29 março 2018

Sobre a impermanência





SOBRE A IMPERMANÊNCIA
 Prancha traçada ao Vale de Lisboa, em 28 de Março de 6.018

O presente texto não está redigido segundo o acordo ortográfico da Língua Portuguesa de 1 990/2 009.

A IMPERMANÊNCIA
Alinhando e desalinhando estes parágrafos, maldizendo, (apenas um pouco), a minha incontida verborreia que me fez falar em impermanência numa sessão onde, e muito bem, foi apresentada a prancha “A Existência Humana”, um ensaio no qual Drucker (19NOV1909 a *11NOV2005) faz uma análise do pensamento de Kierkegaard (05MAI1813 a *11NOV1855), com os olhos postos nas mudanças de pensamento, principalmente o político e social, que ocorriam no fim da 1.ª metade do século XX.
Segundo Kierkegaard, o homem terá que renunciar a si mesmo para superar as limitações que a realidade lhe impõe, e assim poder aceder ao transcendente, aceder a Deus e à verdadeira individualidade; neste sentido, realçou “o existir concreto do homem” (o existencialismo) que anseia pela transcendência, focando em consequência disso, os sentimentos de angústia e desespero inerentes a tal condição.
Ora, em minha modesta opinião, na vida onde tudo é transitório, tanto os pensamentos quanto os amores e as coisas, que vão, vêm, ficam e passam, nada é assim tão importante, a não ser a experiência da vida que passa (e apenas enquanto passa), pelo que não me apetece mesmo nada ter algo que me obrigue a viver em desespero e angústia para poder vir a ter a ilusão de “possuir” ou “conquistar” o que quer que seja. O que vier, virá; mas virá sem sofrimento consentido; assim sabendo e aceitando ser o traço característico da existência terrestre a impermanência, decidi iniciar esta prancha por “a Morte”, indubitavelmente a carta mais forte, ou mesmo o trunfo (e o triunfo) maior, do tema que aqui se pretende tratar.
Para nós, que de certa forma nos alinhamos e nos preparamos para a viagem rumo ao G\O\E\, não há dúvida que encararemos a nossa morte física como a prova provada (desculpem o pleonasmo) da impermanência pois não iremos/voltaremos mais “viver” nos moldes actuais (ou iremos?).
Octávio Paz (31MAR1914 a 19ABR1988) escritor poeta e ensaísta mexicano, Nobel da literatura em 1990, dizia que “a morte não nos assusta (aos mexicanos) porque a vida já nos curou dos medos”; enquanto que Giuseppe Belli (07SET1791 a 21DEZ1863), poeta italiano famoso pelos seus sonetos em romanesco (o dialecto de Roma) nos conta que “A morte está escondida nos relógios” (La golaccia).
A palavra morte quase não é pronunciada em Nova Iorque, em Paris ou Londres, e infelizmente começa a não ser pronunciada também em Lisboa, porque queima os lábios; contudo ainda vai havendo quem a respeite, a acaricie, a celebre e até brinque com ela e não só no México onde é, segundo Octávio Paz, “um dos seus brinquedos favoritos e o seu mais constante amor”.
Lembro aqui o filme “Meet Joe Black”, um filme rodado em 1998 e quase todo em Nova Iorque, cidade onde como acima referimos se evita pronunciar a palavra morte, produzido por Martin Brest tendo como actores, entre outros Brad Pitt e Anthony Hopkins, um filme que, ao que eu saiba, pela primeira vez nos põe em contacto personificado com a Morte, com humor e com alguma naturalidade, o que não é habitual nos filmes ou narrativas que nos habituámos a ver provenientes dos EUA, onde a angústia e a perda são pulsões permanentes.
Neste filme ocorre uma festa de aniversário que, apesar de ser a última e o aniversariante o saber, foi um festejo alegre e coroado com fogo-de-artifício!
O nosso portuguesíssimo “Pão por Deus” que ultimamente vai sendo desvirtuado e substituído pelo “dia das Bruxas” ou “Halloween”, era o dia em que antigamente se oferecia pão, bolos, vinho e outros alimentos aos mortos, celebrado em cada ano no primeiro dia de Novembro, na véspera do dia consagrado a todos os mortos, e era de reminiscências bem antigas, que aqui me escuso de referir ou tão cedo não sairíamos daqui; era, como vinha dizendo, um ritual de “comer a morte” ritual esse que pode representar a continuidade da vida, como se do ventre da morte pudéssemos ver nascer ou até renascermos na própria vida; era o Morrer para Renascer; era o ensinamento que diariamente o Sol propiciava (e propicia se o quisermos/pudermos ver/entender) nascendo incansavelmente e a cada dia no Oriente, de onde vem a Luz, para inexoravelmente se extinguir moribundo, no útero devorador do mundo, o Ocidente.
Estará então o homem condenado à morte e à vida, ambas repetitivas e eternas? A ser assim a morte e vida serão dois aspectos de uma mesma realidade? Eclodirá a vida da morte qual planta que brota da semente que se decompõe no seio da terra?
A ser assim, a morte será um bem colectivo que dá continuidade à criação e que funciona como regresso à essência do universo.
Será o verdadeiro objectivo da vida chegar “purificado” “com mais luz” ou “aperfeiçoado” à “morte”?
Assim sendo, a “vida” outra coisa não será senão uma caminhada com vista à santificação da nossa existência; viver para morrer, tendo que sofrer para viver eternamente como preconizava Kierkegaard?
Ou será que a vida se nos apresenta como um verdadeiro desafio, e uma grande oportunidade para percorrer o caminho que nos leva à porta da imortalidade? Nascer para morrer e então renascer para viver o caminho; no fundo um caminho iniciático.
Não é só a morte, porém, que atesta, talvez consagre, a impermanência. A impermanência é desde logo, a vida ou, se preferirmos, o percurso “desta” vida com todos os seus mitos e dúvidas.
Lemos em Fernando Pessoa: (13JUN1888 – 30NOV1935) in Mensagem - II - Os Castelos - Primeiro/Ulisses
O mytho é nada que é tudo.
O mesmo Sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
E ainda: in Livro do Desassossego
Tudo quanto vive, vive porque muda; muda porque passa; e, porque passa, morre. Tudo quanto vive perpetuamente torna-se outra coisa, constantemente se nega, se furta à vida.
Foi “este” Fernando Pessoa que muito nos chamou a atenção, tanto para as coisas que nos rodeiam, como para a nossa “pessoa”, os nossos rostos e as nossas máscaras, da nossa permanente transformação, e do nosso perpétuo movimento, e que, na pele de Bernardo Soares, nos ensinou a aceitar, sem mais questões, a impermanência: gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro.
A impermanência porém, com frequência, assusta-nos … todavia não somos nós, bem por dentro da nossa vivência, a personificação acabada dessa impermanência?
Afinal a vida é uma prática mortal, um livro de desassossego que se abre ao fascínio dos humanos!
Poderia aqui deixar páginas de citações sobre a impermanência; fiquemos apenas por estas:
i) O progresso é impossível sem mudança.
Aqueles que não conseguem mudar as suas mentes não conseguem mudar nada.
George Bernard Shaw (26JUL1856 a 02NOV1950)
ii) Nada é permanente, excepto a mudança.
Heráclito de Éfeso (540AC a 475AC**)
iii) Uma mudança deixa sempre patamares para uma nova mudança.
Maquiavel (03MAI1469 a 21JUN1527)
iv) Tudo é mudança; tudo cede o seu lugar e desaparece.
Eurípedes (481AC a 407AC)

