21 janeiro 2009

Lenda

Lenda é uma história romanceada. Normalmente partindo de um facto historicamente ocorrido ou referindo-se a um personagem que efetivamente existiu, constroi-se uma história mais rica, mais pormenorizada, mais interessante, que embeleza e enriquece o facto em que se baseia ou que engrandece ou particularmente qualifica o personagem que refere.

Na lenda parte-se da realidade e vai-se para além desta. Parte-se do que foi e chega-se ao que se gostaria que tivesse sido. Vai-se do real para o surreal (mais do que o real; para além do real). A lenda é sempre mais interessante, mais bela, mais apelativa à nossa imaginação e à nossa afetividade do que a realidade. A lenda é melhor do que a realidade. Só assim se justifica. Só assim existe. Só assim persiste.

A lenda é a melhor homenagem que a mente humana pode prestar à realidade. Um personagem valoroso, fora do comum, que se destaca, pode tornar-se um personagem lendário. Um acontecimento, porventura banal, quiçá trivial, mas que impressiona o intelecto, emociona a mente, desperta a imaginação, pode, com o passar do tempo, assumir uma dimensão lendária.

Porque a lenda vai para além da realidade, e portanto é melhor do que a realidade, mais bela, mais apelativa, mais memorável, facilmente a lenda perdura mais do que o real. E representa melhor os mais nobres ideais do homem. Todas as organizações humanas da maior relevância, mais tarde ou mais cedo assumem uma dimensão lendária, umas vezes coexistindo com a realidade, outras vezes apropriando-se desta e substituindo-a. Também a Maçonaria tem a sua dimensão lendária, com especial relevância e particular importância no seu ideário.

A moderna Maçonaria Especulativa baseia o seu simbolismo fundamental na Lenda de Hiram. Não vou aqui revelá-la, embora ela esteja profusamente publicada. A Lenda de Hiram tem a sua origem no episódio da construção do Templo de Salomão, relatado na Bíblia, no Livro dos Reis e também referenciado nas Crónicas. Conforme se pode ler num interessante trabalho de Ethiel Omar Cartes González, maçon da Loja Guatimozín 66, da Grande Loja Maçônica do Estado de São Paulo (Brasil), publicado na reconhecida Pietre-Stones, Revue of Freemasonry, na Bíblia é mencionado Hiram como Hirão de Tiro, (Reis 7, 13) ou Hurão Abiú sendo Hurão, meu pai, (Crônicas 2,13) filho de uma mulher viúva, filha de Dã e que, junto com ser um homem sábio de grande entendimento, sabia lavrar todos os materiais. Mas a Bíblia não credita a Hiram Abif o cargo de diretor dos trabalhos de construção do Templo e sim como um artífice encarregado de criar as obras de arte que iriam a causar admiração aos visitantes. (De passagem: é esta referência bíblica a origem da expressão filhos da viúva, com que os maçons se autodenominam.)

A Lenda de Hiram, trave-mestra dos ensinamentos transmitidos num dos graus da Maçonaria Azul e pretexto de desenvolvimentos em vários dos Altos Graus, sejam do Rito de York, sejam do Rito Escocês Antigo e Aceite, é indubitavelmente uma peça central do ideário maçónico. Apesar de todos lhe reconhecerem a natureza de lenda, a mesma é pretexto e instrumento e ferramenta para extrair e trabalhar muitos símbolos fundamentais da maçonaria, muitos ensinamentos a obter e desenvolver. Um maçon, após lhe ser transmitida a Lenda de Hiram, pode - e deve! - levar muitos anos a estudá-la, a analisá-la, a compreender os significados dos símbolos por ela mostrados ou sugeridos, e disso tirar grande proveito pessoal, moral e espiritual. A Maçonaria não é só - longe disso! - a Lenda de Hiram. Mas a Lenda de Hiram, e os ensinamentos que possibilita e proporciona, é muito, muitíssimo, na Maçonaria.

