27 outubro 2010

Regra particular


Cada agrupamento humano institui as regras que lhe convêm. Por vezes, uma instituição adota uma regra que normalmente não é adotada, que muitas outras não consideram boa - mas que se revela adequada à instituição que a adota, em função das suas particularidades.

Na GLLP/GLRP, desde a sua fundação, vigora uma regra que não é comummente adotada - e que não creio que fosse saudável a sua adoção generalizada. Essa regra postula que, no processo eleitoral para a eleição do Grão-Mestre, efetuada a votação e contados os votos, apenas seja divulgado quem foi eleito Grão Mestre, não se divulgando o concreto resultado quantitativo da eleição - isto é, o número de votos recebido por cada candidato. Mais, os elementos que integram a assembleia de apuramento dos resultados - composta pela Comissão Eleitoral e pelos candidatos ou seus representantes - ficam obrigados a rigoroso dever de sigilo quanto a esse resultado quantitativo.

Esta regra evidentemente não é adequada para a generalidade dos casos. Na maior parte das eleições, a exigência de transparência impõe que sejam pormenorizadamente divulgados os resultados apurados. Porquê então esta regra, neste particular caso? Porquê a falta de preocupação com a transparência?

A resposta está em que, por um lado, a necessidade de zelar pela transparência é aqui reduzida e, por outro, um outro valor se procura defender.

A necessidade de transparência é neste caso reduzida, atento o universo de votantes e de interessados. Votam para Grão-Mestre todos os Mestres da GLLP/GLRP. Ser Mestre Maçom pressupõe uma elevação ética, a ser constantemente exercida, que impede que haja fraude eleitoral. Mais: que torna impensável a possibilidade de fraude eleitoral. A genuinidade e honestidade do processo - e a fiscalização do seu decorrer - está garantida pelo respeito que merece a Comissão Eleitoral e a confiança que todos depositam na sua imparcialidade, além de, obviamente, o apuramento dos resultados ocorrer na presença e sob fiscalização dos candidatos ou seus representantes. Todos sabem que o candidato que for anunciado como tendo sido eleito é aquele que, sem margem para dúvidas ou suspeitas, recolheu mais votos. Isso é ponto assente!

Assim sendo, a divulgação quantitativa dos resultados apenas serviria para satisfazer a curiosidade. A não divulgação quantitativa dos resultados protege um outro valor: a imagem, a valia, o potencial futuro do ou dos candidatos derrotados! Pouco importa a dimensão da vitória do candidato escolhido. Não esqueçamos que a dimensão da vitória do escolhido é diretamente proporcional à dimensão da derrota do ou dos preteridos...

O processo de votação para eleição de Grão-Mestre potencia probabilidades de existência de resultados desnivelados. Todos os Mestres dispõem de um voto, mas o voto é exercido pelos Mestres nas suas Lojas, em sessões especificamente convocadas para a eleição. O forte cimento que liga os obreiros de uma Loja entre si, o hábito da busca e obtenção de consensos, potencia as possibilidades de cada Loja ter votações muito fortes, quiçá unânimes, ou quase, no candidato em relação ao qual na Loja se gerou consenso no sentido do seu apoio. Isto gera a tendência de - salvo quando haja porventura significativa divisão entre Lojas quanto à escolha do candidato a eleger - para que o resultado quantitativo seja uma votação muito significativa, quiçá esmagadora, no candidato eleito.

E, no entanto, a significativamente menor expressão eleitoral do ou dos candidatos derrotados não implica a sua menor valia. Sobretudo, não implica que não seja ou sejam capazes ou merecedores para exercer o ofício de Grão-Mestre. Significa apenas que, naquele particular momento, a escolha recaiu noutro. Tão só.

Ao não se divulgar resultados quantitativos, protege-se a igualdade qualitativa dos candidatos. A votação não escolheu um em detrimento de outro ou de outros porque aquele era bom e este ou estes eram maus. Escolheu-se de entre vários Irmãos a quem foi reconhecida capacidade para o exercício do cargo - e por isso beneficiaram da proposta de vários Mestres - um para o exercer. Aquele que, naquele momento, se entendeu ser o que teria condições para melhor exercer a função. Tão só. O que não quer dizer que, na eleição seguinte, o ou um dos derrotados desta eleição não possa vir a recolher o apoio para ser, por sua vez e então, eleito.

