30 setembro 2009

A Lenda do Ofício - análise crítica: Euclides

Euclides

Chegados ao Egito, a Lenda do Ofício apresenta uma história tão desenvolvida e pormenorizada que bem merece uma autonomização como a Lenda de Euclides. Relembremo-la, tendo em consideração que imediatamente antes da passagem ora transcrita, se introduziu Euclides, que aprendeu bem e foi Mestre das sete ciências liberais:

E no seu tempo, sucedeu que o senhor e os nobres do reino tinham tido muitos filhos, alguns das suas mulheres, outros de outras senhoras do reino; porque aquela terra é uma terra quente e propícia a gerar. E eles não tinham encontrado modos de vida satisfatórios para os seus filhos, de que muito gostavam, e então o rei do país convocou um grande Conselho e Parlamento para decidir como poderiam encontrar um modo de vida honesto para os nobres seus filhos, e não conseguiram encontrar boa maneira. E então anunciaram por todo o reino que se houvesse algum homem que os informasse, então deveria comparecer perante eles e seria recompensado pelo seu trabalho, de forma a deixá-lo satisfeito.
Depois que este pregão foi feito, veio então o valoroso Euclides e disse para o rei e todos os seus nobres: "Se me entregarem os vossos filhos para que eu os governe e lhes ensine uma das sete ciências, de forma que eles possam viver honestamente como nobres, deverão dar-me a mim e a eles uma carta-patente, de que eu tenho o poder de lhes determinar o modo como essa ciência deve ser regulada." E o rei e o seu Conselho concederam-lhe isso e selaram a sua carta-patente. Então o valoroso Doutor levou consigo os filhos dos nobres e ensinou-lhes a ciência da aplicação da Geometria ao trabalho de construção em pedra de igrejas, templos, castelos e palácios; e deu-lhes Deveres da seguinte forma.
O primeiro era que deviam ser verdadeiros para o Rei e para o Senhor de quem dependiam. E que deveriam gostar de estar juntos, ser verdadeiros uns com os outros. E que deviam chamar-se uns aos outros Companheiro ou Irmão, não por servo, ou escravo, ou outros nomes tolos. E que deveriam merecer o salário pago pelo Senhor ou pelo Mestre que servissem. E que deveriam designar o mais sábio deles para Mestre do trabalho e não deixar que essa designação fosse afetada por linhagem, riqueza ou favor, pois então o senhor seria mal servido e eles desonrados. E também que deveriam tratar o responsável pelo trabalho por Mestre, durante o tempo em que trabalhassem com ele. E muitos mais deveres de conduta que seria longo contar. E a todos estes Deveres fez jurar um grande juramento que naquele tempo se usava; e determinou que deveriam receber salários razoáveis, com os quais pudessem viver honestamente. E também que deveriam reunir-se anualmente, para discutir como poderiam trabalhar melhor e melhor servir o seu senhor, para ganho dele e deles próprios; e para corrigirem no seu próprio seio aquele que tivesse errado contra a ciência. E assim ali foi implantada a ciência; e o valoroso senhor Euclides deu-lhe o nome de Geometria. E agora é chamada em toda esta terra por Maçonaria.

Euclides viveu entre 360 e 295 antes de Cristo. Terá sido educado em Atenas e frequentado a academia de Platão. Foi convidado por Ptolomeu para integrar o quadro de professores da recém-fundada Academia de Alexandria, a segunda maior cidade egípcia, tornou-se o mais importante autor de matemática da Antiguidade greco-romana e talvez de todos os tempos, com seu monumental Stoichia (Os elementos), uma obra em treze volumes, sendo cinco sobre geometria plana, três sobre números, um sobre a teoria das proporções, um sobre incomensuráveis e os três últimos sobre geometria no espaço. Escrita em grego, a obra cobria toda a aritmética, a álgebra e a geometria conhecidas até então no mundo grego e sistematizava todo o conhecimento geométrico dos antigos. Intercalava os teoremas já conhecidos então com a demonstração de muitos outros, que completavam lacunas e davam coerência e encadeamento lógico ao sistema por ele criado. Após sua primeira edição foi copiado e recopiado inúmeras vezes e, traduzido para o árabe, tornou-se um influente texto científico. Depois da queda do Império Romano, os seus livros foram recuperados para a sociedade europeia pelos estudiosos muçulmanos da Península Ibérica. Escreveu ainda sobre a ótica da visão e sobre astrologia, astronomia, música e mecânica, além de outros livros sobre matemática.

Como se vê desta resenha, a Lenda do Ofício de novo se apropria de um personagem histórico comprovadamente existente, mas coloca-o em tempo e circunstâncias diferentes dos que efetivamente foram os seus. Embora residindo e ensinando no Egito, na academia de Alexandria, Euclides não foi propriamente um mestre da cultura egípcia, antes um produto da cultura helenística.

Também a sua introdução como personagem da Lenda sofre de um duplo anacronismo: por um lado, coloca-o como contemporâneo de Abraão, que o antecedeu em dois milénios; por outro, coloca-o em tempo anterior à edificação do Templo de Salomão, quando viveu em tempo bem posterior, cerca de seiscentos e cinquenta anos depois de tal edificação, e até cerca de dois séculos depois da destruição do dito Templo por Nabucodonosor, em 586 a. C..