v)   Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
Luís de Camões (+- 1524 a 10JUN1580)
Conto-vos agora uma história na primeira pessoa, e vai ser na primeira pessoa do singular; eu sei que poderia utilizar a primeira pessoa do plural e dar-lhe um ar mais majestático, mas, de todo, não me parece que seja necessário:
Certo dia, aí pelos meus trinta e poucos, numa conversa de café, ou melhor numa conversa de club, pois o facto que aqui relato ocorreu na sala de convívio do C.R.M. (Club Recreativo Mortuense), quando em cavaqueira com um grupo de jovens com quem “brincava” aos teatros (pretendíamos levar à cena “A Promessa” de Bernardo Santareno), uma das raparigas do grupo tratou-me por senhor.
Nesse momento não percebi lá muito bem o que se estava a passar, fiquei um pouco sem jeito e com a capacidade de raciocínio afectada, pelo que, com um pedido de desculpa, antecipei o meu regresso a casa.
Já mais refeito e no aconchego relativo do meu lar, olhei-me ao espelho e apercebi-me que esta barriguinha, que hoje envergo, despontava, bem como umas aberturas no cabelo, por sobre as têmporas, aquilo que ao tempo se chamava, e, embora isso já não me preocupe, acho que ainda se chama, de “entradas”!
Dei então conta que havia uma grande distância entre a idade com que me sentia e a minha verdadeira idade biológica; percebi que tinha parado na idade em que os ideais surgem e nos sentimos vivos em qualquer circunstância. Até tinha ido à guerra e voltado, tinha sido atropelado e sobrevivido!
O que eu tinha mesmo, era percorrido cerca de uma década e meia sem que tivesse dado por ela.
Era impossível que essa mudança drástica se tivesse dado naquele exacto momento em que dela eu me apercebi!
É claro que, fisicamente, a cada momento que tinha passado na minha vida, algumas células foram morrendo e outras nascendo, o meu cabelo tinha iniciado uma viagem sem retorno, a minha fisionomia tinha mudado, e o espelho lá de casa não tinha servido para nada, pois não me avisou! É igualmente claro que paralelamente a cada um desses momentos, a perspectiva que eu tinha das coisas, do mundo e de mim mesmo, com certeza que essa perspectiva foi igualmente mudando, só que o fez de forma tão sorrateira que, para mim, se tornou imperceptível, mas, de repente, e porque uma jovem me tratou por senhor, toda a percepção do mundo me caiu cima!
Aquela história do “eu sou assim”, “sempre fui assim” “serei sempre assim” firmemente convicto da minha permanência foi-me muito mal contada até ao dia em que caí na realidade porque algo tão simples como a palavra “senhor” finalmente me tocou/afectou.
Por esse tempo percebi e, claro aceitei, que até eu um dia teria um fim; fim que já conhecia e aceitara, mas para os outros … Na sequência, um sentimento de desilusão, ou talvez insatisfação instalou-se no meu íntimo, tal como no dia em que, ainda criança, desvendei o truque do ilusionista… já nada era o que aparentava ser…!
Nós, enquanto seres sencientes, por muito que nos custe admitir, não passamos de manifestações transitórias totalmente interdependentes de tudo o que nos rodeia.
Somos o somatório, não desagregável, neste ponto da vida em que nos encontramos, de matéria e consciência, ou corpo e espírito, se preferirmos.
Vivemos num meio muito escrutinado e de grandes expectativas, e, deixamo-nos levar pela ilusão de que são as certezas que nos farão felizes e quando a vida nos mostra que nada é controlável e que a permanência não existe, sofremos e somos os únicos responsáveis por esse sofrimento, e provavelmente apenas quando com clareza nos apercebermos que há uma grande harmonia nos caminhos naturais da vida, estaremos prontos para aceitar a impermanência.
O budismo tem da impermanência um conceito muito simples: “Nada é permanente, a não ser a própria impermanência das coisas”.
Continuadamente e em todo o tempo, as nossas vidas, interna e externa, se movimentam e por mais que julguemos que podemos controlar todas as coisas, ou pelo menos algumas, não o conseguimos; estamos apenas a escolher um guia errado, a ilusão; e a ilusão é perigosa, pois cria expectativas e necessidades que não existem.
Na descrição freudiana, o ser humano é um animal que nasce prematuramente, em condição de dependência absoluta, que desde cedo busca o amparo e a protecção necessários à sua sobrevivência, e é instado a responder a solicitações e injunções dos meios físico, biológico e cultural.
O “eu” da psicanálise é fragmentado e governado por forças que ele próprio não domina; é uma montagem mais ou menos bem-sucedida que leva o sujeito a agir no mundo, a buscar satisfações e a lidar de alguma maneira com o desamparo, a angústia e o desejo.
Esse “eu”, para usar uma expressão do filósofo Daniel Dennett, (28MAR1942 - 75 anos), éum centro de gravidade que não tem substância pois tudo nele deriva dos efeitos produzidos pelas interacções:
i) com os outros aspectos significativos de sua história;
ii) com o ambiente natural e simbólico que o circunda; e
iii) com as expectativas e desejos projectados sobre ele, mesmo antes que tivesse nascido, no desejo inconsciente dos pais”.
Afinal, o que é, ou quem é o “eu”? A não resposta parece ser a única resposta.
O rio da vida flui continuamente, mas para o “eu” da psicanálise, cuja existência depende de congelar esse fluxo de mudança, tal fluência é aterrorizante, pois não a conseguirá nunca tornar permanente, e isso, de certo modo, encaminha-o na direcção da impermanência. O que quer que pareça ser permanente na nossa vida é, na realidade, bastante temporário. Vem e vai incerto e inserto na roda da fortuna.
O fortuna
Velut luna
Statu variabilis
Semper crescis
Aut decrescis
Vita detestabilis
Nunc obdurat
Et tunc curat
Ludo mentis aciem
Egestatem
Potestatem
Dissolvit ut glaciem
Oh, fortuna
És como a Lua
Estado mutável
Sempre cresces
Ou decresces
A detestável vida
Ora oprime
E ora cura
Para brincar com a mente
Miséria
Poder
Dissolve-os como gelo

Carl Orff
(10JUL1895 a 29MAR1982) - "Cantiones profanæ cantoribus et choris cantandæ" …a roda da fortuna, girando eternamente, trazendo alternadamente a boa e a má sorte… é mais uma parábola da vida humana exposta à constante mudança.