Ter sido candidato derrotado não inviabiliza ou dificulta eleição posterior. Mas ter sido candidato copiosamente derrotado pode dificultar muito essa possibilidade e, quiçá injustamente, quiçá com prejuízo para a instituição, liquidar as possibilidades futuras de eleição de um bom candidato que, em determinado momento, defrontou e perdeu perante outro que foi então considerado mais bem colocado para exercer o ofício, em detrimento de, possivelmente, um menos bom candidato que beneficiaria de não ter sofrido anteriormente copiosa derrota... apenas porque não se apresentou à eleição.

Em eleições maçónicas, não há vencedores nem vencidos. Há apenas os que são escolhidos e os que, naquele momento, o não são. Aquele que foi preterido numa escolha eleitoral não deve ficar, de forma alguma, diminuído para o futuro. Essa preterição não significa que não tenha capacidade ou merecimento para o exercício da função. Significa apenas que, naquele momento concreto, se entendeu haver outro um pouco mais bem qualificado ou um pouco mais merecedor de a exercer. E a diferença de valia, naquele momento, entre ambos, pode ser muitíssimo menor, do que a expressão eleitoral quantitativa resultante de uma votação.

Não é comum, sabemos, esta regra. Mas é uma regra que protege e salvaguarda os preteridos numa votação, mantendo incólumes as suas possibilidades no futuro. E isso já sucedeu! Já foi eleito um candidato que, na eleição anterior, tinha sido preterido em favor de outrem. Sem problemas: a generalidade dos votantes não sabia se, nessa eleição, fora preterido por curta margem ou copiosamente batido na escolha. A eleição subsequente não foi, assim, perturbada por um elemento que - manifestamente - não fez falta nenhum para a escolha então efetuada.

Esta regra que mantemos entre nós, na GLLP/GLRP, não é - sabemo-lo bem - suscetível de ser comummente aplicada. Mas atrevo-me a pensar que o mundo será um pouco melhor se e quando puder sê-lo, sem problemas...

Rui Bandeira

24 outubro 2010

A interpretação e significado dos símbolos maçónicos


Hermann Rorschach foi um psiquiatra suiço que viveu entre 1884 e 1922, e que ficou conhecido pelo seu trabalho sobre o significado psicológico de interpretações dadas a manchas de tinta, tendo desenvolvido para isso uma técnica que tomou seu nome: o teste de Rorschach. Este teste baseia-se na chamada "hipótese projetiva", de acordo com a qual a pessoa a ser testada, ao procurar organizar uma informação ambígua (ou seja, sem um significado claro, como as pranchas do teste de Rorschach), projeta aspectos da sua própria personalidade. O intérprete (ou seja, o psicólogo que aplica o teste) teria assim a possibilidade de reconstruir os aspectos da personalidade que teriam levado às respostas dadas. Dito de outro modo: confrontado com um objeto sem um significado previamente estabelecido, o sujeito atribui-lhe uma conotação, uma semântica, um sentido que decorre, essencialmente, de si mesmo, não tendo que ser - e frequentemente não sendo - uniformes e invariáveis os significados atribuídos de um sujeito para outro.

Algo de semelhante sucede na maçonaria com os símbolos. Há símbolos a que se atribui significados convencionados - como o esquadro que, servindo para traçar ângulos retos, evoca a retidão de caráter - o que não impede que lhes sejam atribuídos outros significados. Outros símbolos traduzem uma maior diversidade de sentidos - como o G que a maçonaria regular coloca entre o esquadro e o compasso. Símbolos mais obscuros, menos frequentes e de menor universalidade são por vezes encontrados num contexto maçónico, mas poderão ser  apenas percetíveis e utilizados num determinado contexto cultural, no âmbito de certo rito, ou confinados a um perímetro geográfico específico. Contrariamente ao teste de Rorschach, todavia, o recurso à simbologia pela maçonaria não tem o fim de constituir qualquer análise psicológica ou psiquiátrica por um terceiro, mas apenas de cada um por si mesmo.

A simbologia maçónica - que tem como tema dominante a maçonaria operativa medieval, a que hoje chamaríamos arquitetura ou engenharia civil - tem o triplo propósito de estabelecer uma estrutura e um  contexto cultural para os arquétipos universais que identificam a maçonaria, uma forma sintética de comunicação de conceitos, e uma cultura de heterogeneidade e tolerância. Cada símbolo maçónico - normalmente coisas tão banais como uma pedra ou uma colher de pedreiro - evoca um ou mais significados que, no seu conjunto, constituem uma matriz semântica que dota a Ordem de um contexto cultural que, por sua vez, enquadra e dá corpo aos conceitos e princípios que a maçonaria pretende transmitir, propagar e perpetuar. Fica assim estabelecida, em torno dos símbolos, uma linguagem que, de forma sintética, permite a rápida e eficaz evocação, relacionamento e comunicação de conceitos, bastando por vezes uma simples palavra para transmitir um conceito complexo no seu contexto adequado. Por fim, ao não fazer corresponder de forma imposta, rígida e imutável os símbolos aos conceitos, a simbologia maçónica permite que cada maçon atinja as sua próprias respostas às importantes questões filosóficas que a vida coloca.