Este enxerto da obviamente fantasiosa Lenda de Euclides na Lenda do Ofício ter-se-á devido essencialmente a dois fatores: por um lado, a óbvia importância enquanto Mestre de Geometria de Euclides, bem conhecida na Idade Média, época de criação da Lenda; por outro, o reconhecimento da existência de algumas semelhanças entre o método de ensino existente entre os maçons operativos e o método esotérico de ensino seguido pelos sacerdotes do Antigo Egito.

Assim, mais do que um relato factual historicamente consistente, devemos interpretar esta passagem da Lenda do Ofício como o repositório amalgamado de crenças realmente tidas pelos maçons operativos da Idade Média:

- Que a Geometria é a base da Maçonaria;

- Que Euclides foi o maior dos Mestres de Geometria;

- Que os sacerdotes do Antigo Egito utilizavam um método esotérico de transmissão de conhecimentos similar ao método utilizado pelos maçons operativos.

Neste aspeto, a Lenda simboliza o bem conhecido facto de que, no Antigo Egito, existia uma íntima conexão entre a ciência da Geometria e o sistema religioso daquela sociedade, que esse sistema religioso incluía também a transmissão de instrução científica, de forma secreta e apenas após uma iniciação.

Esta analogia entre o sistema religiosa do Antigo Egito e a maçonaria operativa da Idade Média, mais do que esta enviesada referência na Lenda do Ofício, acabou por, já na fase da Maçonaria especulativa, dar origem a ritos de inspiração egípcia e teorias - a meu ver, fantásticas e inconsequentes - que colocam a origem da Maçonaria nos Antigos Mistérios Egípcios.

Como se vê, os rudes e menos incultos do que se poderia pensar trabalhadores da construção em pedra medievais não eram tão diferentes assim dos seus cultos e conhecedores de história e filosofia sucessores dos séculos XVIII, XIX e XX...

Fontes:

Wikipedia:
Euclides: http://pt.wikipedia.org/wiki/Euclides
Alexandria: http://pt.wikipedia.org/wiki/Alexandria
Templo de Salomão: http://pt.wikipedia.org/wiki/Templo_de_Salom%C3%A3o

The History of Freemasonry, Albert G. Mackey, Gramercy Books, New York

Rui Bandeira

5 comentários:

Alexandre disse...

Bom texto.

Nuno Raimundo disse...

Boas...

E não será por isso ( uma forma de o honrar) que o simbolo do Past-Master é o 47º Principio de Euclides?!

abr...prof...

Rui Bandeira disse...

@ Nuno Raimundo:

Não propriamente. A 47.ª proposição (e não 47.º princípio) de Euclides é mais comummente conhecida e denominada por... Teorema de Pitágoras (num triângulo retângulo, o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos. O símbolo do Past-Master é a imagem da demonstração geométrica deste teorema.
No texto "Pitágoras e a sua filosofia",de António Rocha Fadista, M.'.I.'., Loja Cayrú 762 GOERJ / GOB - Brasil, publicado no Portal Maçónico (http://www.maconaria.net/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=47), escreve-se, a dado passo:

"Este é o princípio matemático que levou à 47ª Proposição de Euclides, o matemático grego que divulgou o Teorema de Pitágoras, pelo qual o quadrado da hipotenusa de um triângulo retângulo é igual à soma dos quadrados dos dois outros lados, ou catetos. A demonstração deste teorema é a Jóia do Ex-Venerável mais recente de uma Loja Maçônica, em homenagem a Pitágoras, e que simboliza a doutrina científica e esotérica de sua Escola de Filosofia. O mesmo raciocínio usado na formulação do teorema acima, quando o triângulo retângulo é isósceles, (com catetos ou lados iguais) levou os Pitagóricos a descobrir os números irracionais, como, por exemplo, a raiz do número 2, que é igual a 1,4142,,,, (dízima periódica)."

Os anglo-saxões costumam designar este princípio matemático como 47.ª Proposição de Euclides. Nos países latinos, costuma ser denominado de Teorema de Pitágoras.

A joia de Past_Master, a meu ver, não homenageia nem Euclides, nem Pitágoras, antes assinala que este princípio matemático/geométrico (que permite facilmente estabelecer ângulos retos e, portanto, tirar esquadrias) foi ujm dos segredos do ofício preservados pelos maçons operativos - e seguramente não o menos importante...

A meu ver, esta joia de Past-Master é um indicador da origem da Maçonaria moderna: as corporações de construtores em pedra medievais, que guardavam, preservavam e transmitiam os segredos da Arte de bem construir (a Arte Real...) e zelavam para que só os seus membros tivessem esse conhecimento e para que o aplicassem corretamente.

Nuno Raimundo disse...

bOAS Rui...

Agradeço a explicação e o link.
Na altura em que escrevi " principio" não me recordava da palavra "proposição". e por isso escrevi "principio".
Principio esse que aprendemos quase todos na escola :)

abr...prof...

Diogo disse...

Quando se pensa na evolução científica que estava a evoluir tão rapidamente há dois mil anos e que quase foi soterrada por mil anos de Idadé Média...

Onde estaríamos hoje?