De tudo o antes exposto resulta ser a impermanência um fenómeno, ou se quisermos, um conceito (gostemos ou não, tudo o que nos rodeia na cultura humana está conceptualizado e vemo-nos obrigados a usar os conceitos para podermos, com êxito, nos relacionar com os outros), um conceito que convém ser trabalhado se nos queremos aproximar do conhecimento e aceitação de nós mesmos, dos outros e deste mundo que nos contém e nos rodeia.
Claro que tudo tem um início e um fim; no planeta terra já viveram dinossauros… porém esta evidência de princípio e fim tornou-se tão translúcida que quase deixámos de a ver, o que, erradamente, nos pode levar a crer que certas coisas são eternas, sejam elas as casas que habitamos, as cidades que povoamos, as estradas que percorremos ou um sem fim de objectos que usamos. Acaba por ser esse mesmo conceito que erradamente aplicamos à nossa própria existência, mesmo sabendo que num dado momento, muito embora ainda desconhecido, abandonaremos este plano em que nos encontramos, continuando porém a comportarmo-nos como se fossemos, nesta configuração, por cá ficar eternamente.
Passamos e gastamos muito do nosso tempo no nosso plano actual, a fazer a manutenção constante das coisas, sempre em luta contra o caos (a entropia), e ainda assim, a entropia (o caos) acaba sempre por nos ganhar a batalha, pois todas as coisas, tarde ou cedo, acabam destruídas ou gastas e atiradas para o respectivo caixote do lixo, seja ele qual seja.
E isto ocorre e acontece com tudo, as relações incluídas (e nem sequer me vou referir às amorosas); o que era maravilhoso e quase eterno ao princípio, torna-se frágil, estranho, desnecessário, incómodo e todo o rol de tantos quantos adjectivos quisermos acrescer!
Por muito que queiramos e nos esforcemos por perpetuar certas coisas todas elas são finitas, incluindo as que só nos deixam no nosso fim. A impermanência acaba por se nos impor e a ilusão de criar uma eternidade “a la carte” daquilo que queremos prolongar traz consigo o apego, essa amarra que se converte numa pena que teremos que carregar, e tudo fará para manter em nós essa sensação de permanência, o que, duma forma ou doutra, mais cedo ou mais tarde nos irá conduzir ao sofrimento.
E assim nós existimos, mas existimos apenas porque a existência global, essa sim, permanece, mas permanece na sua impermanência e indiferente à nossa existência individual, e persiste em ser movimento contínuo, estar acima do bem e do mal, em não ter forma estática, em ser indefinível, inapreensível, cambiante, caprichosa e, para nós, “ilógica”; essa existência é e contém o vento, as árvores, a terra, as nuvens, as ondas, o conflito, o movimento, equilíbrio e o rio sob a ponte (recordo aqui Heráclito - ninguém vai duas vezes ao mesmo rio, pois nem o rio é o mesmo rio, nem o homem é o mesmo homem).
É importante, para não dizer necessário, cultivar o desapego como regulador universal do estado de alma; será essa a chave que nos permitirá crescer e passar a outro nível de funcionamento onde a impermanência seja permanente (Heráclito).
Nascemos sós e nus; conforme a nossa vida se desenrolar, passaremos por todas as situações possíveis: necessitar, possuir, perder, sofrer, chorar, tentar… etc., mas depois morreremos, e, tal como nascemos, morreremos sós, e aí não fará a menor diferença se fomos ricos ou pobres, conhecidos ou desconhecidos; com mais ou menos pomposo enterro, maior ou menor acompanhamento, a morte será sempre o grande e último nivelador da nossa passagem por este estado.
A Siddhartha Gautama (+- 563AC a +- 483AC**), o primeiro Buda (o Iluminado) atribuem a seguinte frase: “Há uma única lei do universo que não muda, e essa lei é que tudo muda”.
Por vezes, provavelmente muitas, temos/teremos alguma dificuldade em perceber a realidade, pois nosso ego possui vários, para não dizer muitos, momentos de permanência através do seu apego a sentimentos, a momentos e a pessoas; é uma defesa interna mas é igualmente uma ilusão, e esta é a maior e mais perigosa ilusão que podemos manter na vida, pois sempre que tentarmos controlar as coisas, tarde ou cedo, vamos perceber que as coisas não são controláveis, e daí provém a frustração, o que é bom, pois é essa frustração que nos leva à desconstrução e ao consequente fim do sofrimento.
Para sermos por inteiro e vivenciar tudo o que há para viver, teremos que colocar as ilusões de lado e olhar para a vida real tal como ela é, com toda a sua beleza e toda a sua impermanência.
Nós não precisamos de ser culpados das coisas!
Nós não precisamos de arranjar culpados para as coisas!

Concluindo:
Impermanência é um conceito segundo o qual tudo está em constante movimento; nada é estável, fixo ou imutável; nada, incluindo aquilo a que temos por hábito chamar de fim.

Ao que a lagarta chama o fim do mundo o mestre chama borboleta - Richard Bach (23JUN1936 – 81 anos).

Sendo ou estando tudo em impermanência quem é ou onde está o “eu”, que no fundo é o “nós”, porque “não passamos de manifestações transitórias totalmente interdependentes de tudo o que nos rodeia”?
Quem é e onde está então, e neste momento, o “eu/nós” que redigiu estas linhas?
Disse V\M\
ARS M\M\
*   Apenas por curiosidade; Drucker e Kierkegaard faleceram ambos a 11 de Novembro.
** Pode ser mera coincidência mas não deixa de ser interessante: Siddhartha Gautama é contemporâneo de Heráclito. Numa época em que, ao que eu saiba a globalização não ocorria ainda, nem mesmo aquela temporã dos Descobrimentos Portugueses, época em que não havia aviões como os de hoje que levam meio-dia a fazer esse trajecto, como é que dois indivíduos a 5.700 quilómetros de distância e desconhecendo a existência um do outro (ou não?) proclamam o mesmo?


28 março 2018

Comunicação do Grão-Mestre por ocasião do equinócio da primavera


Queridos II. em todos os vossos graus e qualidades, a todos saúdo: sede bem-vindos à casa dos valores, à casa dos irmãos, à nossa casa.

Hoje celebramos em Grande Loja um novo equinócio de Primavera. E tal como tenho vindo a instruir, também hoje vos relembro que o vocábulo “equinócio” forma-se a partir de duas palavras latinas: ‘aequus’ que significa ‘igual’ e ‘nox’ que significa noite. Estamos assim, de novo, numa data em que a inclinação da terra e os raios da luz do sol, afiançam idêntica duração dos dias e das noites. Mas num instante, este equilíbrio momentâneo e frágil, irá colapsar, porque iniciaremos hoje a caminhada do aumento dos dias, até que chegue o solstício de Verão!

Por esta razão meus irmãos, em todos os momentos devemos estar alerta para que o desequilíbrio e a desunião não irrompa entre nós, para que a juventude do vigor adolescente da Primavera, não inunde os nossos campos maçónicos apenas de ervas daninhas.

A este respeito, cito-vos um velho camponês mirandês, que todos os anos pelo tempo do equinócio primaveril previne os mais jovens com a sua anciã sabedoria: “por chegar la primavera, nun habemos deixar que todo se buolba an berde, porque todo l que deixarmos tresformar-se an berde, sobretodo las cousas i ls balores mais amportantes, puode siempre benir un burro qualquiera cheno de fame, i pensando que ye yerba: ruobe-los”.

E os maçons já sabem bem do assassinato de Hiram Abif perpetrado por três companheiros desonestos, ciosos de honrarias e poder fácil!

E também todos sabemos da velha máxima atribuída a Júlio César: “à mulher de César não basta ser, terá também que parecer”.

E no fim do século XVI, o maior dos dramaturgos, na sua peça “A tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca”, William Shakespeare, indaga: “To be or not to be, that is the question” "Ser ou não ser, eis a questão"!

Não podemos, portanto, ser maçons e ter comportamentos profanos. Por essa razão, este servo que vos fala, vos indaga amiúde com a seguinte afirmação: as “profanisses” são para os profanos! Nós somos uma ordem iniciática com regras bem definidas.

Fomos todos iniciados maçons, e como maçons nos devemos exclusivamente comportar durante todos os instantes, respeitando sempre a nossa Augusta Ordem, as suas regras e os seus valores.