Contudo - e isto é a minha interpretação pessoal, que vale o que vale - a maior virtude do recurso à simbologia e à alegoria consiste no distanciamento que estabelece entre os princípios e a sua aplicação. Este distanciamento possibilita que a interiorização dos conceitos decorra da sua aplicação a um sujeito abstrato (e, mesmo, claramente do foro do mítico e do imaginário), e que só uma vez absorvida a sua essência e apercebidas as consequências da sua incorporação no edifício ético e moral individual - o que pode levar mais ou menos tempo, ou nunca suceder de todo - cada um aplique então a si mesmo o significado pessoal e personalizado que atribuiu ao símbolo, interiorizando-o e consolidando-o da forma que entende ser a que mais se adequa à sua própria realidade e, por fim - porque, em maçonaria, nada se ensina mas tudo se aprende - tire partido da lição que deu a si mesmo.


Paulo M.

20 outubro 2010

A Maçonaria nos dias de hoje


A Maçonaria teve historicamente o seu auge, em termos quantitativos, após o final da Segunda Guerra Mundial. Tinham-se vivido anos de horror e de violência inauditos. Os sobreviventes dos combatentes no conflito necessitavam de manter a camaradagem, a união, o espírito de corpo, que sentiam ter possibilitado a sua sobrevivência. Uma das formas que, sobretudo nos países anglossaxónicos, acharam para o fazer foi buscar a admissão nas Lojas maçónicas e aí praticarem essa particular forma de camaradagem que inexoravelmente os marcou. Por outro lado, os horrores vividos e assistidos mostraram a muitos e muitos a necessidade de um espaço de convivência sã e de aprimoramento ético. Quem conviveu com o mal aprecia mais plenamente o bem!

O pós Segunda Guerra Mundial foi assim um período de grande florescimento da Maçonaria, em que os números dos maçons cresceram até atingirem níveis nunca antes historicamente atingidos.

Mas a vida é feita de ciclos! A essa fase de crescimento seguiu-se - inexoravelmente - uma fase de declínio. As condições sociais mudaram. A prosperidade material foi desfrutada por mais gente. As gerações sucederam-se. O que foi vivido no tempo daquela guerra passou a ser mera matéria de documentário histórico para os filhos, netos e bisnetos da geração que vivera aquele tempo. O que fora importante para a geração do pós-guerra não era já entendido nem sentido como tal pelas gerações subsequentes - e, bem vistas as coisas, ainda bem que as gerações subsequentes tiveram a possibilidade de não viver, nem sentir, nem suportar, aqueles duros tempos! Outras solicitações sociais e de utilização de tempos livres se perfilavam. E a Maçonaria, em termos quantitativos, declinou sensivelmente. Passou a ser vista como uma coisa de cotas nostálgicos e ultrapassados e de cromos com a mania de se armarem em diferentes. Tantas coisas para fazer na vida, tanta vida para viver, tanto trabalho para fazer, tanto para conquistar - para quê gastar (ou perder) tempo com essa coisa esquisita, meio desconhecida, fechada? Com a escolaridade a aumentar exponencialmente, quando os jovens passavam anos e anos a preparar-se para a vida ativa e esta era cada vez mais competitiva, que esquisitice era essa do autoaperfeiçoamento? Não era evidente que cada geração era melhor, mais sabedora, mais dinâmica, mais apta, do que a anterior? A Maçonaria não passava, para muitos, de um resto do passado, em vias de fossilização, em persistente declínio, precursor da inevitável decadência e do inexorável arquivamento nas prateleiras das curiosidades da história! A vida moderna, a tecnologia, o progresso imparável, o céu que é o limite do pujante avanço da Humanidade, relegavam a vetusta organização para a sala dos fundos onde as relíquias do passado acumulavam respeitável poeira...

Mas os ciclos inexoravelmente avançam, as suas fases sucedem-se e, nunca se repetindo exatamente da mesma forma, as grandes tendências inevitavelmente que paulatinamente se repetem. Este início do século XXI parece mostrar-nos uma mudança de ciclo da Maçonaria, em que o declínio cessou e o crescimento recomeça.

