos homófomos nem sempre permite fácil diferenciação dos casos em que se deve empregar uma letra e daqueles em que, diversamente, se deve empregar outra, ou outras, a representar o mesmo som.


Nesta conformidade, importa notar, principalmente, os seguintes casos:

1º) Distinção gráfica entre ch e x: achar, archote, bucha, capacho, capucho, chamar, chave, Chico, chiste, chorar, colchão, colchete, endecha, estrebucha, facho, ficha, flecha, frincha, gancho, inchar, macho, mancha, murchar, nicho, pachorra, pecha, pechincha, penacho, rachar, sachar, tacho; ameixa, anexim, baixei, baixo, bexiga, bruxa, coaxar, coxia, debuxo, deixar, eixo, elixir, enxofre, faixa, feixe, madeixa, mexer, oxalá, praxe, puxar, rouxinol, vexar, xadrez, xarope, xenofobia, xerife, xícara.

2º) Distinção gráfica entre g, com valor de fricativa palatal, e j: adágio, alfageme, Álgebra, algema, algeroz, Algés, algibebe, algibeira, álgido, almargem, Alvorge, Argel, estrangeiro, falange, ferrugem, frigir, gelosia, gengiva, gergelim, geringonça, Gibraltar, ginete, ginja, girafa, gíria, herege, relógio, sege, Tânger, virgem; adjetivo, ajeitar, ajeru (nome de planta indiana e de uma espécie de papagaio), canjerê, canjica, enjeitar, granjear, hoje, intrujice, jecoral, jejum, jeira, jeito, Jeová, jenipapo, jequiri, jequitibá, Jeremias, Jericó, jerimum, Jerónimo, Jesus, jibóia, jiquipanga, jiquiró, jiquitaia, jirau, jiriti, jitirana, laranjeira, lojista, majestade, majestoso, manjerico, manjerona, mucujê, pajé, pegajento, rejeitar, sujeito, trejeito.

3º) Distinção gráfica entre as letras s, ss, c, ç e x, que representam sibilantes surdas: ânsia, ascensão, aspersão, cansar, conversão, esconso,farsa, ganso, imen­so, mansão, mansarda, manso, pretensão, remanso, seara, seda, Seia, Sertã, Sernancelhe, serralheiro, Singapura, Sintra, sisa, tarso, terso, valsa; abadessa, acossar, amassar, arremessar, Asseiceira, asseio, atravessar, benesse, Cassilda, codesso (identicamente Codessal ou Codassal, Codesseda, Codessoso, etc.), cras­so, devassar, dossel, egresso, endossar, escasso, fosso, gesso, molosso, mossa, obsessão, pêssego, possesso, remessa, sossegar, acém, acervo, alicerce, cebola, cereal, Cernache, cetim, Cinfães, Escócia, Macedo, obcecar, percevejo; açafate, açorda, açúcar, almaço, atenção, berço, Buçaco, caçanje, caçula, caraça, dan­çar, Eça, enguiço, Gonçalves, inserção, linguiça, maçada, Mação, maçar, Moçambique, Monção, muçulmano, murça, negaça, pança, peça, quiçaba, quiçaça, quiçama, quiçamba, Seiça (grafia que pretere as erróneas/errôneas Ceiça e Ceissa), Seiçal, Suíça, terço; auxílio, Maximiliano, Maximino, máximo, próximo, sintaxe.

4º) Distinção gráfica entre s de fim de sílaba (inicial ou interior) e x e z com idêntico valor fónico/fônico: adestrar, Calisto, escusar, esdrúxulo, esgotar, esplanada, esplêndido, espontâneo, espremer, esquisito, estender, Estremadura, Estremoz, inesgotável; extensão, explicar, extraordinário, inextricável, inexperto, sextante, têxtil; capazmente, infelizmente, velozmente. De acordo com esta distinção convém notar dois casos:

a) Em final de sílaba que não seja final de palavra, o x = s muda para s sempre que está precedido de i ou u: justapor, justalinear, misto, sistino (cf. Capela Sistina), Sisto, em vez de juxtapor, juxtalinear, mixto, sixtina, Sixto.

b) Só nos advérbios em -mente se admite z, com valor idêntico ao de s, em final de sílaba seguida de outra consoante (cf. capazmente, etc.); de contrário, o s toma sempre o lugar do z: Biscaia, e não Bizcaia.

5º) Distinção gráfica entre s final de palavra e x e z com idêntico valor fónico/ fônico: aguarrás, aliás, anis, após, atrás, através, Avis, Brás, Dinis, Garcês, gás, Gerês, Inês, íris, Jesus, jus, lápis, Luís, país, português, Queirós, quis, retrós, revés, Tomás, Valdês; cálix, Félix, Fénix flux; assaz, arroz, avestruz, dez, diz, fez (substantivo e forma do verbo fazer), fiz, Forjaz, Galaaz, giz, jaez, matiz, petiz, Queluz, Romariz, [Arcos de] Valdevez, Vaz. A propósito, deve observar-se que é inadmissível z final equivalente a s em palavra não oxítona: Cádis, e não Cádiz. 6º) Distinção gráfica entre as letras interiores s, x e z, que representam sibilantes sonoras: aceso, analisar, anestesia, artesão, asa, asilo, Baltasar, besouro, besun­tar, blusa, brasa, brasão, Brasil, brisa, [Marco de] Canaveses, coliseu, defesa, duquesa, Elisa, empresa, Ermesinde, Esposende, frenesi ou frenesim, frisar, guisa, improviso, jusante, liso, lousa, Lousã, Luso (nome de lugar, homónimo/ho­mônimo de Luso, nome mitológico), Matosinhos, Meneses, narciso, Nisa, obséquio, ousar, pesquisa, portuguesa, presa, raso, represa, Resende, sacerdotisa, Sesimbra, Sousa, surpresa, tisana, transe, trânsito, vaso; exalar, exemplo, exibir, exorbitar, exuberante, inexato, inexorável; abalizado, alfazema, Arcozelo, autorizar, azar, azedo, azo, azorrague, baliza, bazar, beleza, buzina, búzio, comezinho, deslizar, deslize, Ezequiel, fuzileiro, Galiza, guizo, helenizar, lambuzar, lezíria, Mouzinho, proeza, sazão, urze, vazar, Veneza, Vizela, Vouzela.