Mas deixai-me recuar ainda mais atrás que William Shakespeare e que Júlio César, para viajar até ao tempo de Esopo, um escritor da antiga Grécia que viveu nos anos 600 antes de Cristo, para vos contar uma das suas fantásticas e didácticas fábulas, que tem como título:

 O pai e os filhos brigões!

“ Certo pai tinha uma família de muitos filhos, que viviam em permanente briga entre si. Já cansado de tentar pôr fim às disputas através de esforço pessoal e muitos conselhos, decidiu mostrar através de um exemplo simples e prático, todos os males que podia acarretar tanta briga e desunião.

Para isso, um dia, pediu aos filhos que fossem à floresta mais próxima e juntassem um feixe de pequenos ramos de árvore. Aportado o dito molho de ramos, colocou-o nas mãos de cada um dos filhos, ordenando-lhe à vez, que cada um deles tentasse quebrar o feixe pelo meio.

Cada um dos filhos, valendo-se de todas as suas forças, bem tentou executar o que o pai lhe ordenou, mas nenhum deles obteve êxito, tendo todos fracassado.

Em seguida, o pai separou do feixe vários dos finos ramos que o compunham, colocando um nas mãos de cada filho, ordenando-lhe para que o tentassem quebrar pelo meio. Os rapazes, um após outro, obedecendo ao pai, mostraram todos como era fácil quebrar o ramo pelo meio.

Perante a evidência, disse aos seus descendentes:

Vede bem meus filhos, se permanecerdes sempre unidos como o feixe destes ramos, ninguém vos poderá quebrar pelo meio, mas se brigarem constantemente e vos mantiverdes desunidos, qualquer um vos poderá aniquilar. Em vez de brigar, ajudai-vos mutuamente uns aos outros meus filhos: contra as dissidências da vida e contra todos os que vos tentarem quebrar. Desunidos, seremos frágeis, unidos seremos fortes e inquebráveis.”

Da mesma forma meus irmãos, se dentro da nossa Augusta Ordem nos mantivermos unidos e coesos, ajudando-nos mutuamente, seremos fortes e robustos, mas se privilegiarmos a intriga e a desunião: seremos apenas frágil sombra de nós mesmos. E nós já falamos aqui tantas vezes do segredo da ‘meligrana’!

Entre este equinócio de Primavera e o próximo solstício de Verão, decorrerão eleições dentro da nossa Augusta Ordem. Apelo a todos os irmãos para que o processo de apresentação de candidaturas decorra com a devida calma e elevação maçónica.

Recordo que em maçonaria não podem existir “campanhas eleitorais”, tal como as que conhecemos dentro do sistema político partidário. Entre nós deve haver: contenção, informação aos irmãos, respeito pelos valores maçónicos, cortesia, educação, e os diferentes opositores, não são adversários entre si, mas apenas irmãos. Existe um ditado popular que diz: “pela aragem, se sabe o que vai na carruagem”. Por isso, na parte que me toca, tudo fazei para haja transparência e para que todos os requisitos e normativas vigentes, sejam estritamente observados e cumpridos. E são estas as garantias que tendes deste vosso servo, para engrandecimento da Nossa Augusta Ordem, e para que neste processo electivo, a aragem da nossa carruagem seja sã, livre e cordial!

Meus irmãos: armai-vos das vossas espadas: não podemos tolerar “maçons profanos” dentro do Templo, cultivando a intriga e a desunião entre nós, desejando apenas o nosso fenecimento e a morte dos valores universais da Maçonaria.

E era esta a mensagem simples que neste equinócio queria partilhar convosco, através da força da palavra e dos valores, e deles imbuídos, continuaremos o nosso caminho unidos e fortes, humildemente, harmoniosamente, assumindo a plenitude universal da Maçonaria, para continuar a consolidação e edificação da nossa Augusta Ordem, a bem da Humanidade, à Glória do Grande Arquitecto do Universo.

Lisboa 24 de Março de 6018 (2018)

Júlio Meirinhos
Grão-Mestre

19 fevereiro 2018

Novo site da Loja Mestre Affonso Domingues


A Loja Mestre Affonso Domingues foi pioneira entre as Lojas maçónicas portuguesas na disponibilização de um site na Internet, acessível através do endereço rlmad.net. Ao longo dos anos, temos procurado remodelar e melhorar esse site, acrescentando-lhe conteúdos.

Aproveitando o facto de mudarmos de fornecedor de alojamento, decidimos mudar também de plataforma, passando a utilizar o popular Wordpress e aproveitámos também para rearrumar as mais de cinco centenas de textos que já colocámos no site, agrupando-os em três grandes divisões: R.L.M.A.D. (por  sua vez, com as subdivisões Página do VM, Veneráveis e Pranchas Públicas - onde publicamos trabalhos elaborados por obreiros da Loja e nela apresentados e discutidos), G.L.L.P/G.L.R.P. (com as subdivisões Informações, Pranchas e Conteúdos, Em Loja, Memória da Grande Loja, Landmarks e Lojas Maçónicas) e Maçonaria (com os sub-temas Artigos Sobre Maçonaria, Graus Maçónicos, Interessante para os Maçons, Perguntas e Respostas, Poesia Maçónica, Pranchas Maçónicas, Regras Maçónicas, Maçons Célebres, Valores Maçónicos, O Aprendiz, O Companheiro, O Maçon, Ofícios da Loja e Simbolismo).

Este rearranjo dos textos do site tem como grande objetivo proporcionar aos visitantes do site, principalmente a quem não é maçom mas se quer informar sobre Maçonaria, um menu de temas que lhe permitem facilmente aceder a textos sobre diversos assuntos. Este site, sendo também útil para os obreiros da Loja, por constituir um fácil arquivo digital de muitos trabalhos e de muitos temas, foi pensado para ser especialmente útil para quem "está de fora", para quem não é maçom, mas quer obter informação sobre Maçonaria, a Grande Loja e as Lojas - particularmente a Loja Mestre Affonso Domingues, como é natural -, os trabalhos elaborados pelos maçons, as suas regras, Princípios e Valores.

Uma acusação recorrente contra a Maçonaria e os maçons é a de que se trata de "associação secreta". Este site procura demonstrar que a Maçonaria é tudo menos secreta! Nada temos a esconder. Pelo contrário, temos todo o gosto em partilhar os nossos trabalhos, divulgar os nossos Valores. 

Nos dias de hoje, a Maçonaria será porventura ainda algo de estranho para muitos, sobretudo ao depararem-se com grupos de indivíduos que se reúnem semanal ou quinzenalmente, sem nenhuma vantagem material. Em tempos de império do dinheiro, de glorificação das fortunas, de procura por tantos de "vencer na vida", de ascensão social, de conforto material, será estranho haver grupos de indivíduos que se juntam com o primordial objetivo de trabalharem para o seu aperfeiçoamento, para estudar, para aprender, para especular, para discutir Ética e Moral e Tolerância e Liberdade e Igualdade e Fraternidade e tantas outras coisas mais que não são de César e que não trazem vantagens materiais. Por isso alguns não acreditam que é para isso que os maçons se reúnem e elaboram teorias de conspiração e alimentam desconfianças. Nada podemos fazer quanto a isso - senão mostrar o que fazemos! E cada um que tire as suas conclusões!

