Meter uma colherada
Havia decidido não gastar “tempo de antena” com este assunto do “Referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez”, conforme denominação da Comissão Nacional de Eleições, para além da referência, que considero definitiva (se isso existe), ao famoso poema da Natália Correia dedicada ao “Morgado”.
E agora estes dois trazem o tema ao “blog” e eu, invejoso que sou, tenho que vir postar uma colherada.
Ponto 1 – A minha posição sobre o assunto não se desvia 1 mm do que é exposto pelo Rui e complementado pelo José.
Ponto 2 – Tinha a expectativa de ter, no meu País e finalmente, um debate civilizado sobre este assunto, em contradição com as manifestações de intolerância (cá estamos outra vez com a … tolerância !), de sectarismo, de irrazoabilidade, de demagogia que movimentos de ambos os lados promoveram durante a campanha para o primeiro Referendo.
Ponto 3 – A principal razão desta minha expectativa baseava-se em declarações de altíssimos dignitários da Igreja Católica que anunciaram que a “Igreja não se iria meter no assunto por ser uma questão do foro individual”, como se da primeira não fosse também do foro individual.
Ponto 4 – Constato que, mau grado aquelas intenções anunciadas, tudo volta a acontecer como antes, com a Igreja Católica em campanha “eleitoral”, com a apresentação das mesmas razões dogmáticas e demagógicas valendo-se, premeditadamente, da acriticidade de grande parte da população que por valores religiosos acorre às suas assembleias.
Ponto 5 – Esclareço que faço este enfoque especial no caso da Igreja Católica pelo peso que as manifestações respectivas têm, ainda, no País e por que considero que, em vez de formar e esclarecer as consciências, aquela Igreja aposta ainda em muitas paróquias, no obscurantismo e no acriticismo dessas mesmas consciências (se calhar todas as Igrejas são assim, mas é a esta que agora me refiro).
Não é fácil nomear muitas entidades que, mundial e historicamente, tenham maiores responsabilidades directas em morticínios, em holocaustos terríveis de milhões de seres humanos, do que a Igreja de Roma.
Pois com o aval dessa mesma entidade, promovem-se e escrevem-se eventos a favor do “não”, dos quais trago 2 belos exemplos !
22 de Janeiro no Jornal de Notícias
O Cónego Tarsício Alves, num boletim distribuído hoje, na paróquia de Castelo de Vide, escreve que o funeral religioso está impedido aos cristãos que cometam o aborto, acrescentando que são excomungados "automaticamente" pela lei da Igreja.
O Cónego Tarsício Alves, da paróquia de Castelo de Vide, Portalegre, distribuiu hoje o Boletim Paroquial em que refere que "as mulheres que cometem o aborto estão impedidas de ter um funeral religioso" invocando, para tal, o cânone 1184 do Código Canónico.
Segundo o Cónego, o funeral eclesiástico é "um sinal da plena comunhão" e quem "comete um aborto incorre automaticamente numa excomunhão, a mais pesada das censuras eclesiásticas".
Na última edição de 2006, do folheto que publica semanalmente, o Cónego
Tarsício Alves pôs à "reflexão" dos fiéis "cinco casos reais da vida concreta" e num deles pergunta se recomendaria o aborto a uma jovem grávida e não casada, não sendo o noivo o pai da criança: "Se respondestes Sim, terias morto Jesus Cristo", pode ler-se.
O Cónego Tarsício Alves escreve também que considera o aborto "um crime nefando contra a vida humana".
