Na sequência do texto
Pergunta de profano, José Luciano, através de uma mensagem de correio eletrónico, questiona:
Escreve o Sr. em "Pergunta de Profano":
"Especulativa também porque o trabalho primordial do maçon é especular,...", e eu pergunto, será de tão especulativa que a Maçonaria se estilhaça? será do trabalho sobre a "espiritualidade e a moral" que ela se perde, tantas vezes, em caminhos tão enviesados?
Seria útil que José Luciano concretizasse um pouco mais o seu entendimento, assim limitando o risco de se estar a referir a alhos e eu a responder a bugalhos. De qualquer forma, procurarei dar a minha opinião, segundo o que alcancei da questão colocada. Se errar o tiro, José Luciano fará o favor de me corrigir o azimute, para que eu vise melhor...
A questão contém em si pressupostos com os quais não concordo: que a Maçonaria se estilhaça e que se perde, tantas vezes, em caminhos tão enviesados.
Assumindo que José Luciano classifica como estilhaçar da Maçonaria a existência de diversas Obediências, com diferentes orientações, cada uma reclamando jurisdição sobre um conjunto de Lojas maçónicas, a minha convicção é que tal não deriva de a Maçonaria ser "tão especulativa". Resulta, antes de dois fatores, um positivo, outro nem por isso: essencialmente, da incomensurável bênção de que beneficia a espécie humana, comummente designada por livre arbítrio; nalguns casos, do insuficiente êxito de alguns em polir a pedra do seu caráter, mantendo-se permeáveis e dominados por vícios como a vaidade, o desejo ou apego ao que consideram Poder, a intolerância.
Especular é uma das mais nobres caraterísticas da espécie humana. É o que nos possibilita evoluir, crescer, avançar. A Ciência Experimental nasce, em cada dia, da especulação. O processo científico resulta da elaboração de uma hipótese (especulação sobre se determinada ideia corresponde à realidade) e sua verificação ou infirmação por via experimental. A capacidade de especular, ínsita na natureza humana, é um componente essencial do Livre Arbítrio com que fomos dotados. Cada um de nós faz, em cada momento, as suas escolhas em função da sua análise das hipóteses que descortina viáveis e da probabilidade da sua ocorrência. Especular, portanto, é tão inerente à natureza humana como respirar. Nisto, a Maçonaria nada trouxe de novo ao Homem. O caráter distintivo da Maçonaria - e que eu sublinhei no texto que suscitou a colocação da questão - é o facto de essa especulação ter como ponto de partida símbolos, de cuja apreensão, estudo e compreensão cada um deve partir. Por isso também a Maçonaria, além de Especulativa, muitas vezes é designada por Simbólica.
A especulação simbólica, em si e só por si, em nada contribui, ao menos decisivamente, para a existência de diversas correntes e Obediências maçónicas. O caso mais paradigmático, o que alguns consideram a cisão entre a Maçonaria Regular e a que é designada ou se designa por Maçonaria Irregular ou Liberal ou Universal, e que eu considero antes uma natural, previsível e frutífera divisão do tronco comum em dois ramos, ambos alimentados pela mesma seiva, provinda da mesmas raízes, mas cada um inclinando-se para o lado que melhor lhe convém - e afinal ambos contribuindo para o equilíbrio do todo... -, resultou, mais do que de diversas conclusões sobre diferentes análises, da porventura inevitável consequência de diferentes ambientes, inserções e convulsões sociais. A Maçonaria de matriz anglo-saxónica, a Maçonaria Regular, implantou-se e cresceu no seio da sociedade e das classes dirigentes da sociedade, enquanto instituição integrada na ordem social existente, com o propósito de aperfeiçoar pessoas e, por essa via, contribuir para a melhoria, a evolução da sociedade em que se integrou. A Maçonaria dita Irregular ou Liberal ou Universal resulta de uma implantação em terreno que rapidamente seria sacudido pelos tumultos de uma Revolução, que tudo pôs em causa, que tudo virou e revirou, baralhou e deu de novo, desfez e refez.