A propósito de lenda: também a Loja Mestre Affonso Domingues tem como trave-mestra da sua existência uma lenda: a lenda da Abóbada, incluída pelo grande Alexandre Herculano nas suas Lendas e Narrativas, na qual o escritor nos apresenta o personagem de Mestre Affonso Domingues (que historicamente é certo que foi um dos arquitetos do Mosteiro da Batalha), elevando-o à imortalidade lendária, com o episódio do fecho da abóbada da Batalha e a subsequente morte do velho Mestre, após três dias de isolamento sob esta, como prova de confiança de que a mesma não derrocaria e a emblemática tirada de que a abóbada não caiu; a abóbada não cairá. Também nós, esforçados maçons da Loja Mestre Affonso Domingues nos honramos muito do nosso patrono e da sua dimensão lendária e, confiantemente, declaramos que, em relação à nossa querida Loja, nem a abóbada cairá, nem as suas colunas abaterão, enquanto existirem, pelo menos, sete membros da Loja à face da Terra.

Rui Bandeira

20 janeiro 2009

História

A Maçonaria dá uma crescente atenção à sua História. Pela mesma razão que cada sociedade o deve fazer: os sucessos passados são a base da situação presente e as lições para as atuações futuras. Conhecer a sua História é beneficiar de uma aprendizagem duramente feita, ao longo de séculos. E uma parte dessa aprendizagem foi a conveniência de distinguir entre o que é História da Maçonaria e o que são histórias à roda ou inspiradas na Maçonaria. Esta aprendizagem fez-se na Maçonaria como se fez na sociedade. Ainda no século XIX, a História (com H maiúsculo), em resultado da cultura baseada no Romantismo da época, pouco mais era do que a narração de episódios épicos envoltos em véus tecidos pela imaginação, que realçavam as qualidades dos que na época eram incensados. A evolução da Ciência Histórica gradualmente habituou-nos à necessidade de fixação de factos e ações em função das provas documentais ou de outra natureza existentes. Por vezes caindo-se porventura no extremo oposto da recusa de dar por assente determinado facto ou ação, porque se não encontrava prova considerada bastante para o ter como verificado, em exagero que dá um novo e particular e enviesado significado à expressão Tribunal da História...

Da época em que a pesquisa histórica se enleava com a imaginação romântica, sobram-nos alguns mitos, que, à falta de comprovação, pelo menos nos estimulam os egos e a imaginação. O rigor histórico dos dias de hoje permite estabelecer, com algum pormenor e o devido rigor, o crescimento e a evolução da Maçonaria, desde a fundação da Premier Grand Lodge de Londres, em 1717, até à contemporaneidade. Neste período, já significativo, a tarefa do investigador histórico está facilitada pelo profuso acervo documental que os maçons se habituaram a deixar para a posteridade. Só o facto de ser rotineira, desde há séculos, a elaboração e guarda de atas registando os sucessos ocorridos nas reuniões das Lojas facilita enormemente o trabalho do investigador. Em muitos casos, poder-se-á até dizer que o problema porventura será já o oposto: o excesso de documentação, que dificulta, quiçá torna impraticável, normalmente, a análise de toda a documentação e a extração das pérolas de interesse histórico do meio da imensidão de registos de reuniões banais de gente vulgar tomando decisões corriqueiras.

Já quando se busca conhecer as origens históricas da Maçonaria as dificuldades são maiores. Os documentos e registos não abundam e rareiam mais à medida que se recua no tempo. O manuscrito mais antigo relacionado com a Maçonaria que se conhece é o Poema Regius, de finais do século XIV, um poema sobre os deveres morais, divulgado nos tempos modernos por Halliwell-Phillips numa comunicação, intitulada Da Introdução da Maçonaria em Inglaterra, apresentada na sessão de 1838-1839 da Sociedade de Antiquários. O manuscrito do poema é, por esse facto, também por vezes referido como Manuscrito Halliwell (ver aqui alguns elementos sobre o poema Regius, incluindo a transcrição do seu teor, em inglês arcaico e a sua "tradução" para o inglês moderno).