As determinações constantes desta base também em nada alteram a norma de escrita pré-existente, quer em Portugal, quer no Brasil. Note-se que, em bom rigor, com a exceção da norma que declara que é inadmissível z final equivalente a s em palavra não oxítona: Cádis e não Cádiz, esta base não fixa nenhuma regra orientadora de escrita. Limita-se a apresentar listas de palavras que, em razão das suas diferentes origens etimológicas, são escritas com letras diferentes representando os mesmos sons. Ou seja, aqui não há (salvo a exceção referida) regras para aprender e aplicar. A escrita correta das palavras indicadas nesta base só se aprende memorizando a forma de escrever de cada uma delas.
Dada a elevada tecnicidade dos termos utilizados, indica-se seguidamente o seu significado em linguagem mais corrente.
Homofonia - (do grego antigo "mesmo som") literalmente significa "vozes semelhantes" (definição extraída daqui ).
Grafema - é o nome dado à unidade fundamental de um sistema de escrita, podendo representar um fonema nas escritas alfabéticas, uma sílaba nas escritas silábicas ou em abjads, ou ainda uma ideia numa escrita. O grafema é a unidade formal mínima da escrita. Mínimo porque não pode ser desmembrado em dois ou mais sinais que também possam ser tratados como grafema. Formal porque é abstrato, não pode ser visto (definição extraída daqui).
Consonântico - relativo a consoante.
Fricativa palatal - emissão de som, resultante da fricção do ar expirado, decorrente da colocação da língua junto ao palato. Som representado em português pela letra j e, em certos casos, também pela letra g, seguida de e ou i.
Sibilante surda - sonoridade resultante da emissão de um sopro através dos dentes cerrados, semelhante ao som emitido pela cobra. Som normalmente representado em português por s ou ss.
Sibilante sonora - o mesmo, mas o sopro é acompanhado de voz resultando um som semelhante a um zumbido. Som normalmente representado em português por z, mas também por s entre vogais e, ainda, residualmente, por x entre vogais.
Fónico - relativo a som; sonoro.

Palavra oxítona - palavra que tem o acento tónico na última sílaba, por muitos designada como palavra aguda.
Rui Bandeira

08 setembro 2008

A propósito de anedotas e de sementes


O nosso “novato” A.Jorge aproveitou a 6ª feira, entrada do fim de semana, para propor uma reflexão sobre uma anedota, tirando no final (e muito bem) uma conclusão moral.
Acontece que recebi uma “estorinha” (não é uma anedota), com evidente relação com a conclusão moral tirada pelo A.Jorge no seu post.
Bom, a relação tem a ver o encaminhamento que é, ou pode ser, dado às sementes...
Transcrevo pois a estorinha que uma amiga fez o favor de me enviar hoje (6ª feira, dia 5).

Conta assim:

Uma chinesa velha tinha dois grandes vasos, cada um suspenso na extremidade de uma vara que ela carregava nas costas.
Um dos vasos era rachado e o outro era perfeito. Todos os dias ela ia ao rio buscar água, e ao fim da longa caminhada do rio até casa o vaso perfeito chegava sempre cheio de água, enquanto o rachado chegava meio vazio.
Durante muito tempo a coisa foi andando assim, com a senhora chegando a casa somente com um vaso cheio e outro meio de água.
Naturalmente o vaso perfeito tinha muito orgulho do seu próprio resultado - e o pobre vaso rachado tinha vergonha do seu defeito, de conseguir fazer só a metade daquilo que deveria fazer.
Ao fim de dois anos, reflectindo sobre a sua própria amarga derrota de ser 'rachado', durante o caminho para o rio o vaso rachado disse à velha :
"Tenho vergonha de mim mesmo, porque esta rachadura que tenho faz-me perder metade da água durante o caminho até casa..."
A velhinha sorriu :
"Reparaste que lindas flores há no teu lado do caminho, somente no teu lado do caminho ? Eu sempre soube do teu defeito e portanto plantei sementes de flores na beira da estrada do teu lado. E todos os dias, enquanto voltávamos do rio, tu regava-las. Foi assim que durante dois anos pude apanhar belas flores para enfeitar a mesa e alegrar o meu jantar. Se tu não fosses como és, eu não teria tido aquelas maravilhas na minha casa !"

Cada um de nós tem o seu defeito próprio : mas é o defeito que cada um de nós tem, que faz com que a nossa convivência seja interessante e gratificante.
É preciso aceitar cada um pelo que é ... e descobrir o que há de bom nele !
Portanto, meu "defeituoso" amigo/a, desejo que tenhas um bom dia e que te lembres de regar as flores do teu lado do caminho ! Já agora, envia este e-mail a algum (ou a todos) os teus amigos "defeituosos".
Sem esquecer que é "defeituoso" também quem to mandou ! ...

Este foi o texto completo da mensagem que me chegou.

(Não o alterei de propósito para agora poder escrever o seguinte:
Recuso definitivamente todas as mensagens que apelam à auto-divulgação, seja porque nos próximos 3 dias a Cláudia Schiffer me vai cair “amantissimamente” nos braços, seja porque durante o próximo mês ganharei o “euro-milhões” pelo menos 5 vezes.
Este apelo continuado de propagação de mensagens tem com resultado único o entupimento das vias de comunicação dos acessos à rede, estudados e preparados para uma utilização racional, que ficam completamente entupidos com a utilização desregrada que estas correntes provocam.
Para quem está longe da matéria pode comparar ao efeito que as grandes e inesperadas chuvadas têm nos sistemas de escoamento das águas públicas.
O sistema existente, que funciona muito bem durante 99% do ano, é incapaz de engolir a massa de água caída inesperadamente e em quantidade muito superior ao habitual, dando origem a cheias e às consequências nefastas que todos conhecemos.
É isso o que se passa também na rede de comunicação de dados internacional, resultando depois queixas de que os sistemas são lentos, têm erros ou, pura e simplesmente, não funcionam.

Este parágrafo de facto não tem relação com o que pretendo deixar-Vos.
Constitui apenas um pequeno desabafo pelo que… voltemos ao assunto.)