15 de Janeiro no Diário de Notícias
Junto à estátua de D. José, o rei que expulsou os jesuítas de Portugal, algumas dezenas de católicos juntaram-se ontem de manhã para rezar o terço, atraindo as atenções dos raros turistas indiferentes à névoa fria que pairava sobre o Terreiro do Paço. Pastoreados pelo padre Dehoniano Macedo, pároco da igreja do Loreto, ao Chiado, intercalavam as rezas com cânticos ritmados em louvor à Virgem. Mais mulheres que homens, mais idosos que jovens, todos irmanados num propósito: "Alertar as consciências das pessoas para combater esse mal que é o aborto." Palavras de uma paroquiana do padre Macedo, apostado neste conjunto de iniciativas "para dar mais visibilidade" ao combate ao aborto. A pensar no referendo de 11 de Fevereiro. "Começámos na noite de Natal e vamos prosseguir", assegura o sacerdote, dizendo que a ideia partiu "de várias pessoas" que costumam escutá-lo na missa dominical.Uma imagem da Senhora de Fátima foi colocada em destaque, na base da estátua de Machado de Castro, erigida no Terreiro do Paço a 12 de Outubro de 1833. Eram tempos funestos para os católicos portugueses: grassava a guerra civil entre absolutistas e liberais, no ano seguinte as ordens religiosas seriam expulsas do País. Mas o espectro da História não demovia o padre Macedo: "Decidimos vir para aqui por ser uma praça bonita, ampla e emblemática", justifica ao DN, enquanto recebe saudações de várias mulheres que minutos antes haviam orado com ele - várias delas, pertencentes à Comunidade Emanuel, ajudaram a conferir mais vibração aos cânticos.Mas esta não era uma celebração do terço como qualquer outra. Nas breves palavras que dirigiu aos fiéis, o padre Macedo não deixou lugar a dúvidas: aquela reunião matutina à beira-Tejo, desafiando o nevoeiro e a humidade de Janeiro, destinava-se a "defender a vida e os direitos de qualquer ser humano, nascido ou por nascer". Os católicos congregados na praça mandada construir por um ilustre maçon chamado Sebastião José de Carvalho e Melo, mais conhecido por Marquês de Pombal, são activos militantes antiaborto. Para tornar este facto ainda mais notório, uma senhora distribuía folhetos com versículos da Bíblia. Com uma frase de Jeremias: "Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia; antes que saísses do ventre de tua mãe, Eu te consagrei." E esta, extraída dos Salmos: "Na verdade, Tu me tiraste do seio materno; puseste-me em segurança ao peito de minha mãe. Pertenço-Te e desde o ventre materno; desde o seio de minha mãe, Tu és o meu Deus."Equilibrada a imagem sobre um manto votivo, duas guitarras ajudaram a soltar ainda mais as vozes: "Avé Maria, sê nosso refúgio / toma as nossas preces / e pede a Deus por nós." Algumas mãos erguiam-se para os céus, outras seguravam nos rosários. Antes de ser rezado o terceiro mistério, ficou evidente o que ali atraía aqueles paroquianos do Loreto e outros templos de Lisboa. "Vamos pedir ao Senhor por todas as mães que estão em perigo e todas as grávidas que estão em perigo. Porque estão sozinhas, são maltratadas, e não sabem o que vão fazer aos filhos que têm e aos filhos que estão por nascer", escutou-se no Terreiro do Paço, onde ontem os pombos pareciam tolhidos pelo frio.O fruto das entranhasMais um cântico. Nos folhetos que circulavam de mão em mão, destacava-se uma frase de Isaías: "Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebé, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria." E evocavam-se palavras de João Paulo II sobre o aborto: "Reivindicar o direito ao aborto e reconhecê-lo legalmente equivale a atribuir à liberdade humana um significado perverso e iníquo: o significado de um poder absoluto sobre os outros e contra os outros. Mas isto é a morte da verdadeira liberdade."O terço evoluía, entrava-se enfim no quinto e derradeiro mistério: "Vamos pedir a intercessão pelo futuro das nossas gentes, dos nossos jovens, das nossas crianças. Para que seja afastada da nossa sociedade qualquer ameaça de morte."Os cânticos surgiam mais ritmados, havia quem lesse outra citação dos Salmos: "Quando os meus ossos estavam a ser formados, e eu, em segredo, me desenvolvia, tecido nas profundezas da terra, nada disso Te era oculto. Os teus olhos viram-me em embrião. Tudo isso estava escrito no Teu livro."Logo após a Salve Rainha, cantada, o padre Macedo fez uma alusão inequívoca ao referendo. Para que não restassem dúvidas de qualquer espécie: "Até ao dia 11, vamos cada vez mais pedir a Nossa Senhora que nos dê o dom da vida." Terminava a celebração com este apelo. E logo nas conversas informais que ali irromperam surgiram frases espontâneas em que era evidente a oposição geral daqueles católicos à despenalização do aborto.Casais de turistas, curiosos, acercavam-se do grupo: as freiras ali presentes foram muito fotografadas, entre dois planos do arco da Rua Augusta. Passavam ciclistas, fardados a preceito para dar ao pedal. Um peruano tocava para ninguém ouvir no outro extremo da praça. Prestes a ser desmontada, a "maior árvore de Natal da Europa", paga por uma instituição bancária, ainda foi a tempo de assistir a tudo isto.