Através deste documento, confirma-se que as Lojas das corporações de construtores em pedra, os maçons que hoje designamos por operativos, existiam organizadamente no século XIV e, mais importante, que já nessa época, não se preocupavam unicamente com a guarda, transmissão e aprendizagem das técnicas de construção (algumas avaramente guardadas, como, por exemplo, a forma prática de tirar ângulos retos, imprescindível para que os edifícios fossem construídos com os cantos efetivamente a 90 graus e não ficassem com as paredes tortas, em aplicação da chamada 47.º Proposição de Euclides, a formulação geométrica do - agora - bem conhecido Teorema de Pitágoras), mas evidenciavam também interesse pelas regras de comportamento moral. Ou seja, o mais antigo documento relacionado com a Maçonaria mostra-nos que os maçons operativos já começavam a ser também especulativos, muito antes da transformação das instituições da Maçonaria Operativa na moderna Maçonaria Especulativa.

Os documentos históricos disponíveis e analisados indicam que a moderna Maçonaria Especulativa tem o seu início nos séculos XVII-XVIII nas Ilhas Britânicas, mediante evolução das Lojas das corporações de construtores em pedra pré-existentes. Os construtores (que não tinham só preocupações profissionais, mostra-nos o Regius) foram paulatinamente aceitando entre si elementos não pertencentes à profissão (senhores que os protegiam e que lhes davam trabalho, depois intelectuais que consideravam e que, pelo seu prestígio local, valorizavam as suas Lojas), originando uma surpreendentemente rápida transição da Maçonaria Operativa para a moderna Maçonaria Especulativa. Simbolicamente, marca-se o início formal desta através da constituição da Premier Grand Lodge de Londres, em 1717. Mas, na época, e antes, havia outras Lojas, para além das quatro Lojas de Londres fundadoras dessa Grande Loja, designadamente, na Escócia, na Irlanda e na região de York. Da Maçonaria pré-estabelecida na região de York reclama-se herdeira - e mais antiga Grande Loja do Mundo - a relativamente pouco conhecida (e não reconhecida pela UGLE e pela Maçonaria Regular) The Grand Lodge of All England at York.

Desde a fundação da Premier Grand Lodge, a evolução histórica da Maçonaria até aos dias de hoje é bem conhecida.

Rui Bandeira

19 janeiro 2009

Maçonaria: história, lenda e mitos

Quer para os seus cultores, quer para os seus detratores, a Maçonaria significa mais do que o seu dia a dia apresenta aos que nela buscam ferramentas para o seu aperfeiçoamento pessoal. A Maçonaria, instituição com centenas de anos, influenciou tanta gente de valor, tanto progresso da humanidade, tanta evolução da sociedade, que progressivamente ganhou uma aura - de prestígio, de honra, de valor, para os seus cultores; de perigo, de conspiração, de influência malfazeja, para os seus detratores - que supera, creio, a realidade. E esta é já muito gratificante!

A Maçonaria ultrapassa hoje os maçons e o seu conjunto. Confere-se-lhe poder e influência superiores aos que realmente detém. O principal objetivo da Maçonaria - o aperfeiçoamento moral e espiritual dos seus membros - parece demasiado modesto, quer em relação aos feitos passados, quer à alegada capacidade presente, quer aos (ansiados ou temidos, consoante os casos) propósitos futuros. Não duvido que a Maçonaria, pela elevada craveira dos seus milhões de membros, possua potencialidades de influenciar grandes mudanças e progressos (ou, segundo os seus detratores, diabólicos planos e retrocessos...). Interrogo-me se deseja desenvolver e aplicar, enquanto organização, essa potencialidade (ao invés de, formados, melhorados, mudados os seus membros de bons para melhores, ser cada um destes a contribuir, por si, para o progresso e a melhoria, material e espiritual, da sociedade em que se insere). Duvido, muito fortemente, que, se o desejasse, fosse uma opção sensata.