Este conto pequeníssimo termina com uma conclusão:
- Nada é completamente mau !
Pronto, já sei que virão argumentar que a inversa também é verdadeira.
Claro que é, mas cada um vê a metade da garrafa com os olhos que tem ou que quer ter.
Os otimistas de uma forma e os pessimistas da forma contrária.
Para este caso tanto me faz que a vejam meio cheia ou meia vazia.
Em qualquer dos casos o que me interessa é que sejamos capazes de perceber o que há de bom em cada momento, eventualmente esquecendo o resto que é mau, e percebendo o que é bom aproveitá-lo, para si próprio e para incentivar os que lhe estiverem próximos de modo a que num esforço de conjunto se não desperdice nada de bom e não se aproveite nada de mau.
E bem sabemos como muitas vezes deitamos fora o vaso rachado, como se dele nada houvesse para aproveitar.
Há um “Amigão do peito” que acha muita graça quando lhe digo que “até um relógio parado tem razão 2 vezes ao dia” (!).
O que quero afirmar com esse princípio (que não inventei, antes apanhei-o no ar, algures) é exactamente o mesmo: -Nada é completamente mau !
E assim vamos descobrindo formas de utilizar os recursos disponíveis. Mesmo sendo escassos é provável que, com jeito, se consigam resultados surpreendentes utilizando-os de forma adequado.
A este respeito ainda cá voltarei com um aspecto importante deste aproveitamento possível.
Agora, e para terminar, apontarei apenas dois princípios.
1 – Repito, até um relógio parado tem razão 2 vezes ao dia ou, por outra imagem, até um vazo rachado pode ser muito útil. Só temos que olhar o relógio na hora adequada ou utilizar o vazo para a função que ainda pode cumprir.
2 – E agora pegando no conceito moral concluído pelo A.Jorge no final do seu post, o que acontecerá se “comermos” as sementes em vez de as utilizar para lançar à terra, onde com a ajuda de um qualquer vazo rachado germinarão em belas plantas novas, embelezando o mundo e dando continuidade à vida, tal qual foi devidamente arquitetado em tempo útil ?

Pois é, se comermos as sementes e/ou deitarmos fora o vazo rachado o mundo ficará mais triste e a vida perderá alguns dos seus argumentos.
Também tal como na estória, os velhos são capazes de perceber facilmente que é assim.
JPSetúbal

06 setembro 2008

Poema maçónico

Onde quer que possas estar,
Onde quer que te detenhas a meditar,
Seja longe, em terras estranhas,
Ou simplesmente no lar, doce lar,
Sempre sentes um grande prazer,
Que faz vibrar as cordas do coração,
Apenas em ouvir a fraterna saudação
“Vejo que tens viajado muito, Irmão!”

Quando recebes a saudação do Irmão
E ele te toma pela mão
Isso comove-te e toca-te no íntimo,
Numa emoção incontida, por demais profunda.
Sentes que aquela união de Irmãos,
Que é um anseio da humanidade inteira,
Que se realiza no estender das mãos
E na voz a dizer fraternalmente:
“Vejo que tens viajado muito, Irmão”

E se és um estranho,
Solitário em estranhas terras,
Se o destino te deixou derreado,
Batido e à beira da morte, longe do lar,
Não há sentimento mais completo
Que aquele que te sacode sob a saudação
“Vejo que tens viajado muito, Irmão”

E quando chegar, finalmente, tua derradeira hora,
O momento de empreender a mais longa das viagens,
Revestido do branco avental de cordeiro
E sob a a escolta dos Irmãos que já passaram,
O Cobridor da Porta de Ouro,
Com Esquadro, Régua e Prumo
Pedir-te-á a Palavra de Passe
E dir-te-á, então,
“Passa. Vejo que tens viajado muito, Irmão”
Autor: desconhecido, do Oriente de Montana - USA

05 setembro 2008

Uma anedota

Como o fim-de-semana se aproxima, decidi transcrever aqui uma anedota que ouvi há dias e que acho "deliciosa".

Um industrial da nossa praça, tendo problemas com um equipamento informático, decidiu chamar um técnico. O técnico chegou, deu duas voltas ao equipamento e com uma simples chave de parafusos, deu 1/4 de volta num parafuso, tendo o equipamento ficado a funcionar perfeitamente.

Passados dias, chegou a factura. Tinha como descritivo "reparação informática - 1.000€".

O nosso empresário, achando a factura demasiado alta para um simples quarto de volta num parafuso, decidiu solicitar uma factura discriminada. A nova factura que chegou já tinha duas linhas:

  • Apertar 1/4 de volta no parafuso - 1 €
  • Saber qual o parafuso a apertar - 999€

A factura foi paga.

(PAUSA PARA RISOS)

Desta anedota, é possível concluir que numa situação destas, quereríamos todos receber os 1000€, que são bem melhores do que só um.

O problema é que só tem direito aos 1000€, quem sabe realmente identificar qual é o parafuso que é preciso apertar. Não chega dizer que sabemos ou ter um diploma que diz que sabemos ou até fazer um movimento do tipo "os 1000€ quando nascem são para todos..." ou ainda "eu não sei, mas a culpa não é minha..., logo também tenho direito".

Vem isto a propósito das dificuldades com que me defronto regularmente quando proponho formação aos meus colaboradores - é preciso quase impô-la. Estamos mais uma vez perante um problema "das duas ansiedades" - "deixem-me continuar a fazer o que sempre fiz, mas não me falem em deslocalizar a fábrica".

Como sociedade, temos todos de unir esforços no sentido de conseguirmos levar as pessoas a querer saber qual o parafuso a apertar, mais do que a apertá-lo.

Como? Persistindo e não baixando os braços, apoiando, motivando, reduzindo a resistência à mudança (ansiedade 1) e, em certos casos, ajustando ainda que ligeiramente a ansiedade 2. Já agora, dava jeito que tivéssemos todos uma atitude mais "agrícola" - semear para colher. Creio que por vezes comemos as sementes e reclamamos quando não há mais.

Bom fim-de-semana

04 setembro 2008

A CAVERNA E AS BARREIRAS do A.Jorge


Os variados acidentes com que tropecei ao longo dos últimos 3 meses não são de molde a desculpar a terrível “sornice” que me deu e que fez com que não tivesse dado qualquer ajuda ao “coitado” do Zé Ruah que arcou com a responsabilidade, por inteiro, de manter viva a chama diária do “A-Partir-Pedra” durante o mês de Agosto.
De facto, durante todo este tempo, até foram muito poucas as vezes que visitei o blog, umas vezes por não ter máquina disponível, outras porque a tinha para utilização muito “bate e foge”, outras ainda por “sornice”… pois, a mesma !