A vida moderna insensivelmente empurra-nos para a massificação, a generalização. Cada vez mais, cada um de nós é menos um indivíduo e mais um número, um fator, um pequeno elemento de um conjunto cada vez mais numeroso. E cada vez mais descobrem que a Maçonaria permite aos que a integram dispor de um espaço, de tempo e de locais em que cada um consegue afastar essa asfixiante sensação de ser apenas uma peça de um imenso formigueiro humano e assumir-se como indivíduo inserido numa comunidade e com ela e os seus outros componentes interagindo. Volta a "estar em alta" no "mercado" dos valores pessoais e sociais a necessidade de ética, a vontade de aperfeiçoamento, a interação com pequenos grupos de pares, com interesses e objetivos similares.

Cada um de nós sente que, por si só, não consegue deixar de ser apenas um número, inseto numa colmeia, peça de uma imensa máquina que é a sociedade de hoje. Mas verifica que, inserida num grupo com dimensão humana, em que todos se conhecem e se podem conhecer, a individualidade de cada um tem significado e é reconhecida nesse grupo com dimensão humana. E que, inserido nesse grupo, os progressos de cada um são reconhecidos pelos demais, tal como cada um reconhece os progressos dos demais. Ser um parafuso bem polido num depósito de milhões de parafusos é irrelevante. Mas ser uma pessoa, um indivíduo, com virtudes a cultivar, com defeitos a combater, com arestas a polir, no meio de iguais, também com virtudes e defeitos e arestas, mas sobretudo sendo cada um UM, diferente entre iguais - isso é gratificantemente diferente!

Nos dias de hoje, a Maçonaria é uma ancestral instituição que - como é caraterístico das instituições verdadeiramente relevantes e duradouras - se reinventa para responder aos desafios e às necessidades de agora. E hoje é necessário - cada vez mais urgentemente necessário! - que a vetusta instituição da Maçonaria disponibilize a quem disso cada vez mais necessita o tempo, o espaço, o meio, as ferramentas, para que o homem-número que o progresso que trilhámos criou se transforme no Homem Completo que cada um de nós tem a potencialidade de ser. Único. No melhor e no pior. Cada vez com mais melhor e menos pior. Mas sobretudo Homem - imprescindivelmente diferente entre iguais.

Tempo virá em que novo declínio experimentará a Maçonaria, em que os nossos filhos, ou netos, ou bisnetos, de forma geral a verão de novo como coisa do passado. Não é esse o tempo que vivemos. O tempo de agora é de crescimento, de consolidação, de valorização. Porque os Valores que recebemos dos nossos antecessores e que cultivamos para transmitir aos vindouros são intemporais, essenciais e imprescindíveis para o Homem e para a Humanidade.

Curiosamente, a imutável linha de rumo da Maçonaria parece atuar como força de equilíbrio na Sociedade. No passado, quando imperava a desigualdade, a Maçonaria foi um espaço de igualdade. Hoje, quando a normalização impera ao ponto de asfixiantemente nos sentirmos números num conjunto, formigas cumprindo desconhecida missão do formigueiro, obreiras mecanicamente contribuindo para a manutenção e crescimento da Grande Colmeia social em que nos sentimos aprisionados, a Maçonaria possibilita a cada um dos seus elementos que exercite, execute, desenvolva, a sua individualidade. O combate de há trezentos anos era o de convencer a sociedade inteira da igualdade essencial dos seus membros. Hoje, o desafio é o de consciencializar todos de que essa igualdade só se concretiza verdadeiramente se for permitido a cada um desenvolver a sua individualidade. Porque cada um de nós é verdadeiramente único e diferente entre iguais. E é essa Diferença na Igualdade que, afinal, constitui a maior riqueza de uma sociedade.

As épocas sucedem-se, as modas vêm e vão, os tempos mudam - mas os Valores essenciais, esses, são perenes e cultivá-los com são equilíbrio é Arte verdadeiramente Real!

Rui Bandeira

18 outubro 2010

Como se pode - ou não - falar de religião em loja


A proibição de discussão religiosa em loja é assunto reiteradamente debatido. Não há, todavia, como o exemplo para ilustrar o princípio. Quando procurava uma ocorrência - real ou fictícia - que não soasse forçada, recebo um simpático cumprimento feito por um leitor aqui num dos comentários: "Que o Senhor lhe conceda discernimento para encontrar a verdade que liberta e está em Cristo Jesus!". Nem de propósito. Este cumprimento, feito sem qualquer dúvida com a melhor das intenções, consubstancia, precisamente, o tipo de discurso que, apesar de socialmente admissível fora de loja, não o é numa loja maçónica.