Este é o site da nossa Loja, que, com agrado, colocamos à disposição de todos os interessados. Ainda não está pronto. Nunca estará pronto! Pretendemos continuamente aperfeiçoá-lo (como pretendemos aperfeiçoar-nos a nós...). Nos tempos mais próximos, tencionamos embelezá-lo com mais imagens, colocar mais conteúdos, "podar" o site, limpando-o de conteúdos desatualizados, melhorar o seu lay-out. Enfim, tencionamos mantê-lo como o pretendemos, como uma montra do trabalho que realizamos em Loja. 

Esperamos que o site seja útil. Esperamos que mereça a SUA visita e o SEU interesse.

Rui Bandeira

22 janeiro 2018

A prece e a Maçonaria


 O texto Oração para qualquer crente de qualquer crença recebeu, num grupo fechado de uma rede social, o seguinte comentário:

 Esta "oração" pode ser lida (interpretada) por qualquer crente de qualquer religião, mas no seus redutos afins. Em maçonaria não! A maçonaria não é uma religião. Nos seus templos não devem (não podem) existir orações do tipo religioso. Ainda que em ritos com tendência religiosa este género de orações possam existir, isso será apenas uma particularidade (corpos rituais). Quando a maçonaria enveredar por esse caminho estará acabada (para o país ou obediência que tome esse caminho). Fernando Pessoa não era maçon, embora não fosse leigo.

Respeito em absoluto esta opinião, que exprime, de forma correta, um ponto de vista diverso do meu. Concordo, aliás, com a afirmação de que a maçonaria não é uma religião, bem como com a informação de que Fernando Pessoa não era maçom. Mas, pontuadas estas concordâncias, mister é acentuar também onde, como e porquê existem divergências de entendimento.

Desde logo, não é factualmente correto afirmar-se que, nos templos da Maçonaria "não devem (não podem) existir orações do tipo religioso". E não é factualmente correto porque nos vários rituais de diversos ritos - mesmo os que não podem ser considerados como sendo "com tendência religiosa" - estão expressamente presentes e são regular e normalmente proferidas "orações do tipo religioso". Mencionando apenas os ritos em que pessoalmente já participei, para não correr o risco de cometer alguma imprecisão, assim sucede no Rito Escocês Antigo e Aceite, em várias passagens, incluindo no Ritual de Iniciação, no Rito Adonhiramita e no Ritual de Grande Loja, este designadamente com as intervenções do Grande Capelão, na abertura e no encerramento dos trabalhos. 

As orações previstas nos rituais mencionados são - não me parece que, de boa-fé se possa afirmar o contrário - "do tipo religioso", o que basta para demonstrar o desacerto do argumento defendido no comentário. 

Diferente será se se afirmar que não deve, não pode, ter lugar na Maçonaria Azul (a Maçonaria clássica ou básca, dos três graus de Aprendiz, Companheiro e Mestre - já que, como acertadamente se pontua no comentário, em alguns dos Altos Graus de alguns ritos pode ser diferente) a oração, ou prece, especificamente de alguma religião em particular. Nesse caso, a minha concordância estará presente. Mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa...

Na minha opinião, nem sequer faz sentido falar-se em Maçonaria Regular sem se ter presente o diálogo com, a invocação do Criador. A Maçonaria Regular agrupa crentes, crentes no Criador, qualquer que seja a conceção que Dele cada um tenha, crentes de que a morte não é um fim, antes uma Passagem. Assim sendo, faz todo o sentido que, em seu ambiente e em seus templos haja lugar a preces "de tipo religioso", desde que não relativas a uma qualquer religião em particular. O espaço da Maçonaria é um espaço de crentes, não um espaço de recusa de diálogo com o Criador...

Ou dito de outro modo: a Maçonaria é um espaço onde cada um se aperfeiçoa, procurando a sua superação, com vista a ser digno do seu Criador.

Não concordo que a Maçonaria seja apenas, e nada mais, um espaço de autoaperfeiçoamento. Também não perfilho a conceção que entende que a Maçonaria tem na sua essência um esoterismo que a tudo o resto apaga. A minha posição é intermédia: a Maçonaria é um espaço de autoaperfeiçoamento, como indispensável instrumento para que o que é verdadeiramente essencial no Homem, o átomo vital que cada um recebeu do Criador, possa alcançar a evolução para o plano seguinte, para cujo acesso este plano de existência nos é suposto preparar. Se alguém quiser isto designar por autoaperfeiçoamento com um objetivo de esoterismo, não me oporei...    

Mas uma coisa é certa: nada disto implica que se proscreva a prece na Maçonaria - desde que essa prece possa ser dita por todos os crentes, independentemente da sua crença!
 
Rui Bandeira      

15 janeiro 2018

Oração para qualquer crente de qualquer crença


A Maçonaria sempre foi, é e sempre será (ou não se seria) um espaço de Tolerância.  Desde logo religiosa. Qualquer crente de qualquer crença tem nela lugar, em estrita igualdaďe com os demais crentes de quaisquer outras crenças. 

Algo que quem está de fora tem dificuldade em entender é como se processa então o relacionamento entre crentes das mais diversas crenças em matéria de espiritualidade, atentas as naturais diferenças que inevitavelmente haverá. O conceito de Grande Arquiteto do Universo como designação comum para o deus que cada um venera não chega para esclarecer a dúvida. Mesmo utilizando uma designação comum para o conceito divino de cada um, como conseguem os maçons coletivamente e em conjunto dirigir-se ao que inevitavelmente é diversamente concebido entre eles e por cada um deles?

Mais uma vez, a resposta está no estabelecimento do máximo denominador comum entre eles, utilizando invocações para todos aceitáveis. Mas afirmar isto é fácil. Demonstrá-lo para quem está de fora é mais difícil...

Proponho-me aqui ilustrar como isso é possível,  transcrevendo uma oração que nem sequer faz parte de qualquer ritual maçónico e, que eu saiba, não é maçonicamente utilizada, mas que ilustra, a meu ver, na perfeição como é possível invocar, orar, dialogar, com o deus de cada um, independentemente das diferentes crenças individuais.

Aproveito para, de caminho, elevar o nível do blogue e ilustrar também a diferença entre o que arrazoa um mero escrevinhador como eu e o que cria um verdadeiro escritor! Ora aprecie o leitor a superlativa beleza desta oração (no final revelarei quem a escreveu):

Senhor, que és o céu e a terra, e que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo está é o teu templo. Dá-me vida para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.

Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faz com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai. Sê digno de ti em mim.

Bendito seja o teu nome de Céu e de Terra, e de Corpo e Alma, e de Vida e Morte! Louve-te a minha boca e as minhas mãos te louvem!

Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da Terra tua carne. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.

Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia, para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.

Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu.

Senhor, livra-me de mim. Unge-me da tua divina (*).

Que o meu pomar dê frutos saborosos a Ti e a minha vinha dê vinho.

Quando me movo, és tu que te moves; quando falo, és tu que me és falando. Quando dou um passo, avanças tu. Se paro, estacas de mim.

(*) Deixado em branco pelo autor. Este humilde escrevinhador propõe que a palavra que o autor deixou por escrever seja Luz.


Leitor, releia e deixe a beleza deste texto impregnar a sua sensibilidade! E verifique como esta oração pode ser dita por um cristão,  um judeu, um muçulmano ou um crente de qualquer outra crença!

Este texto foi escrito em 1912 por um génio de seu nome Fernando Pessoa.

Está publicado no livro Prosa íntima e de autoconhecimento, edição de Richard Zenith, Assírio & Alvim, 2017.  