Agora regressado à base pude passar pelos textos entretanto “blogados” e, haja Deus, eis senão quando dou com um novo colaborante para as postagens (não é pastagens, é mesmo postagens ! O Rui que se entretenha a confirmar se cabe no acordo, acordado).
E fiquei muito feliz.
Primeiro porque é mais um que não promete, faz !
Segundo por ser quem é !
Terceiro porque, tal como diz o Zé R., soltaram o monstro… Agora aturem-no.

Grande texto, esta “iniciação” do A.Jorge !

Tocaste num ponto sensível do nosso dia a dia actual.
O facto é que não se pode reconhecer, e portanto desejar, o que se não sabe que existe.
Se apenas for mostrada a sombra, os homens não reconhecerão, nunca, a coisa razão da sombra e ficarão apenas com o conhecimento dessa imagem.

Certamente viram um filme sensacional (digo eu) que esteve nos cinemas há um ror de anos, mas que também já passou pela televisão mais de uma vez. Chama-se “Os Deuses devem estar loucos” e é um hino à interpretação do desconhecido.
No caso trata-se de uma garrafa de Coca-Cola vazia transformada em sinal divino, mas a circunstância é facilmente transponível para outro objecto qualquer.

Veja-se o conceito de “mar” das populações do interior que nunca tiveram oportunidade de se aproximar da costa.
Veja-se o que acontece com populações de milhões de pessoas que nunca viram um frigorífico ou uma máquina de lavar.

Passa na RPT1 uma série excelente, excelentemente realizada e interpretada, que dá pelo nome de “Conta-me como foi”.
Para quem viveu os anos 50 e 60 do século XX em Portugal, vê ali magistralmente retratado o percurso da tal subida ao cimo do monte, com a descoberta sucessiva das coisas escondidas que estavam para além das sombras que nos eram mostradas.
É como se tivéssemos vivido de verdade a estória do filme.
E até a piada da garrafa de Coca-Cola se aplica direitinha.
É que a Coca-Cola era proibida em Portugal, muito poucos sabiam da sua existência e menos ainda conheciam o feitio da embalagem.
Aquele filme poderia muito bem ter sido feito no Portugal daquela época.

E quando trago a questão para o nosso “dia a dia” estou apenas a apontar o que se passa com muitos milhões de seres humanos mantidos acorrentados de “pernas e pescoço” dentro de uma “caverna” que, por “força” da “força” das tecnologias da informação e da comunicação vão sendo forçadamente e esforçadamente abertas, os seus pescoços e pernas a pouco e pouco desacorrentados, e consequentemente também a pouco e pouco, mas cada vez mais depressa, vão enxergando luz, vão caminhando direitos ao cimo do monte, vão querendo ter a coisa, não se contentado já e apenas com a sombra da coisa.

É a vida, diria um.
É o progresso dirá outro.
E como sempre os extremos tocam-se, diz Óscar Wilde
– Vivemos uma época em que as coisas desnecessárias são as nossas únicas necessidades.

Como dizes, caríssimo A.Jorge, não sabes onde está o equilíbrio.
E alguém sabe ?

Provavelmente não.
Provavelmente se alguém soubesse calava-se e enchia-se de dinheiro.
Provavelmente não interessa que se saiba.
Provavelmente não é possível saber-se.
Provavelmente esse equilíbrio não existe.
Provavelmente… seria o fim da guerra.

Uma chatice !

Sê bem vindo. É preciso é continuação.
Primeiro estranha-se, depois…

(Olha, gostei das palavras do Sócrates ! Tens mesmo a certeza que foi ele ?)

Grande abraço.

JPSetúbal

03 setembro 2008

Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 - Base II


BASE II

DO H INICIAL E FINAL

1º) O h inicial emprega-se:

a) Por força da etimologia: haver, hélice, hera, hoje, hora, homem, humor.

b) Em virtude da adoção convencional: hã?, hem?, hum!.

2º) O h inicial suprime-se:

a) Quando, apesar da etimologia, a sua supressão está inteiramente consagrada pelo uso: erva, em vez de herva; e, portanto, ervaçal, ervanário, ervoso (em contraste com herbáceo, herbanário, herboso, formas de origem erudita);

b) Quando, por via de composição, passa a interior e o elemento em que figura se aglutina ao precedente: biebdomadário, desarmonia, desumano, exaurir, inábil, lobisomem, reabilitar, reaver.

3º) O h inicial mantém-se, no entanto, quando, numa palavra composta, pertence a um elemento que está ligado ao anterior por meio de hífen: anti-higiénico/ anti-higiênico, contra-haste, pré-história, sobre-humano.

4º) O h final emprega-se em interjeições: ah! oh!

Sobre o uso da letra h, H no início e no fim das palavras, nenhuma modificação o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 trouxe relativamente ao estatuido anteriormente, quer na norma de escrita de Portugal, quer na do Brasil.

Em Portugal, os opositores do Acordo acenaram com a supressão do h, H inicial em dezenas ou centenas de palavras de uso corrente, mas sem razão. Tal não acontece, nada muda!

Note-se que a possibilidade de supressão do h, H inicial só é admissível quando esta estiver INTEIRAMENTE consagrada pelo uso.

A situação mais próxima que antevejo de tal ocorrer poderá porventura ser o caso de humidade, húmido, que escritores consagrados, como é o caso de João Ubaldo Ribeiro grafam umidade, úmido. Porém, estamos, a meu ver, ainda muito longe de uma INTEIRA consagração pelo uso do abandono do h, H inicial nestas palavras, pelo que a norma correcta de as escrever continua, no meu entendimento, a ser com o h, H inicial: humidade, húmido.

Repito: nada muda, a este respeito, com o Acordo Ortográfico de 1990. Acenar com o contrário foi, do meu ponto de vista, condenável demagogia de quem se opunha a tal Acordo e, pelos vistos, não teve melhores argumentos do que agir como se os seus concidadãos fossem acríticos atrasados mentais, que tremeriam perante a atoarda lançada.