Mas porque é que um simples cumprimento como este - que até é auspicioso, traduzindo os desejos de que suceda ao seu destinatário uma coisa que o emissor tem por positiva - não é admissível em loja? Vejamos com mais atenção o que se diz. "Que o Senhor"... Até este início insuspeito pode gerar controvérsia; se, por exemplo, se pertencer a uma religião que denomine a Divindade de uma outra forma, é quanto basta para que se sinta a expressão como estranha. Nesse sentido, não é difícil imaginar uma situação em que alguém interprete isto como sinónimo de "que o meu Deus - que não é o teu - te conceda isto e aquilo". "... a verdade que liberta ...", esta sim, é uma  quase certa fonte de discórdia, por causa da sua mais pequena palavra: "a". Referir-se "a" verdade que liberta, especialmente junto de um nome comummente associado a certa religião, implica ser esta verdade algo de único, que não há outra, e que muito menos há várias. Referirmos a existência de um único caminho certo implica que quem não o percorra estará a ir... por caminhos errados - o que é contrário à ideia de que cada um deva sentir ser respeitadas as suas crenças de forma que não haja preponderância de quaisquer outras sobre estas - ou destas sobre quaisquer outras. Isto faz-nos chegar à última parte: "... e está em Cristo Jesus". Se a todas as outras fórmulas se poderia, eventualmente, fazer "vista grossa" quando utilizadas em loja, esta última não é, de todo, passível de ser aceite, por ser indiscutivelmente própria de uma religião, e por isso sentida como estranha por quem professe uma fé diversa.

Cada religião tem uma terminologia própria para referir a(s) divindade(s) a quem presta culto. Forçar seguidores de várias crenças a utilizar a terminologia de uma delas seria algo de muito pouco paritário. Para ultrapassar esta dificuldade, a maçonaria decidiu adotar uma nomenclatura própria, alheia a qualquer crença ou religião - e por isso equidistante de todas estas - para designar a Divindade. Assim, em vez de um dizer Elohim, outro Deus e outro Jesus Cristo; em vez de invocar Allah ou Jeová, Krishna ou Zoroastro, Thor, Zeus - ou a Divindade por qualquer outro nome - os maçons dizem "Grande Arquiteto do Universo". Essa expressão designa não um qualquer "deus maçónico" - pois tal não existe - mas constitui apenas um mesmo nome através do qual  todos os maçons se referem cada um ao seu próprio Deus.

De fora fica também, evidentemente, tudo o que é próprio desta ou daquela religião. Não faria sentido dizer-se "invoquemos Maria, mãe do Grande Arquiteto do Universo", ou "O Grande Arquitecto do Universo é grande, e Mohammed é o seu profeta". Assim, em loja, apenas nos referimos ao "Grande Arquiteto do Universo". As pranchas maçónicas - na maçonaria regular - começam sempre: "À G.·.D.·.G.·.A.·.D.·.U.·. ", uma vez que todo o trabalho é feito "À Glória Do Grande Arquiteto Do Universo". Cada um dedica o trabalho que fez ao Deus da sua predileção, mas todos sob uma "alcunha" comum. Um pouco como cada adepto se refere ao respetivo clube como "o Glorioso"...

Um dos momentos altos de cada sessão é a Cadeia de União. Uma vez formada, um dos irmãos profere uma curta oração, que não deve ser própria de nenhuma religião, e é, as mais das vezes, espontânea. Pode ser algo como: "Agradeçamos ao Grande Arquiteto do Universo a graça de estarmos todos aqui, juntos uma vez mais, e recordemos todos quantos já partiram para o Oriente Eterno". Dificilmente alguém poderá sentir-se posto de parte perante tal fórmula, e é precisamente o que se pretende: fomentar a união, a identificação apesar da diversidade, e o foco naquilo que, de facto, é comum a todos. Não faria sentido, apesar de a esmagadora maioria dos maçons da nossa loja ser cristã, rezar-se um "pai-nosso" na cadeia de união - até porque um dos nossos irmãos é judeu, e sentir-se-ia certamente desconfortável. E mesmo que todos fôssemos cristãos, o princípio é para manter - basta recordar que recebemos frequentemente visitas de irmãos de outras lojas, e nunca sabemos que fé professam...

Esta limitação de expressão pode tornar-se problemática para os seguidores de certas religiões que tenham por princípio o testemunho permanente perante os outros dos valores, princípios e verdades da sua religião - e, no limite, tentar converter os demais para a sua fé, expondo as fraquezas de uma crença e exaltando a outra. Quem sinta essa obrigação não poderá sentir-se bem na maçonaria, pois esta não lho permite.