Mas, para o bem e para o mal, bem vistas a realidade e as ilusões, a Maçonaria é vista, por cultores e detratores, com uma dimensão e influência superiores às que efetivamente detém. Resulta, a meu ver, esta situação, do facto de a Maçonaria, pelas circunstâncias em que cresceu e se desenvolveu, ter constituído e constituir um ponto de convergência de três planos distintos: o plano histórico, ou real, o plano lendário, ou surreal, e o plano mítico, ou imaginário.

Esta convergência destes três planos, que em princípio se teriam por contraditórios e inconciliáveis, é, por exemplo, claramente aparente, quando se busca informação sobre as origens da Maçonaria: no plano histórico, a Maçonaria tem as suas origens nas associações medievais e pós-medievais de construtores em pedra, em especial segundo a forma e prática que assumiram nas Ilhas Britânicas; no plano lendário, a origem da Maçonaria remonta à época da construção do Templo de Salomão; no plano mítico, surgem-nos as mais variadas e fantasiosas origens: desde os Templários, aos sacerdotes e mistérios egípcios, ao culto mitraico, encontramos origens míticas da Maçonaria, para todos os gostos e paladares.

Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, esta mistura de planos inconciliáveis não constitui um mal, um defeito. Na minha opinião, é uma mais-valia. Porque permite que na Maçonaria confluam os planos da avaliação racional, do sonho e da imaginação. Tendemos a esquecer que a Razão, sendo obviamente importante, sendo essencial, não é tudo, que o Instinto, a Inteligência Emocional, a Imaginação, constituem também dimensões essenciais do todo que cada ser humano é e todos têm um papel na sua evolução, na sua melhoria, no seu aperfeiçoamento. Um ser exclusivamente racional tende a hipervalorizar a lógica e a ser frio, a esquecer o sentimento. A capacidade racional do homem deve ser complementada pelos outros planos e valências referidos, sob pena de a queda no hiperrealismo significar o enlear no imobilismo. Inerentes à evolução, ao progresso, pessoal e social, estão as capacidades de sonhar, de imaginar. Por cada mil sonhos loucos, um revelar-se-á, não só viável, como meritório; o produto da mais desbragada imaginação normalmente são castelos na areia, ou flutuando no ar, mas, de quando em vez, o jogo entre a mente humana e a sua imaginação faz com que surja uma situação em que o Mundo pula e avança, como bola colorida entre as mãos de uma criança...

Portanto, uma das riquezas da Maçonaria, a razão por que esta é tida com mais capacidade do que a que detém, é esta confluência em si dos três planos: histórico ou real, lendário ou surreal e mítico ou imaginário.

Nos próximos textos, procurarei referir-me a cada um destes três planos, em relação à Maçonaria.

Rui Bandeira

16 janeiro 2009

História banal

Mais uma história de sexta-feira. Como as anteriores, recebi-a por correio eletrónico, desconheço a sua autoria e editei-a para publicação aqui.

Uma sexta-feira, João, no caminho entre a escola e a sua casa, viu um outro garoto da sua turma, chamado Luís, também a caminho da casa dele, levando todos os seus livros. Estranhou, porque os alunos costumavam deixar os seus livros na escola. Devia tratar-se de um
marrão, um dos raros espécimes que estudava incessantemente e procurava ter sempre as melhores notas...

Conforme ia caminhando, João viu um grupo de rapazes correr em direção a Luís. Cercaram-no, empurraram-no, arrancaram todos os livros dos seus braços, atiraram-no ao chão. Os óculos de Luís voaram e caíram na relva a alguns metros de distância onde tudo se passava. Caído, Luís ergueu o rosto e João viu uma terrível tristeza nos seus olhos.