Rui Bandeira

02 setembro 2008

Grau e qualidade

É raro - mesmo muito raro! -o José Ruah cometer uma imprecisão quando escreve sobre Maçonaria. Aliás, é muito mais provável que desse defeito sofra muito mais eu, com o meu estilo palavroso, de frases complicadas e conceitos fluidos e o meu hábito de me entusiasmar com o que me parece um bom argumento, sem, por vezes, curar de todas as implicações das teses que defendo ou afirmo. O Ruah não. Com o seu estilo seco e directo e com o seu gosto pelas afirmações simples e claras, branco é branco, preto é preto e essa história dos cinzentos é para quem gosta de perder tempo com detalhes insignificantes, raramente escreve algo diferente do que quer efetivamente transmitir e do que tem por acertado.

Mas uma vez não são vezes e, num esclarecimento a uma pergunta do NuNo_R, formulada em comentário ao texto Nelson Évora, Campeão em Pequim e na Vida, quiçá apressadamente formulado, lá permitiu a exceção que confirma a regra e cometeu uma raríssima imprecisão. E eu, não porque alvoroçadamente aproveite para expor o pecadilho, mas porque não gosto que erros, ainda que menores, nas informações dadas aos nossos leitores fiquem sem correção, cá venho procurar pôr tudo no são, esperando que não fique a emenda pior que o soneto e não tenha o Ruah, ou outro qualquer, que vir limpar nódoa que eu irrefletidamente deixe em pano que melhor ficasse sem minha intromissão. Mas basta de entretantos, avancemos para os finalmentes!

Escreveu nesse esclarecimento o Ruah, a propósito das condições de elegibilidade para o ofício de Grão-Mestre, a dado passo:

Ou seja, é preciso ter o grau mais alto das Lojas AZUIS o de Mestre Instalado - não confundir com Altos Graus - e não há auto candidatos.


Não corresponde este trecho que citei, tenho a certeza, ao que o José Ruah queria dizer, pois bem sabe ele que não existe, nas Lojas Azuis, o grau de Mestre Instalado, nem esse hipotético e inexistente grau, precisamente por inexistir, é o mais alto das Lojas Azuis. Na Maçonaria Azul existem apenas três graus: Aprendiz, Companheiro e Mestre. O que existe é a qualidade de Mestre Instalado.

Essa qualidade assiste aos Mestres maçons que foram instalados na Cadeira de Salomão, isto é, que exercem ou já exerceram o ofício de Venerável Mestre.

Mas um Mestre Instalado não é mais Mestre do que os demais, não se encontra num grau superior aos demais Mestres maçons. Apenas se lhe reconhece a qualidade de ter sido instalado na Cadeira de Salomão e, portanto, ter sido considerado apto a dirigir uma Loja maçónica, tanto assim que já uma dirigiu, ou está dirigindo, ou, no limite, em ato imediatamente subsequente à sua instalação na cadeira de Salomão, vai dirigir.

O facto de ser condição de elegibilidade para o ofício de Grão-Mestre, na GLLP/GLRP, possuir-se a qualidade de Mestre Instalado tem a ver com o entendimento de que não deve ser admitido a exercer o mais importante ofício da Obediência quem não tenha a experiência de direção de uma Loja. Tão só.

Porque este blogue é - felizmente! - lido por maçons não só da GLLP/GLRP, faço aqui um pequeno desvio para deixar bem claro que esta opção regulamentar da GLLP/GLRP é apenas isso mesmo: uma escolha feita, pela razão aduzida, mas que não decorre de um Landmark ou de qualquer imposição maçónica. Outras Obediências podem legitimamente ter outras opções regulamentares, outros e diferentes critérios e condições de elegibilidade, sem que, por isso, alguma diminuição de estatuto ou consideração ou capacidade sofram os seus líderes. Cada Potência Maçónica tem as disposições regulamentares que muito bem entende e que tem por adequadas, dentro do espírito da Maçonaria. Esclarecimento que, por cautela, aqui deixo, para que não corra o risco de ser mal interpretado e de que se tirem ilações ou conclusões que eu não quis consignar e que porventura pudessem ferir suscetibilidades, que eu não quero, nem devo, nem tenho qualquer razão ou desejo de atingir. Quem percebeu, fique tranquilo e descansado quanto à pureza das minhas intenções; quem não percebeu, esqueça e passe adiante, que o assunto não lhe diz respeito...

Retomando caminho certo, direito e seguro, não vá o Ruah, ou qualquer outro, concluir mesmo, porventura com acerto, que efetivamente é pior a emenda que o soneto e melhor fora que eu não tivesse metido esta colherada, reafirme-se que a Maçonaria Azul tem apenas e só três graus e que cada maçon a um destes três pertence. Quanto às qualidades, duradouras, efémeras, ou mesmo ocasionais, podem ser de diferente natureza.

Exemplo claro de uma qualidade duradoura é a que aqui se refere de Mestre Instalado: uma vez obtida, conserva-se durante toda a vida maçónica. Quem tiver sido instalado na Cadeira de Salomão, será para sempre Mestre Instalado e nunca deixará de o ser, qualquer que seja o grau que lhe tenha porventura sido conferido fora da Maçonaria Azul, qualquer que seja a função que venha a exercer ou mesmo que mais nenhuma exerça.

Mais efémera é a qualidade que assiste ao maçon no exercício de um ofício: dura enquanto durar esse exercício. Quando um Mestre maçon exerce o ofício de Vigilante, ou de Orador, ou de Secretário, ou qualquer outro em Loja, atua na qualidade de Vigilante, ou Orador, ou Secretário, ou de Oficial de qualquer outro ofício. Quando intervém em Loja sem exercer qualquer ofício, não o faz na qualidade de Oficial.

Ocasional é, por exemplo, a qualidade de visitante numa Loja.

Com alguma frequência ouve-se um maçon dirigir-se a todos os Irmãos presentes, em todos os vossos graus e qualidades.