Rui Bandeira

01 janeiro 2018

Comunicação do Grão-Mestre por ocasião do solstício de inverno


Queridos II. em todos os vossos graus e qualidades, a todos saúdo: sede bem-vindos à casa dos valores, à casa dos Irmãos, à nossa casa.

Celebramos hoje em Grande Loja o solstício de Inverno. A palavra solstício vem do latim "sol" e “sistere” – do que não se move. Este fenómeno astronómico, é o momento em que o Sol, durante o seu movimento aparente na esfera celeste, nos traz o registo do dia mais curto e da noite mais longa do ano. Nesse instante, o grande astro rei, ameaça abandonar-nos, arremessa-nos com a frieza da noite eterna, mas trata-se apenas de um prelúdio de generosidade, porque no instante seguinte nos presenteia com a esperança, e as noites começarão a encurtar e os dias começarão a crescer, e a grande vitória da luz sobre a escuridão concretizará a renovação da aliança de vida que o Sol tem para com toda a criação terrestre.

E é desta forma que o Sol nos ensina que nada é eternos meus Irmãos, que tudo é relativo, que tudo é permanente mudança e renovação, que tudo é metamorfose: porque à escuridão das noites longas, sucederá a luzência dos dias felizes, e ao solstício de Inverno, sucederá o solstício de Verão, e que os equinócios hão-de acontecer de permeio, e se morarmos felizes em cada um desses momentos, a nossa vida será uma verdadeira bem-aventurança.

E da ancestral loucura Babilónica de chegar aos céus, nasceu a riqueza das línguas, e por entre os meandros da dissonância do desentendimento dos homens, a velha civilização egípcia criou os hieróglifos e os sumérios o alfabeto, para que os clássicos gregos puderam escrever uma incipiente democracia primordial, ou talvez, quem sabe, para que Camões e Pessoa extravasassem a poesia.

Os romanos geraram cidades abastecidas por água que os magnificentes aquedutos traziam de longe. E pelo tempo em que quis nascer Portugal, os grandes mestres medievais, inventaram catedrais de uma formosura quase perfeita, mas a beleza da nova dimensão da perspectiva renascentista sobrepôs-se-lhe.

E foi então que nós portugueses, de sextante em punho, oferecemos a descoberta dos vários continentes a toda a humanidade.

E durante tão longa caminhada, travaram-se muitas guerras, muito sangue e destruição se arramou à superfície da terra, e a cada vez, das cinzas da dor absoluta, tudo voltou a reflorescer.

E a maçonaria especulativa há já trezentos anos que aprofunda a bondade do polimento da conduta humana, praticando a liberdade, a igualdade e a fraternidade, erguendo todos os dias novos pináculos à nossa catedral interior.

E eu, e os mais velhos que eu, ainda pensamos que a noite fascista nos tolheria os passos e os sentidos, mas erguemo-nos e revigoramos de forças, e ainda fomos capazes de responder à resolução de grandes causas nacionais, como o foram a liberdade, a democracia, a descolonização, a Europa e o desenvolvimento.

E um de entre os nossos foi prémio Nobel da literatura, e outro Presidente da Comissão Europeia, e outro Secretário-geral da ONU. Ganhamos o campeonato europeu de futebol e o melhor futebolista do mundo é nosso, com a proeza renovada por cinco edições. E o festival da eurovisão ganhou-o Salvador Sobral para todos nós, obrigando o seu tão frágil coração a amar por dois! E nós possuídos pela desventura do nosso fado património da humanidade, tínhamos a alma lusa acorrentada, quase condenados a pensar que tudo isto era apenas para os outros, e que, portanto, nos estaria eternamente vedado! E nos augúrios deste mês natalício, já conseguimos mais facilmente acreditar que o Presidente do Eurogrupo podia ser um economista nado nos Algarves.

E o Natal é isto, meus Irmãos: termos a capacidade de acreditar que todos os dias pode nascer a bondade, a alegria, a transcendência de nós mesmos. E muitos natais ainda podemos fazer acontecer: se amarmos, se trabalharmos, se estudarmos, se investigarmos, se formos justos, se praticarmos o bem, se praticarmos a virtude, se formos mansos, se todos os dias a liberdade for o único norte que oriente a construção das nossas novas pontes, que seja apenas ela a dirigir os nossos novos passos, livres.

“Não se pode amar sozinho, e todos os dias voltaremos a aprender”, explicando ao mundo que fomos os primeiros a abolir a pena de morte, apostando no lado manso da humanidade: porque “bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra.”

Jesus Cristo, além do elogio da humildade, nesta Bem-Aventurança, ensina-nos que a terra não será propriedade nem dos valentes, nem dos arrogantes, nem daqueles que apenas querem guerrear. Ninguém estará por cima, ninguém estará por baixo, ninguém será usurpador, porque esses, apenas os destroços herdarão. De que nos adianta os grandes domínios, se eles forem construídos sobre a destruição e a desventura? Jesus poderia arrogar-se o maior dos anjos. Poderia humilhar opositores e delatores, mas a sua vitória significou apenas abrir caminhos, semear paz e harmonia. Fazer coisas extraordinárias, também implica a condição de mansidão, porque assim conquistaremos mais corações que todos os grandes valentes como Nero, Alexandre, Hitler ou Stalin. Os mansos não sentem necessidade de provar coisa alguma, nem mesmo que são mansos.

E neste solstício de Inverno, o Sol quer ainda ensinar-nos que há sempre mais que os dois clássicos lados: o da noite e o do dia. Porque a alvorada, o crepúsculo, a vespertina madrugada, o calmo entardecer ou o cálido zénite, fazem parte das belezas e sensações que Deus nos quis oferecer, apenas para que experienciássemos cada um de todos os pontos inscritos sobre a perfeita circunferência, toda e cada uma das nuances da felicidade.

E neste tempo solsticial e natalício, havemos de cultivar a bondade e a compaixão, e limparemos o caminho que nos traz as harmonias, a paz, a justiça, a liberdade, para que possa ser tempo de Natal todos os dias, todos os anos, por todos os séculos dos séculos.

Boas festas, um feliz Natal e um Ano Novo cheio de saúde para todos os meus Irmãos e família.

E era esta a mensagem simples que neste solstício vos queria declarar, e dela imbuídos, continuaremos o nosso caminho, humildemente, harmoniosamente, assumindo a plenitude universal da Maçonaria, para continuar a consolidação e edificação da nossa Augusta Ordem, a bem da Humanidade, à Glória do Grande Arquitecto do Universo.

Júlio Meirinhos
Grão Mestre

22 dezembro 2017

Solstício de Inverno



Ontem foi o solstício de Inverno. É o dia mais curto do ano, e a noite mais longa. Até aqui os dias foram progressivamente encurtando, cada um com menos luz do que o seu predecessor. A partir de hoje, porém, cada dia será, progressivamente, um pouco mais luminoso que a sua véspera - até ao solstício de Verão, dia mais longo do ano, e noite mais curta. Chegados aí, os dias passarão a ser progressivamente mais curtos, até que, de novo, chegue o solstício de Inverno.

Este ciclo solar - a repetição das estações - não passou despercebido aos nossos antepassados, e o passar das eras carregou-o de simbolismo. O Homem, divinizando as forças da natureza - e o Sol em particular - interpretava como podia esta alternância entre luz e escuridão, entre abundância e escassez, entre vida e morte.