Apesar de tudo o que disse ser regra apenas vigente em loja e em sessão ritual, o que acaba frequentemente por suceder é - por força do hábito por um lado, pela interiorização dos princípios pelo outro, e por último pela generalização da sua aplicação - desenvolver-se um certo comedimento nas palavras, e acabar por se evitar a utilização de expressões manifestamente próprias de uma ou outra religião, substituindo-as por outras menos passíveis de fazer o nosso interlocutor sentir-se desconfortável. Assim, não posso senão agradecer o cumprimento, e retribuir: "Que o Grande Arquiteto do Universo lhe conceda o discernimento para encontrar - e saber manter - a Luz!"

Paulo M.

P.S.: Tenho, desde que comecei a escrever aqui no blogue, vindo a escrever dois textos por semana. Afazeres diversos impedem-me de manter este ritmo, pelo que irei passar a escrever, no futuro mais próximo, apenas um texto por semana, ao fim de semana. Assim que possa passarei, de novo, a escrever mais.

15 outubro 2010

"Sim, mas o que é que fazem na cama?"


Imaginem um celibatário virgem a tentar entender o conceito de "casamento" explicado por um homem casado.
"- Ouvi dizer que as pessoas casadas fazem coisas esquisitas na cama. O que é que fazem na cama?"
"- Isso não é, de modo algum, o mais importante. De qualquer modo, as pessoas casadas não costumam falar disso a pessoas que não são casadas, e as outras pessoas casadas sabem suficientemente do que se trata para que não seja necessário discuti-lo."
"- Porquê? É segredo? Dê-me lá só um exemplo, para eu ter uma ideia."
"- O que se passa no leito conjugal é do foro da intimidade do casal, e não é para ser discutido por estranhos. De qualquer modo, o essencial é a camaradagem, que de tão intensa nos leva a pertencer um ao outro. É esse o nível de comprometimento."
"- Pois, eu tenho grandes amigos, mas não abdico da minha liberdade..."
"- A liberdade não se perde; passa-se é a decidir em conjunto, e em função um do outro. Ao ter que se conjugar as vontades aprende-se, por outro lado, a ver a realidade sob outros ângulos, e a estabelecer prioridades. Isso torna-nos pessoas melhores."
"- Não concordo nada. Não vejo a vantagem de abdicar de concretizar os meus desejos, nem vislumbro que essa mortificação me tornasse uma pessoa melhor. Quando muito, mais amarga."
"- De modo nenhum. Estar ao serviço do outro é um privilégio: é sinal de que temos valias, e que estas podem ser postas em prática. Isso dá-nos uma satisfação muito grande. Por outro lado, esta dádiva de si mesmo, praticada por ambos, leva a que ambos se tornem melhores, que cada um apreenda do outro o que este tem de mais positivo."
"- Pois, mas não percebo. Afinal, o que fazem na cama? Dão privilégios um ao outro? Praticam a camaradagem? Eu e os meus amigos também praticamos camaradagem, mas praticamos desporto juntos e passamos noitadas nos bares. Isso é que é camaradagem. Agora numa cama? Num sítio onde se dorme, pequeno e acanhado? Não percebo."
"- São coisas completamente diferentes. Os amigos podem ter muitas afinidades, mas um casal constroi essas afinidades para além das que originaram o relacionamento, e fá-lo durante toda uma vida. As amizades são mais efémeras, apesar de poderem durar mais do que muitos casamentos. Os casamentos desejam-se eternos, e moldam toda a vida dos envolvidos."
"- Uma vez mais, não vejo nada que distinga um casamento de uma boa amizade. Tenho amizades que mantenho desde miúdo, e que espero fazer durar até ao túmulo."
"- Pois, seja. No entanto, há uma sensação de bem-estar, de realização pessoal, de completude, que o casamento proporciona e que uma amizade, por mais intensa, não atinge, por se tratar de um registo completamente diferente."
"- Isso deve ser um registo mesmo muito esquisito, que eu e os meus amigos não passamos dias enfiados numa cama a cheirar a dormido, embrulhados nas almofadas, a sacrificar-nos uns pelos outros. A camaradagem pratica-se ao ar livre, no meio da natureza. Mas diga lá, que eu prometo não contar a ninguém. Afinal, o que fazem na cama?"
"-  Olhe, o que um casal faz numa cama não é nada que se possa contar. Aliás: até podia, mas para isso deixaria de cumprir com os meus deveres de decoro e discrição conjugal. Estaria a ser um mau marido. Por outro lado, de nada lhe aproveitaria: é algo que precisa de ser vivido para se entender. As palavras não são adequadas. Se lho descrevesse, acharia eventualmente a descrição repulsiva, quando na verdade se trate de algo de sublime. Poderia até afastar qualquer desejo de vir, um dia, a casar-se. Se alguma vez decidir casar-se, e o fizer de facto, verá depois a que me refiro."
"- Segredinhos e mais segredinhos! Isso são desculpas. Explique-me lá, que eu tenho um estômago de ferro, e sou capaz de aguentar o embate. Afinal, o que fazem na cama?"
"- Ó homem, já lho disse. Um casamento é algo que vai muito para além do que se faz na cama. É possível, até, ser-se casado, ter-se alguém com quem se partilha tudo, e nunca se partilhar dessa intimidade. O estar-se casado é mais um modo de vida, um estado de espírito, uma forma de estar no mundo, e a partilha na cama mera manifestação disso mesmo; no entanto, não é absolutamente essencial que essa manifestação exista. As mentes mais ortodoxas lhe dirão que para se ser casado tem, mesmo, que se fazer essa partilha. Contudo, há verdadeiros «casamentos sem aliança», em que duas pessoas vivem em comunhão de tudo - exceto de cama. Fiz-me explicar?"
"- Mais ou menos. Continuo a achar que a cama é apertada e inadequada à camaradagem de que fala, e que partilhar de um copo de cerveja se faz numa mesa de um bar com muito mais propriedade do que numa cama, onde ainda se entorna o precioso líquido no colchão. A não ser que o que fazem seja muito diferente. É? É diferente? O que é que fazem na cama?"
"..."