Rui Bandeira

01 setembro 2008

Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 - Base I


BASE I
DO ALFABETO E DOS NOMES PRÓPRIOS ESTRANGEIROS E SEUS DERIVADOS

1º) O alfabeto da língua portuguesa é formado por vinte e seis letras, cada uma delas com uma forma minúscula e outra maiúscula:

a A (á)

b B (bê)

c C (cê)

d D (dê)

e E (é)

f F (efe)

g G ( ou guê)

h H (agá)

i I (i)

j J (jota)

k K (capa ou cá)

l L (ele)

m M (eme)

n N (ene)

o O (o)

p P (pê)

q Q (quê)

r R (erre)

s S (esse)

t T (tê)

u U (u)

v V (vê)

w W (dáblio)

x X (xis)

y Y (ípsilon)

z Z (zê)

Obs.:

1. Além destas letras, usam-se o ç (cê cedilhado) e os seguintes dígrafos:

rr
(erre duplo), ss (esse duplo), ch (cê-agá), lh (ele-agá), nh (ene-agá), gu (guê-u) e qu (quê-u).


2. Os nomes das letras acima sugeridos não excluem outras formas de as designar.


2º) As letras k, w e y usam-se nos seguintes casos especiais:

a) Em antropónimos/antropônimos originários de outras línguas e seus deriva­dos:

Franklin, frankliniano; Kant, kantismo; Darwin, darwinismo: Wagner, wagneriano, Byron, byroniano; Taylor, taylorista;

b) Em topónimos/topônimos originários de outras línguas e seus derivados:

Kwanza; Kuwait, kuwaitiano; Malawi, malawiano;

c) Em siglas, símbolos e mesmo em palavras adotadas como unidades de medida de curso internacional:

TWA, KLM; K-potássio (de kalium), W-oeste (West); kg­quilograma, km-quilómetro, kW-kilowatt, yd-jarda (yard); Watt.

3º) Em congruência com o número anterior, mantém-se nos vocábulos derivados eruditamente de nomes próprios estrangeiros quaisquer combinações gráficas ou sinais diacríticos não peculiares à nossa escrita que figurem nesses nomes:

comtista, de Comte; garrettiano, de Garrett; jeffersónia/ jeffersônia, de Jefferson; mülleriano, de Müller; shakesperiano, de Shakespeare.

Os vocábulos autorizados registrarão grafias alternativas admissíveis, em casos de divulgação de certas palavras de tal tipo de origem (a exemplo de fúcsia/ fúchsia e derivados, bungavília/ bunganvílea/ bougainvíllea).

4º) Os dígrafos finais de origem hebraica ch, ph e th podem conservar-se em formas onomásticas da tradição bíblica, como Baruch, Loth, Moloch, Ziph, ou então simplificar-se: Baruc, Lot, Moloc, Zif. Se qualquer um destes dígrafos, em formas do mesmo tipo, é invariavelmente mudo, elimina-se: José, Nazaré, em vez de Joseph, Nazareth; e se algum deles, por força do uso, permite adaptação, substitui-se, recebendo uma adição vocálica: Judite, em vez de Judith.

5º) As consoantes finais grafadas b, c, d, g e h mantêm-se, quer sejam mudas, quer proferidas, nas formas onomásticas em que o uso as consagrou, nomeada­mente antropónimos/antropônimos e topónimos/topônimos da tradição bíblica;

Jacob, Job, Moab, Isaac; David, Gad; Gog, Magog; Bensabat, Josafat.

Integram-se também nesta forma: Cid. em que o d é sempre pronunciado; Madrid e Valhadolid, em que o d ora é pronunciado, ora não; e Calcem ou Calicut, em que o t se encontra nas mesmas condições.

Nada impede, entretanto, que dos antropónimos/antropônimos em apreço sejam usados sem a consoante final Jó, Davi e Jacó.

6º) Recomenda-se que os topónimos/topônimos de línguas estrangeiras se substituam, tanto quanto possível, por formas vernáculas, quando estas sejam antigas e ainda vivas em português ou quando entrem, ou possam entrar, no uso corrente.

Exemplo: Anvers, substituíndo por Antuérpia; Cherbourg, por Cherburgo; Garonne, por Garona; Genève, por Genebra; Justland, por Jutlândia; Milano, por Milão; München, por Muniche; Torino, por Turim; Zürich, por Zurique, etc.

Através desta primeira base do Acordo Ortográfico, o alfabeto português deixa de ter apenas 23 letras e alinha-se pelos restantes alfabetos latinos, com 26 letras. Esta é uma primeira modificação em relação ao que anteriormente ocorria. Não fazia, efetivamente, sentido que se omitisse no alfabeto as letras k, K, w, W e y, Y, quando, quer em antropónimos, quer em topónimos, mas não só, estas letras são utilizadas.

São também fixados os dígrafos em uso na língua portuguesa (segundo esta entrada da Wikipedia, a palavra dígrafo é formada pelos elementos gregos di, "dois", e grafo, "escrever". O dígrafo ocorre quando duas letras são usadas para representar um único fonema - a menor unidade sonora (fonética) de uma língua que estabelece contraste de significado para diferenciar palavras, conforme se vê aqui. Também se pode usar a palavra digrama (di, "dois"; grama, "letra") para designar essas ocorrências.) e é fixada a única letra que tem uma variante gráfica, o ç, Ç (cê cedilhado), aliás uma singularidade da língua portuguesa.

Note-se que, pela primeira vez, é indicada a forma de pronunciar cada letra ou dígrafo. Através desta indicação, verifica-se, por exemplo, que a letra g, G tanto pode pronunciar-se como guê e que a letra k, K pode ser identificada verbalmente como capa ou cá. Tenha-se, porém, em atenção que a própria base indica que os nomes das letras sugeridos não excluem outras formas de as designar. Assim, não é incorrecto, por exemplo, designar a letra w, W também por duble v ou a letra y, Y por i grego.

Rui Bandeira

31 agosto 2008

Barreiras à saída da caverna

Acabo de inventar um novo ditado popular - as mensagens são como as cerejas. Não tenho dúvidas de que será utilizado durante séculos, embora nessa altura possam já não saber o que são cerejas...

O comentário que o leitor nuno_r fez ao meu "post" sobre Tolerância, fez-me recordar um artigo de Edgar H. Schein, intitulado "Organizational and Managerial Culture as a Facilitator or Inhibitor of Organizational Learning", que me atrevo a transcrever de uma forma livre.