João correu até junto do colega, enquanto ele gatinhava, procurando os seus óculos. Pôde ver uma lágrima nos seus olhos. Enquanto lhe entregava os óculos, João disse-lhe:

- Aqueles tipos são uns idiotas! Deviam tratar da vida deles, em vez de se divertirem à custa dos outros.

Luís olhou João nos olhos e agradeceu-lhe - a ajuda e as palavras! Abriu-se um grande sorriso na sua face. Um daqueles sorrisos que realmente mostram gratidão.

João ajudou Luís a apanhar os seus livros e perguntou-lhe onde morava.

Por coincidência, moravam perto um do outro. Conversaram durante todo o caminho. João convidou Luís para ir jogar futebol com ele e os seus amigos nesse fim de semana. João aceitou e ambos passaram juntos boa parte do fim de semana, em renhidos jogos de futebol.

Chegou a segunda-feira e lá estava o Luís com aquela quantidade imensa de livros outra vez! João dirigiu-se a ele e disse-lhe:

- Caramba, rapaz, vais ficar realmente musculoso carregando essa pilha de livros assim todos os dias!

Luís simplesmente sorriu e entregou a João metade dos livros, para que este o ajudasse a transportá-los. Nos anos seguintes, João e Luís tornaram-se amigos muito unidos. Quando terminaram o secundário, sabiam que os seus caminhos se iam separar, mas esperavam manter a sua amizade. João ia tirar um curso de Desporto. Luís ia cursar Medicina. Luís era o orador que ia representar a turma na Cerimónia de Graduação dos Finalistas. João provocava-o constantemente, chamando-o de
marrão, o pensamento que lhe viera à cabeça a primeira vez que nele reparara.

Luís teve de preparar um discurso de formatura e João estava muito aliviado por não ser ele quem devia subir ao palco e discursar. No dia da Formatura, Luís estava ótimo, muito bem-disposto, embora fosse visível algum nervosismo, por causa do discurso.

Quando ele subiu ao palco, limpou a garganta e começou o discurso:

- A Formatura é uma época para agradecermos àqueles que nos ajudaram durante estes anos duros. Pais, professores, irmãos, talvez até um treinador, mas principalmente aos amigos. Eu estou aqui para lhes dizer que ser um amigo para alguém é o melhor presente que se lhe pode dar. Vou contar-lhes uma história...

João olhava para o seu amigo, sem conseguir acreditar, enquanto ele contava a história sobre o primeiro dia em que se tinham conhecido. Ele tinha decidido matar-se naquele fim de semana! Contou a todos como havia esvaziado o seu armário na escola, para que a sua mãe não tivesse que fazer isso depois de ele morrer e estava a levar todas as suas coisas para casa.

Neste ponto do discurso, Luís olhou João diretamente nos olhos e fez um pequeno sorriso, enquanto concluía:

- Felizmente, o meu amigo salvou-me de fazer algo irremediável!


Até àquele momento, João nunca se tinha dado conta da profundidade do sorriso que Luís lhe dera naquele dia. Olhou para os pais do Luís e viu-os também olhando para ele, também
sorrindo com a mesma gratidão.

A lição desta historieta é fácil: nunca subestime o poder das suas ações. Com um pequeno gesto, pode mudar a vida de uma pessoa. Para melhor ou para pior.