É essencialmente destes dois diferentes ambientes evolutivos que - talvez inevitavelmente - resultam estas duas diferentes cambiantes da Maçonaria. A Maçonaria Regular, inserida na ordem social, procurando contribuir para a sua melhoria, permaneceu fiel à conceção original de que "no princípio era o Verbo". Acrescenta às convicções herdadas do antecedente as noções de Razão, de Ciência, de Tolerância. Evolui da Idade das Trevas para o mundo moderno através do Iluminismo e do Racionalismo, sem perder a sua ligação ancestral ao conceito do Criador. Evolui do teísmo para o deísmo, sem deixar de integrar quem se considere teísta, assimilando a noção de que o Criador existe para além das conceções individuais ou coletivas da sua natureza, identidade, aspeto, forma, caraterísticas, etc.. Com isso, integra qualquer noção individual ou coletiva do Criador como respeitável, aceitável. Institui a Tolerância como paradigma. Mas nunca perde a noção do Criador. O Homem procura aperfeiçoar-se, evoluir, porque essa é a sua natureza, assim resulta da Criação. Separando os planos do divino e do humano, não deixa de especular como o humano se aproxima, surpreende, entrevê, o divino. A Maçonaria dita Irregular, ou Liberal, ou Universal, caldeada nos tumultos sociais, confrontada com intoleráveis vícios sociais, extremas desigualdades, opressões inaceitáveis, assume um cariz muito mais interventivo. Mais do que melhorar o Homem e, por essa via, melhorar a Sociedade, entendeu que se impunha, prioritariamente, melhorar, modificar, a Sociedade, para, por essa via, poder melhorar o Homem. E, assim, evoluindo em sentindo diferente do outro ramo, intervém ativamente na política e na conformação e organização social. Mais do que simples força propiciadora de evolução, assume, sempre que o entende necessário, caráter revolucionário. E, assim, claramente que entra em rota de colisão com as forças sociais de cariz conservador das sociedades cuja modificação rápida pretende. Entre essas forças, historicamente está a Igreja Católica. O conflito é inevitável. Do questionamento da Igreja ao dos seus ministros vai um passo. Da colocação em crise do que estes representam um outro, mais curto. Do questionamento da crença, um outro, mais curto ainda. Por outro lado, a luta por valores tão absolutos, tão válidos, tão corretos, como inquestionavelmente são a Liberdade, a Igualdade, a Fraternidade, faz-se com todos os que partilhem esses valores. Ainda que não partilhem crença... Se a Maçonaria Regular já abolira as diferenças religiosas através da capa da Tolerância perante todas as crenças, por que não estender, alargar, essa capa também a quem não tem opinião formada sobre a existência ou não de Criador? E, mais ainda, a quem entende que não existe Criador, mas partilha os valores da Liberdade, Igualdade, Fraternidade?
Na minha opinião, os diferentes ambientes de implantação da então jovem instituição, após a sua transformação de Operativa em Especulativa, explicam com clareza porque ocorrem estas duas diferentes evoluções. Que só podemos considerar naturais, senão inevitáveis. É da natureza das coisas que o que evolui em ambientes diversos evolua diferentemente. A racionalização especulativa, neste caso, vem depois. Ao analisar as diferenças, as consequências, de cada uma das conceções. Racionalização, especulação, que não pode deixar de reconhecer o que é evidente. Diferente evolução, assunção, ainda que apenas parcialmente, de diferentes conceções estruturantes da Maçonaria, seu propósito, sua inserção, implicam o reconhecimento que não se está já perante uma única realidade, mas de duas, embora muito próximas, muito parecidas, irmãs gémeas criadas em ambientes diferentes, mas por isso não menos irmãs, por isso não melhor nem pior uma do que a outra. Afinal, a Maçonaria, raiz e tronco comum, ao deitar dois ramos, ambos fortes, ambos dando frutos de natureza similar, ambos saudáveis, um de Maçonaria Regular, outro de Maçonaria Liberal (a quem uns chamam também de Irregular, outros de Universal), acaba por permitir acolher e melhorar um mais alargado leque de Homens Bons e contribuir para um positivo aperfeiçoamento social.
Estes dois ramos, tendo raízes e tronco comuns, são hoje claramente distintos. Ambos úteis. Ambos respeitáveis. Cada um partilhando com o outro muito, tanto. Cada um crescendo na direção que entende crescer, por si, sem que necessite de arrastar ou prejudicar o outro. Muito em comum e podendo comummente cooperar. Algo em separado, por cada ramo fruído e cuidado.
Não, meu caro José Luciano. O crescimento destes dois ramos autónomos da mesma árvore não é nenhum estilhaçamento, antes natural evolução. E não resulta da tendência especulativa dos maçons, antes, e simplesmente, do resultado do livre arbítrio humano, em confronto com diferentes ambientes.
Porventura reunir-se-ão estes ramos? Duvido! Questiono mesmo se seria bom, se não seria uma involução. Afinal de contas, existem porque correspondem a necessidade diferentes, possibilitando evolução e aperfeiçoamento a pessoas com diferentes formas de conceber princípios fundamentais. Cada Homem Livre e de Bons Costumes pode integrar-se no local onde se sentir mais confortável. E crescer. E melhorar. E evoluir. Para mim, isso é bom. Não um mal!
O texto já vai longo e ainda me falta responder-lhe sob outra perspetiva: a existência de diferentes Obediências que se reclamam de maçónicas, não em resultado destes diferentes ambientes propiciadores de diferente evolução, mas de outros fatores. Com a sua condescendência, deixarei isso para um próximo texto.
Rui Bandeira