Lembra-vos alguma coisa?

Paulo M.

13 outubro 2010

Maçonaria e Modernidade


Modernidade não é substituir o antigo pelo novo. É adicionar o novo ao antigo.

A Maçonaria, herdeira das tradições dos construtores de catedrais da Idade Média, soube, no século das Luzes, reinventar-se, evoluir para a sua atual forma de Maçonaria Especulativa, assumindo a modernidade do Iluminismo sem deixar cair o acervo das tradições, da ética, dos costumes, dos maçons operativos.

Neste dealbar de novo século e milénio, no findar da sua primeira década, importa refletir sobre o papel da Maçonaria num Mundo que evolui e se transforma a um ritmo nunca dantes visto, com um avanço tecnológico ímpar na História da Humanidade, mas também com riscos e desequilíbrios de uma dimensão global, também novos, em tão ampla escala.

Importa refletir sobre a melhor forma de bem utilizar as Novas Tecnologias de Informação. Importa refletir sobre como integrar os novos conhecimentos, os avanços científicos, as evoluções sociais, no paradigma maçónico. Importa refletir sobre o papel, o interesse, a contribuição, da Maçonaria nas sociedades de hoje e do amanhã. Importa refletir, em suma, sobre como adicionar o novo ao antigo.

A Maçonaria é uma contínua sucessão de atos de construção de cada um de nós, em que cada um de nós é simultaneamente a obra, a ferramenta e o construtor. Nesta permanente tarefa, o uso, a prática, a execução, da Tradição, a repetição de palavras, gestos e atos que a nós chegam vindos de tempos para nós imemoriais, é-nos confortável e reconfortante, dá-nos segurança, um ponto de apoio e de equilíbrio. Fazemos o mesmo que muitos outros antes de nós, em muitos tempos e diversos lugares, fizeram, que muitos outros além de nós no mesmo dia em que nós o fazemos também o fazem, esperamos fazer o mesmo que muitos muito depois de nós continuarão a fazer. É-nos confortável, dá-nos segurança, estabilidade, paz de espírito, sabermos que somos individualmente elos de uma imensa cadeia que nos chega de um profundo passado, continua num tranquilo presente e prossegue num risonho futuro...

Nós, maçons, somos os cultores por excelência da Tradição!

No entanto, não recusamos, nunca recusámos, a Modernidade! A nossa história mostra mesmo que, em algumas épocas, nós fomos a Modernidade: muitas das Luzes que iluminaram o século das ditas foram de maçons, espíritos científicos avançados para a sua época, que cultivaram, divulgaram e fizeram avançar a Ciência e a Técnica. Os princípios hoje quase universalmente aceites (e ansiamos pelo dia em que o “quase” desapareça) dos Direitos Humanos foram acarinhados, cinzelados (é o termo), divulgados e defendidos, antes de mais e antes de todos, por maçons. Nós, maçons, orgulhamo-nos de, ao longo da nossa já apreciável história, sabermos aliar a Tradição à Modernidade.

Nós, maçons, procuramos nunca substituir o antigo pelo novo, porque isso seria deitar fora, desprezar, desaproveitar, tudo o que de bom o antigo continua a ter para nos ensinar, ilustrar, proporcionar, antes integramos o novo no antigo, cultivando a Tradição, mas utilizando tudo o que a Ciência, a Técnica e a própria evolução do Homem nos proporciona.