As antigas feiticeiras - ervanárias, na verdade - atribuiam nomes fantásticos, como asas de morcego ou dentes de dragão, às ervas que usavam nas suas poções. Com essas identidades eram urdidas elaboradas histórias que mais não eram do que mnemónicas das receitas dos medicamentos da época.

De modo semelhante, a maçonaria inspirou-se em muita da mitologia existente na época, socorrendo-se dos símbolos para se referir a princípios, normas ou sentimentos, embrulhando-os em histórias mais ou menos elaboradas que servem de mnemónica da lição moral que se pretende transmitir.

O racionalismo iluminista chega-nos, assim, travestido numa aparência de fantástico e sobrenatural, numa linguagem arcaica e rebuscada que compete a cada um desvelar ao seu modo. Ao contar histórias abertas a interpretações, a maçonaria transmite os princípios sem violar a liberdade de cada um, e exige algum esforço individual na busca da Luz. As oportunidades e matizes de interpretação são inúmeros; cabe a cada um decidir o que quer fazer do que é colocado à sua disposição, e de como o incorporar - ou não - na sua vida.

Paulo M.

12 dezembro 2017

Segurança informática

Resultado de imagem para cybercrime

Uma vez deixei o carro mal travado num parque de estacionamento, e ele foi bater noutros dois. Não houve danos pessoais, tanto mais que ninguém estava presente. A seguradora pagou os danos que o meu carro causou nos outros e os danos do meu carro saíram-me do bolso. Tirando as fotos e o gozo dos colegas, a história ficou por ali. Não é este, no entanto, o típico acidente automóvel. O normal é o condutor, ou um peão, fazerem alguma coisa de errado –pode ser uma manobra desastrada, ou mera distração que leve a uma omissão – e em consequência disso haver um acidente, frequentemente com danos pessoais.

Quando os acidentes ocorrem na estrada já todos sabemos o que há a fazer. Afinal de contas, por um lado, as regras do código da estrada já têm muitos anos – de facto, é de 3 de Outubro de 1901 a publicação do Regulamento sobre Circulação de Automóveis, e de 1928 o primeiro Código da Estrada. Por outro, não podemos conduzir um automóvel sem aprender primeiro como se faz, e passar um par de exames que o atestem. Por tudo isto, dar hoje um toque com o carro não é propriamente notícia – a sociedade já teve cerca de um século para se ir habituando ao fenómeno dos automóveis nas estradas e transmitir essa experiência através das gerações.

Apesar de a Internet existir desde os anos 70 – há quase 50 anos - só há pouco mais de 20 começou a ser usada em contexto doméstico. Até então, o seu uso estava reservado aos governos, instituições militares, universidades e algumas grandes empresas, normalmente ligadas à tecnologia. Foi na última década que o uso da Internet explodiu, sendo hoje raro o computador – e não esqueçamos que os smartphones não são outra coisa – que não esteja ligado à autoestrada digital.
Ao contrário dos automóveis, que só podem, pelo menos em teoria, ser conduzidos por quem conheça o Código da Estrada e seja portador de Carta de Condução, qualquer pessoa pode comprar um computador ou um telemóvel e, sem mais cerimónias, ligar-se à Internet. É, aliás, o que faz a esmagadora maioria das pessoas. Para facilitar este fenómeno, os fabricantes de computadores tornam-nos, a cada ano, mais fáceis de utilizar. Já o mesmo não se pode dizer dos telefones… mas enfim.

Os primeiros condutores de automóveis eram entusiastas da mecânica, tal como os primeiros utilizadores da internet eram entusiastas da tecnologia. Hoje os carros avisam quando precisam de manutenção, e largamo-los na oficina para o efeito, arrancando pouco depois num automóvel de substituição. De resto, metemos combustível, líquido no limpa-para-brisas, e está feita a nossa parte. Compramos computadores, usamo-los durante um tempo, depois ficam lentos e esquisitos, pedimos ao filho do vizinho para os reinstalar, o que começamos a fazer com alguma regularidade, e ao fim de um tempo compramos outro. Com os telemóveis é igual: carregamo-los à noite, reiniciamo-los de vez em quando se ficam lentos, e ao fim de um a dois anos trocamo-los por um modelo novo e deixamos o antigo a apanhar pó numa gaveta. A maioria das pessoas não sabe nada da tecnologia que constitui a Internet, nem dos cuidados a ter, nem há ainda uma cultura na nossa sociedade quanto aos riscos e comportamentos a evitar.

Entretanto, temos uma conta no Facebook, outra no Gmail, mais umas quantas de outras redes sociais, vemos notícias, trocamos links com outros, visitamos sites… A certa altura damos por nós em sites com publicidade agressiva, e mesmo obscena, janelinhas a abrir umas depois das outras, o botão de voltar atrás que não funciona… Depois aparece outra janelinha a dizer: “Tem vírus! Descarregue aqui um antivírus grátis!”. E nós, atarantados, lá fechamos o Chrome, ou o Internet Explorer… para logo depois nos aparecer no email uma mensagem: “O acesso à sua conta na CGD está bloqueado. Visite este site e introduza os seus dados pessoais para o desbloquear”… Pouca sorte, logo eu que só tenho conta no Montepio… mas está aqui outra mensagem… uma promoção… “Olha, posso ganhar uma Nespresso, ou 400 euros em cartão no LIDL… deixa lá ver o que é…” e carregamos… e, sem que alguma vez venhamos a aperceber-nos, o nosso computador passou a ser usado por uma rede internacional de ciber-criminosos. E a promoção? Ah… a rena do Pai Natal depois traz.

Há essencialmente duas coisas que as redes de crime organizado procuram obter dos cidadãos mais desavisados através dos computadores: os dados pessoais, e o acesso aos próprios computadores. Os dados pessoais servem para nos imputar despesas, revertendo os proveitos para os criminosos. Eles podem ficar, num exemplo muito simples, alojados num hotel, e ficar o pagamento da estadia por nossa conta. Também podem tentar obter os nossos dados de acesso ao homebanking para transferir as nossas poupanças para uma offshore… Mais prosaicamente, podem limitar-se a vender os nossos dados pessoais para efeitos de marketing – e lá passamos a receber uma montanha de emails com publicidade.

Já o acesso aos nossos computadores é mais apetecível, pois é mais útil aos criminosos, mas só pode obter-se de uma de duas maneiras: ou através de um defeito no sistema – do mesmo modo que uma janela que não feche pode ser usada por um ladrão para nos entrar em casa – ou porque voluntariamente os deixamos entrar – como alguém que nos toque à campainha a pedir para usar o nosso telefone para ligar para o 112 por ter havido um acidente na rua, e nós, cheios de boa vontade, abrimos a porta...

Tal como muitas doenças podem ser evitadas através de vacinação e/ou prevenção, não se tendo comportamentos de risco, também aqui a estratégia é semelhante. Vacinar-nos corresponde à atualização permanente dos sistemas – o que é fácil com os computadores mas pouco comum nos smartphones por responsabilidade dos fabricantes. Já os comportamentos de risco de que nos devemos abster são, na verdade, a maior brecha, e o mais bem sucedido vetor de ataque. Os criminosos só querem uma coisa: que instalemos um pequeno software no nosso dispositivo. Para isso contarão todas as histórias da carochinha: que é um anti-vírus, que é para pôr o smartphone mais rápido, que é para ver filmes de graça… oferecem sempre qualquer coisa. Só temos que instalar o tal programa – que até pode ser um joguinho, que até funciona... mas não é só um joguinho. Não é por acaso que se chama “cavalos de Tróia”, ou trojan a esses programas, que parecem ser uma coisa inocente mas são só um dispositivo de penetração da nossa segurança perimétrica.