Rui Bandeira

15 janeiro 2009

O segredo maçónico esotérico

Nos textos anteriores, procurei dar uma noção sistematizada das várias vertentes do que se convencionou chamar de segredo maçónico e que eu designo por segredo maçónico exotérico, já que tudo aquilo a que respeita pode facilmente ser transmitido e apreendido. Procurei também indicar as razões da preservação de segredo sobre essas matérias. Mas, na minha opinião, o verdadeiro segredo maçónico vai muito além da discrição sobre identidades, modos de reconhecimento, rituais, cerimónias e trabalhos efetuados. Na minha opinião, o verdadeiro segredo maçónico, o que importa, o que releva, existe, não porque os maçons o queiram preservar, mas porque não o conseguem revelar. Porque é insuscetível de plena transmissão. Chamo-lhe segredo maçónico esotérico. Também há quem o refira como a Palavra Perdida. Em bom rigor, nem sequer é exclusivo dos maçons. A Maçonaria ensina e pratica apenas um dos métodos para a ele se poder aceder. Outros porventura haverá, desde a vertente mística à que privilegia a meditação ou a busca do equilíbrio perfeito.

Talvez, como muitas vezes sucede, quem melhor conseguiu mostrar o que é o verdadeiro segredo maçónico, tenha sido um Poeta, no caso, o grande Fernando Pessoa, neste fantástico poema.

É realmente incomunicável. E obviamente não tenho a prosápia de desmentir o Poeta. Mas posso tentar apontar a sua natureza, indicar a direção em que cada um deve olhar, sugerir o rumo da busca.

O verdadeiro segredo maçónico, aquilo a que muitos chamam de Palavra Sagrada ou, muito simplesmente, de Luz, é aquilo que o maçon aprende através do contacto com seus Irmãos, do convívio e busca de entendimento dos elementos simbólicos que a maçonaria profusamente coloca à disposição dos seus elementos, do método de análise, de trabalho, de esforço, de meditação, de extenuada conquista, passo a passo, degrau a degrau, patamar a patamar, sobre si próprio, a pulso desbastando suas imperfeições, despojando-se do interesse sobre toda a ganga material que obnubila os nossos espíritos, indo-se cada vez mais longe em épica viagem, com começo e fim no fundo de si mesmo e aí descobrindo a resposta que procura.

Esta busca, esta viagem, esta procura, tem um começo e um fim, mas nem um nem outro serão porventura os esperados. O começo será sempre depois do meio dia, a hora a que os maçons iniciam os seus trabalhos, quando cada um está efetivamente apto a começar a trilhar o caminho sem marcos, bordas ou fronteiras, que conduzirá não sabe onde. O fim, esse, tem hora marcada, aquela a que os maçons pousam as suas ferramentas, a meia noite. Como em muito do que tem valor, tão importante é o resultado como o trabalho para o obter, tão atraente é o destino, como o caminho que a ele conduz. E muito raramente o caminho mais curto entre o ponto de partida e o de chegada será uma reta...

Em bom rigor, duvido mesmo que haja apenas um verdadeiro segredo maçónico, um único segredo esotérico. Nesta altura do meu entendimento, propendo a considerar que cada maçon atinge a sua própria Luz - a deste com mais brilho, a daquele mais baça, a daqueloutro, qual bruxuleante chama de longínqua vela, mal se vendo -, cada maçon encontra e resgata a sua própria e individual Palavra Perdida - a de um bela e cristalina, a de outro sonora e estentória, a de um terceiro suave e quase inaudível murmúrio.

Cada um encontra o que procura e o que trabalha e se esforça por encontrar. Cada um encontra Segredos, Luzes, Palavras diferentes ao longo da sua busca. Porque esta nunca termina. Cada resposta encontrada dá origem a novas perguntas, nascidas de mais lúcida compreensão, em perpétua evolução e aprofundamento de compreensão. É por isso que tenho para mim que eu não posso, não consigo, não sei, partilhar a minha Palavra, com mais ninguém, nem sequer com o meu mais chegado Irmão. Não só porque não consigo descrevê-la em toda a sua extensão e complexidade, como porque o mero enunciar do ponto do caminho em que me encontro me abre novos horizontes de busca, para lá dos quais nem sequer sei se não terei de pôr em causa e de reformular tudo ou parte do que me levou a percorrer esse preciso caminho, quer ainda porque cada viagem, mesmo a do meu mais mais chegado Irmão, seguiu rumos diversos dos meus, levando a linguagens distintas, a conceitos diferentes, a complexas variantes.