Rui Bandeira

11 outubro 2010

Vida em sociedade: confiança vs. ordem?


A população mundial há apenas 200 anos era 8 vezes menor do que é hoje. Recuemos alguns milénios e veremos a população mundial reduzir-se a poucas dezenas de milhões, número que hoje associamos a uma grande cidade. Primeiro nas tribos nómadas, depois nas aldeias após o advento da agricultura, agremiavam-se poucas dezenas de pessoas que se conheciam e conviviam do berço ao túmulo. Não havia como se esconder numa pequena povoação; mais valia não se ter nada a ocultar. Sabia-se precisamente quem eram "os nossos" e quem eram "os outros", os "da casa" e os "de fora". Se algo a isso obrigava, tinha que se fugir para outra povoação mais longínqua; não havia como permanecer e passar despercebido. Esse facto condicionava fortemente o comportamento das pessoas, que agiam em função da reação da comunidade, que por seu lado estava vigilante e atenta (sempre houve coscuvilheiras...) e caía implacavelmente em cima do prevaricador.

Como a Terra não estica, o progressivo aumento de população traduziu-se, inevitavelmente, num aumento de densidade populacional - mais pessoas por quilómetro quadrado - o que acarretou um maior número de contactos com um maior número de desconhecidos anónimos, de que decorre um maior número de conflitos. Ao mesmo tempo, ia-se criando um nevoeiro difuso decorrente do aumento de número, que impedia que se conhecesse, já, a totalidade dos "nossos", e não se conseguisse distingui-los dos "outros". A confiança que se tinha começa a declinar - as portas passam a ter fechaduras, e estas passam a ficar trancadas. Surgem crimes cuja autoria se desconhece.

Hoje em dia, a elevadíssima densidade populacional, especialmente nas zonas urbanas, levou a que a convivência nas sociedades modernas seja fortemente regulada, a um ponto que seria impensável há pouco tempo atrás. Não precisamos de recuar muito - basta fazê-lo uma década, para quando se podia viajar tranquilamente de avião para todo o lado sem o verdadeiro strip-tease abelhudo a que hoje nos sujeitam - para vermos em que curto espaço de tempo foram criadas tantas defesas, tantas barreiras, tantos controlos. A partir de certo ponto, os controlos deixam de ser instrumentais, e passam a constituir um fim em si mesmos, propulsionados por toda uma indústria que deles se alimenta. Cada vez há menos confiança da polícia no cidadão - que, afinal, pode ser um bandido - e deste na polícia - que, afinal, tem a faca e queijo na mão para cometer os abusos que entenda. O poder político, esse, desconfiado de ambos e numa posição altaneira, produz leis a um ritmo acelerado - muitas das quais nem os cidadãos cumprem, nem a polícia consegue fazer cumprir.

E neste momento interrompo este texto para vos convidar a ver este video. Tomar-vos-á apenas 5 minutos. Para quem o não queira ou não possa ver, descreve como, na baixa de uma cidade de Inglaterra, foram eliminados por completo os semáforos e a maioria dos sinais de trânsito, regulando-se este apenas pelas regras mais básicas de prioridade. O resultado? O trânsito parece mais caótico - com todos a andar ao mesmo tempo - mas desapareceram as longas filas nos semáforos e grandes tempos de espera. O tráfego automóvel adquiriu uma fluidez nunca vista, e isto sem se diminuir o número de viaturas e até diminuindo o número de acidentes! Uma das habitantes relata, estupefacta, que o percurso que antes lhe levava mais de 20 minutos é agora feito em 5. E a cidade parece outra, sem filas de carros em ponto morto e a deitar fumo. As pessoas são mais cordiais ao volante, e muitas dão passagem com um sorriso. Só os cegos se queixam de que as mentalidades demoram a mudar, e têm medo de atravessar a rua sem o conforto dos semáforos e sinais sonoros nas passadeiras para garantir que os carros param mesmo. Este problema está presentemente em estudo, e quer-se resolvido.

Eis como, deixando as coisas nas mãos do cidadão comum que age num espaço público perante a vigilância atenta dos demais peões e condutores, se consegue obter um modelo muito mais justo e perfeito de circulação. Eis como se muda uma cidade sem revoluções, sem derrubar leis, e sem atentar contra a vontade de uma população - fazendo-o estritamente a partir do edifício  legal existente. Se a maçonaria regular fosse uma autoridade de trânsito, arrisco dizer que seria assim que deliberaria.

Paulo M.