Uma vez instalados, podem com facilidade intercetar todas as teclas em que carregamos, e assim ficar a saber as nossas passwords em todos os sites que visitamos, assim como o conteúdo de todos os textos que escrevemos. Pode ser, depois, que o nosso PC comece a ficar muito lento, pois está a fazer operações matemáticas que servem para gerar dinheiro digital. Um programa malicioso pode também codificar todos os nossos ficheiros – as fotos, os trabalhos, tudo! – e depois pedir um resgate em troca da chave de descodificação. Sem a chave correta, os nossos dados estão perdidos para sempre. É certo que tudo isto é grandemente inconveniente para nós, mas estamos longe de ser as únicas vítimas da nossa falta de cuidado: é que a maioria desses programas maliciosos logo trata de se tentar espalhar por mais dispositivos.

É assim que todos os nossos amigos com quem trocamos emails vão receber uma mensagem, aparentemente enviada por nós, convidando-os a instalar, também eles, o programa. A mensagem pode ser variada, desde um genérico “olha lá para isto” a um específico “Vamos contribuir para a UNICEF este Natal. Se quiseres entrar, acrescenta o teu nome e o montante na lista em anexo e manda-ma de volta”. E depois a lista é, afinal, um cavalo de Tróia. Já começámos a fazer estragos junto dos que nos estão mais próximos.

Pouco depois, o nosso computador – ou smartphone – liga-se a um site na China, ou na Rússia, na América Latina ou na cidade ao lado da nossa… e recebe uma lista de instruções. Pode ser uma lista de endereços de emails, e logo uns milhares de emails com publicidade, ou maliciosos, serão enviados a outros tantos alvos. Pode ser uma lista de sites a que o dispositivo vai aceder, uma vez após outra, durante o dia todo. Um oceano é feito de uma multidão de gotas de água. Ninguém se afoga numa uma gota de água; agora, num milhão de gotas de água… É assim que um site pode ficar inacessível por ter dezenas ou centenas de milhares de dispositivos a aceder-lhes repetidamente. E para que serve isso? Uma vez mais, para que os criminosos possam pedir um resgate ao dono do site: “Paguem, e nós paramos.”

Como se vê, as nossas ações não nos afetam só a nós – tal como podemos transmitir certas doenças aos que nos rodeiam se não formos cuidadosos. Uma vez afetados, só com software especializado poderemos remover o bicharoco. De novo, o filho do vizinho saberá o que usar. Podemos zelar pela segurança dos nossos dispositivos ligados à Internet através de três medidas:

– A primeira consiste em mantermos o dispositivo atualizado. Todos os sistemas modernos podem atualizar-se de forma automática, sejam MacOS, Linux ou Windows. Convém é ver se para as versões que temos instaladas ainda se produzem correções. Quando assim é, é normal haver várias atualizações por mês. Já os smartphones atualizam-se menos frequentemente – alguns nunca. A única coisa que podemos fazer, na maioria dos casos em que assim é, é comprar um mais recente. Curioso…

– A segunda medida é não executar programas – nenhuns! – sem primeiro averiguar, através de uma busca do Google, por exemplo, se o programa em causa é malicioso. Se o estamos a fazer a pedido de alguém que conheçamos, convém confirmar a autenticidade do pedido…

– A última medida – a mais difícil – passa por interiorizar que não há ofertas grátis. Toda a gente nos tenta oferecer qualquer coisa, e é difícil dizer que não. Para isso, temos que nos voltar a recordar do que nos ensinaram em crianças: que não devemos abrir a porta a estranhos. Neste caso, a nossa porta é o nosso dispositivo, abri-la é instalar coisas, e os estranhos são o mundo inteiro…

A Internet foi democratizada há 20 anos. Entretanto, os avanços tecnológicos têm sido tremendos. Enquanto a indústria não resolve as fragilidades deste ecossistema em constante e acelerada mudança, temos que, cada um e para benefício de todos, zelar por defender os nossos dispositivos da sua principal vulnerabilidade: nós mesmos.

Paulo M.

01 dezembro 2017

Homo homini lupus

wolves fighting baring teeth in wild


A organização social das alcateias tem vindo a ser extensivamente estudada desde os anos 60 do século passado por L. David Mech, que começou pela observação do comportamento de várias alcateias que se haviam constituído em cativeiro a partir de indivíduos dispersos - reproduzindo o entendimento que se tinha, de que estes se reuniriam para, juntos, fazerem frente aos desafios trazidos pelo Inverno. 

A hipótese inicial a que as observações levaram este cientista foi a de que os lobos se organizariam em torno de um "macho alfa", mais forte, que exigia acesso preferencial à comida e às fêmeas, por exemplo, mas também a locais de abrigo ou certos papéis nas atividades do grupo. Esta hipótese do "macho alfa" explicava o comportamento verificado, de constantes lutas entre machos no sentido da dominância de uns indivíduos sobre os demais.

Mais de trinta anos depois, Mech apercebeu-se de um erro que derrubava impiedosamente as suas conclusões: o que tomara por alcateias típicas não passava de agregados disfuncionais de indivíduos não relacionados entre si, o que raramente se encontrava na natureza. As verdadeiras alcateias eram constituídas por um casal reprodutor e pelos filhos mais novos - das ninhadas dos dois ou três anos anteriores. Nestes grupos não havia lutas pelo poder, e reinava a paz e a harmonia. Após confirmação do erro, Mech rejeitou oficialmente as suas conclusões anteriores.


Uma loja maçónica é uma alcateia de indivíduos dispersos, reunidos para fazer frente aos desafios que a vida levanta. Como em qualquer grupo, especialmente quando exclusivamente constituído por machos, a tendência natural é de confrontação e de medição de forças. É precisamente o domínio de si mesmo, no sentido de não deixar prevalecer os aspetos mais vis da natureza humana, que se procura incentivar.

Não é fruto do acaso o facto de os maçons se tratarem uns aos outros por "meu irmão". O estabelecimento deste "laço familiar" voluntário transforma a nossa visão do outro, trazendo-o de uma esfera em que é um estranho, um outsider, um potencial inimigo, para outra em que é "um dos nossos".

Não é arbitrária a imposição de que, no momento próprio de cada sessão, cada um possa intervir apenas uma vez sobre determinado assunto; esta limitação impede, na prática, a discussão do tema, sem impedir a exposição da posição de cada um.

Por fim, não é fortuita a rotação dos papéis que cada um vai desempenhando ao longo dos anos, e a recordação constante de que o papel que se desempenha é, acima de tudo, um serviço que se presta,  e nunca um exercício de poder absoluto.


O aforismo segundo o qual "o homem é o lobo do homem" - homo homini lupus - remete-nos para as atrocidades de que o Homem é capaz - e tem demonstrado sê-lo ao longo da História. O potencial destruidor de um homem que se sinta acossado é virtualmente ilimitado.

O propósito último da maçonaria consiste, precisamente, em incentivar-nos a contrariar esta faceta da nossa natureza. O estabelecimento de laços de "fraternidade voluntária" é instrumental nesse sentido. De facto, mesmo correndo o risco de abuso, tratar aqueles que nos rodeiam como se fossem elementos do nosso núcleo familiar é um dos mais eficazes caminhos para a paz desta grande alcateia na qual todos fomos lançados.

Paulo M.