Cada um, penso-o agora - no preciso instante em que isto escrevo -, em cada momento encontra diferente Palavra, vê diversa Luz, preserva variado Segredo, porque cada um viaja para destinos diferentes: cada um viaja até ao fundo de si mesmo e cada um é todo um Universo diferente do parceiro do lado.

Nessa viagem, nesse trabalho, nessa busca, cada um procura coisa diversa. Eu só posso definir o que neste momento busco. Já me reconciliei - há muito! - com a finitude da vida neste plano de existência, já abandonei, por estulta e estéril, a busca do imenso porquê, a mim nunca me interessou particularmente interrogar-me sobre o cósmico como. Por agora, desde há muito e não sei até quando, concentro-me na busca do sentido da Vida e da Criação. Tenho uma ideia rude e imprecisa desse sentido. Busco o melhor ângulo para obter mais Luz. Espero que consiga obter o Brilho suficiente para, através do sentido da Criação, entrever o Criador... E tudo isto eu - neste momento - busco, em fantástica viagem, sem outro veículo que não eu próprio, não consumindo outro combustível senão tudo aquilo de que me interiormente despojo, sem outro destino e caminho senão o fundo de mim mesmo. Porque é o conhecimento de mim mesmo, em todas as complexas vertentes que condicionam o meu Eu que me habilitará a conhecer o Outro, o Mundo e quem o criou e porquê e para quê e como. Eu sou a pergunta, a pergunta sem resposta, a pergunta buscando a resposta e, simultaneamente, a resposta contida na própria pergunta, que me levará a nova pergunta, que gerará nova resposta, em contínuo alargar de horizontes, que espero me permita entrever o que está para além do horizonte e contém todos os horizontes...

Algo já encontrei, algo já me ilumina, algo já consigo balbuciar. Mas não tenho ilusões: ainda não sei ler nem escrever, sei apenas soletrar...

Confuso, não é? Pois é! Eu bem avisei que o segredo maçónico esotérico é aquele que existe porque não se consegue transmitir... O Poeta bem o soube...

Rui Bandeira

14 janeiro 2009

Reserva sobre trabalhos de Loja

Os maçons comprometem-se também a não divulgar o teor concreto dos trabalhos de uma reunião, ritualmente realizada, de Loja. À primeira vista, parece excessivo. Sobretudo, tendo-se em conta que, de cada reunião, é elaborada uma ata que, depois de aprovada, é conservada na documentação e no arquivo da Loja. Por essa ata se alcança que assuntos foram tratados na reunião, que deliberações foram tomadas. E uma ata existe para ser consultada - senão, para quê fazê-la? Independentemente da delicadeza dos assuntos tratados, a ata é elaborada e preservada. Ainda há pouco tempo foi publicada neste blogue uma ata que registou os trabalhos da sessão de 18 de setembro de 1835 da Loja brasileira Philantropia e Liberdade. E essa ata registou, nada mais, nada menos, do que a preparação e planificação de um movimento revolucionário, a Revolução Farroupilha!

Porquê então guardar sigilo sobre os sucessos de uma reunião, ao mesmo tempo que se regista, e se guarda escrupulosamente esse registo, o que se passou, elaborando-se uma ata formal? Se é certo que o acervo documental constituído pelas atas das reuniões das Lojas maçónicas pode constituir e constitui precioso material de investigação histórica, nem sequer é esse o principal objetivo do registo em ata. Como acima escrevi, uma ata serve para ser consultada. Cem anos depois ou dois dias depois...