O processo de identificação de problemas, a busca de novas possibilidades e a mudança das rotinas, requerem novas formas de pensar e de agir. Ora aqui reside um problema, já que estamos a falar de alterar os nossos modelos mentais, os nossos hábitos em termos da forma como percebemos, pensamos e agimos, e até da forma como nos relacionamos com os outros. Estamos a falar de “desaprender” algumas coisas e de aprender outras novas. Este nível de mudança envolve dois tipos de ansiedade:

Ansiedade 1

A Ansiedade 1 é o medo de aprender algo novo. A aprendizagem nos indivíduos, nos grupos e nas organizações tende para a estabilidade. Todos tendemos para “gravar” as coisas que funcionam, bem como procurar previsibilidade e significado. É de facto a todas essas rotinas estáveis, hábitos de pensamento e formas de perceber as coisas, que nós chamamos “cultura”. Nós tendemos a procurar a novidade só quando a nossa situação está bem estabilizada e controlada.

A instabilidade e imprevisibilidade ou falta de significado são-nos desconfortáveis e criam ansiedade – a ansiedade 1-, ou medo de mudar, baseado essencialmente no medo do desconhecido. Esta é claramente uma situação que tendemos a evitar.

Ansiedade 2

Mas se, tal como todos vemos e prevemos, as mudanças económicas, politicas, tecnológicas e sócio-culturais estão elas próprias a tornar-se mais turbulentas e imprevisíveis, então vão surgir permanentemente novos problemas o que significa que as soluções que temos “gravadas” vão ser desadequadas. É possível assim descobrir que se não mudamos e aprendemos a aprender, as coisas vão-se complicar para o nosso lado. Isto levamos à Ansiedade 2 – a sensação desconfortável de que para sobreviver e ser bem sucedido, necessitamos de mudar e que se isso não ocorrer, poderemos falhar

Em resumo:

  • Ansiedade 1 – receio de mudar, de deixar as rotinas que temos já dominadas e de nos aventurarmos em terrenos que não conhecemos.
  • Ansiedade 2 – receio das consequências de não mudar. Se eu me mantiver tal como estou, estando tudo a mudar, o que é que me vai acontecer…

Perante tudo que foi exposto acima, parece ser evidente que só há mudança quando a ansiedade 1 é inferior à ansiedade 2, ou seja, o meu medo de mudar é inferior ao medo que tenho das consequências de não mudar. Daqui resulta também que é possível utilizar tudo isto de uma forma positiva ou de uma forma negativa, diria quase "maquiavélica". Importa perceber como:

  1. Reduzindo a ansiedade 1 - Esta é uma abordagem positiva já que acredita no potencial das pessoas e na sua capacidade para se adaptar a novas situações. Como é que isto se faz? através de políticas correctas de gestão de erros - não deve ser penalizado o erro que esteja dentro de limites aceitáveis; através de incentivos que levem as pessoas a querer mudar; através de formação, que faça as pessoas sentirem-se mais confiantes na sua capacidade de se adaptarem. Há contudo casos em que não é possível actuar unicamente através da ansiedade 1 - todos conhecemos situações em que o nível de ansiedade 2 é de tal forma baixo, que há um sentimento de quase imunidade - nestes casos, torna-se muito difícil reduzir o nível de ansiedade 1 para valores ainda mais baixos.
  2. Aumentando a ansiedade 2 - Se fizermos um inquérito junto das elites dirigentes do nosso país (e dos outros), provavelmente a conclusão será que "de um modo geral, todos utilizam só a ansiedade 1"; escrever num Blog dá-nos estas liberdades e eu atrevo-me a discordar. Tal como no caso da tolerância, também aqui parece haver uma diferença entre aquilo que gostaríamos de utilizar e o que realmente fazemos. É muito humano o dar muito mais ênfase às atitudes negativas do que às positivas - há quem diga que são mais marcantes e portanto ficam gravadas mais profundamente na nossa memória...
  3. Actuando simultaneamente sobre as duas ansiedades - talvez a posição mais razoável seja actuar simultaneamente sobre as duas ansiedades, dando prioridade à ansiedade 1 e estabelecendo limites máximos para a ansiedade 2. Qual é o ponto ideal de equilíbrio? Não faço ideia ... levo anos a tentar encontrá-lo e estou consciente de só ter conseguido até agora equilíbrios "menos maus".

Também aqui, talvez os leitores do Blog possam dar uma ajuda, se se atreverem a sair da caverna.

Respondendo ao nuno_r, podemos fazer constar que "vamos inundar as cavernas" e com isso aumentar a ansiedade 2, mas talvez seja preferível optar por outra estratégia. Como os níveis de ansiedade são diferentes, de pessoa para pessoa, teremos possivelmente de fazer "trabalho de alfaiate", ou seja, um traje à medida de cada um.

Saudações
A. Jorge

P:S: - Edgar, quando vieres ao Blog ... desculpa. Não tive intenção de maltratar as tuas ideias, embora o possa ter feito.

30 agosto 2008

A Alegoria da Caverna e a Tolerância

Todo o processo de configuração e carregamento de informação do website da Loja Mestre Affonso Domingues tem-me permitido reflectir mais uma vez sobre todos os valores na qual a Maçonaria se apoia e que, de alguma forma constituem o elo de ligação entre todos os Maçons.
Reconheço que de todos os valores, me revejo particularmente no da Tolerância, já que parece ter características que deveriam fazer dele uma pedra basilar para o relacionamento entre os humanos:

  • Nele assenta uma característica que faz do ser humano um “bicho interessante” – a diversidade. A diversidade e o individual são fundamentais para que a sociedade humana se distinga dum formigueiro – não nascemos pré-definidos e temos a possibilidade de sermos diferentes. Ao longo dos séculos, é a tolerância pela diversidade (quando existe) que tem facilitado os saltos qualitativos da nossa civilização.
  • Parece ser de fácil entendimento – creio que, de um modo geral, todos temos uma percepção sobre a tolerância, que não se afasta demasiado da realidade,
  • Parece ser de fácil aplicação – basta reconhecer nos outros o direito à diferença,
  • Parece ser universal – não se conhecem variações significativas entre as diversas culturas.
  • Parece existir em todos os humanos – nunca conheci ninguém que reconhecesse não ser tolerante.
E contudo, é na sua “ausência” que parece radicar a maioria dos desentendimentos que grassam por esse mundo fora – é como se existissem dois tipos de tolerância:
  • Aquela que todos reconhecemos ter e que é comum a todos e,
  • Aquela que praticamos.
Creio que o problema está precisamente aqui – praticamos uma tolerância que parece estar inquinada e influenciada por factores externos ao qual normalmente não reconhecemos a importância que têm.
Tudo isso vem a propósito de ter estado a reler a Alegoria da Caverna de Platão (reproduzida abaixo) e de durante esse processo ter ficado com a sensação de que todos vivemos realmente numa caverna - cada um na sua. Se assim é, então o relacionamento entre as pessoas embora pareça ser próximo, é na realidade muito mais distante, já que “gritamos” de caverna para caverna, cada um tentando fazer com que os outros reconheçam que as nossas sombras é que são as reais.
De facto, qual de nós pode dizer que conhece realmente a realidade? Cada um de nós tem uma percepção da realidade enformada por todas as suas “sombras”, o que a torna necessariamente diferente da dos outros, e é à luz desta percepção (aquilo que conseguimos ver de dentro da nossa caverna) que avaliamos cada acto que fazemos e a forma como nos devemos relacionar com os outros. É também à luz destas “sombras”, que aplicamos a nossa versão de “tolerância” – se a caverna é diferente e se as “sombras” também o são, então talvez resida aqui a razão para, tendo valores comuns, aplicarmos versões “costumizadas” de tolerância.
Acredito que a solução para muitos dos problemas está precisamente em conseguirmos tirar as pessoas das suas cavernas, ou pelo menos, juntá-las numa só. Desta unificação, só poderá resultar um melhor entendimento entre todos.
Como é que isso se faz? – não faço ideia. Deixo esta pergunta em aberto para os leitores do Blog poderem contribuir, se se atreverem a sair da sua caverna …
Saudações
A. Jorge

Alegoria da Caverna – Platão

O Mito da Caverna

Trata-se de um diálogo metafórico onde as falas na primeira pessoa são de Sócrates, e seus interlocutores, Glauco e Adimato, são os irmãos mais novos de Platão.

(…)
Sócrates – Agora imagina a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoços acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas.
Glauco – Estou vendo.
Sócrates – Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objectos de toda espécie, que os transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio.
Glauco - Um quadro estranho e estranhos prisioneiros.
Sócrates - Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e de seus companheiros, mais do que as sombras projectadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte?
Glauco - Como, se são obrigados a ficar de cabeça imóvel durante toda a vida?
Sócrates - E com as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo?
Glauco - Sem dúvida.
Sócrates - Portanto, se pudessem se comunicar uns com os outros, não achas que tomariam por objectos reais as sombras que veriam?
Glauco - É bem possível.
Sócrates - E se a parede do fundo da prisão provocasse eco sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles?
Glauco - Sim, por Zeus!
Sócrates - Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade senão às sombras dos objectos fabricados?
Glauco - Assim terá de ser.
Sócrates - Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objectos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objectos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçado e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objectos que lhe mostram agora?
Glauco - Muito mais verdadeiras.
Sócrates - E se o forçarem a fixar a luz, os seus olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a vista para voltar às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente mais distintas do que as que se lhe mostram?
Glauco - Com toda a certeza.
Sócrates - E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará de tais violências? E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras?
Glauco - Não o conseguirá, pelo menos de início.
Sócrates - Terá, creio eu, necessidade de se habituar a ver os objectos da região superior. Começará por distinguir mais facilmente as sombras; em seguida, as imagens dos homens e dos outros objectos que se refletem nas águas; por último, os próprios objectos. Depois disso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da Lua, contemplar mais facilmente, durante a noite, os corpos celestes e o próprio céu do que, durante o dia, o Sol e sua luz.
Glauco - Sem dúvida.
Sócrates - Por fim, suponho eu, será o sol, e não as suas imagens refletidas nas águas ou em qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar tal qual é.
Glauco - Necessariamente.
Sócrates - Depois disso, poderá concluir, a respeito do Sol, que é ele que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de tudo o que ele via com os seus companheiros, na caverna.
Glauco - É evidente que chegará a essa conclusão.
Sócrates - Ora, lembrando-se de sua primeira morada, da sabedoria que aí se professa e daqueles que foram seus companheiros de cativeiro, não achas que se alegrará com a mudança e lamentará os que lá ficaram?
Glauco - Sim, com certeza, Sócrates.
Sócrates - E se então distribuíssem honras e louvores, se tivessem recompensas para aquele que se apercebesse, com o olhar mais vivo, da passagem das sombras, que melhor se recor-dasse das que costumavam chegar em primeiro ou em último lugar, ou virem juntas, e que por isso era o mais hábil em adivinhar a sua aparição, e que provocasse a inveja daqueles que, entre os prisioneiros, são venerados e poderosos? Ou então, como o herói de Homero, não preferirá mil vezes ser um simples lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar às antigas ilusões e viver como vivia?
Glauco - Sou de tua opinião. Preferirá sofrer tudo a ter de viver dessa maneira.
Sócrates - Imagina ainda que esse homem volta à caverna e vai sentar-se no seu antigo lugar: Não ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz do Sol?
Glauco - Por certo que sim.
Sócrates - E se tiver de entrar de novo em competição com os prisioneiros que não se liberta-ram de suas correntes, para julgar essas sombras, estando ainda sua vista confusa e antes que seus olhos se tenham recomposto, pois habituar-se à escuridão exigirá um tempo bastante longo, não fará que os outros se riam à sua custa e digam que, tendo ido lá acima, voltou com a vista estragada, pelo que não vale a pena tentar subir até lá? E se alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazê-lo?
Glauco - Sem nenhuma dúvida.
Sócrates - Agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar, ponto por ponto, esta imagem ao que dissemos atrás e comparar o mundo que nos cerca com a vida da prisão na caverna, e a luz do fogo que a ilumina com a força do Sol. Quanto à subida à região superior e à contemplação dos seus objectos, se a considerares como a ascensão da alma para a mansão inteligível, não te enganarás quanto à minha ideia, visto que também tu desejas conhecê-la. Só Deus sabe se ela é verdadeira. Quanto a mim, a minha opinião é esta: no mundo inteligível, a ideia do bem é a última a ser apreendida, e com dificuldade, mas não se pode apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de recto e belo existe em todas as coisas; no mundo visível, ela engendrou a luz; no mundo inteligível, é ela que é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e é preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular e na vida pública.
Glauco - Concordo com a tua opinião, até onde posso compreendê-la.

(…) Trecho do livro VII da República de Platão )