Esta aparente incongruência esclarece-se se tivermos a noção de que uma Loja maçónica é uma organização - que deve registar os seus eventos e deliberações mediante atas, até em obediência às leis civis e em cumprimento dos bons costumes sociais -, mas uma organização com uma característica bem distintiva: é uma fraternidade. Enquanto fraternidade, cultiva e desenvolve especialmente as relações de confiança mútua entre os seus elementos, em estrito espírito de igualdade, sem prejuízo dos graus e qualidades de cada um e dos particulares deveres e meios que cada grau ou qualidade confira a quem os detém.

Enquanto organização, uma Loja maçónica cumpre as regras civis e, portanto regista quem esteve em cada reunião, o que se tratou nela, o que ficou decidido. E guarda e preserva esse registo, que, a qualquer momento, pode ser necessário nos mesmos termos em que qualquer ata de qualquer reunião de qualquer associação ou sociedade pode ser necessária.

Enquanto grupo fraternal, procura-se que cada elemento se sinta, no interior do grupo, completa e absolutamente livre de expressar as suas ideias, opiniões, projetos, preocupações, sem constrangimentos de qualquer espécie. O espaço de uma Loja em reunião ritual é um espaço em que todos e cada um podem baixar completamente as suas defesas e guardas, em que não necessitam de manter a sua "máscara social", em que todos e cada um podem ser e comportar-se e aparecer como realmente todos e cada um são, com suas forças e fraquezas, virtudes e defeitos. Porque, naquele espaço, todos e cada um sabem que devem aos demais a mesma tolerância que dos demais recebem. Porque todos e cada um sabem que todas as opiniões, ideias, contribuições, são analisadas e consideradas pelo seu valor intrínseco, sem argumentos ad hominem, sem acrescentar ou retirar valia à opinião expressa em função de quem a expressa.

Enquanto grupo fraternal, cultiva-se a absoluta confiança mútua, a cooperação, o auxílio a todos na medida das possibilidades de cada um. Procura criar-se um laço forte e duradouro entre todos. Que por isso se consideram Irmãos. Ao criar-se um laço desta natureza, está-se a criar um espaço onde a crítica é aceite, porque a aceitação existe ainda que haja lugar a crítica. Preserva-se um espaço de cumplicidade imensa, em que cada um está à vontade junto dos demais, porque confia nos demais como nele mesmo.

Num espaço assim, de Fraternidade, pode desabrochar sem peias a Liberdade. A Liberdade de opinar, de arriscar testar uma ideia, sem medo de que ela seja apoucada por disparatada. Se o for, assim será considerada. Mas isso não diminui quem a teve. Porque se sabe que ela só foi expressa porque se estava à vontade e porque é em espaços assim que livremente se pode testar a real valia de ideias, opiniões, propósitos. E aperfeiçoar. E limar arestas. E - quantas vezes! - transformar uma balbuciante e hesitante ideia num projeto sólido e com mérito, através do contributo de todos. Um espaço assim é potencialmente um espaço de criatividade e cooperação sem paralelo - porque ninguém teme o juízo, ou a troça ou o apoucamento dos demais. Porque todos sabem que ninguém tem só excelentes ideias, que só expondo todas - as péssimas, as sofríveis, as regulares, as boazinhas, enfim, todas - é possível peneirar delas as que têm efetiva valia. Porque todos sabem que um bom projeto só raramente é produto do valor de apenas um qualquer iluminado, antes resulta da concatenação de ideias, que se acumulam e organizam e dão forma, muitas vezes diferente no final do que fora o lampejo inicial.

Num espaço assim não se tem medo de ser ridicularizado, apoucado, magoado. Mesmo que se use o direito ao disparate. Num espaço assim, sabe-se que o juízo sobre o valor de cada um não depende de uma excelente ou uma péssima ideia, antes resulta do Todo que cada um é e que os demais vão conhecendo, cuja evolução vão constatando.

Um espaço assim é um espaço de intimidade intelectual sem paralelo. E só subsiste porque blindado numa confiança mútua absoluta. O que se diz ali, fica ali. Seja a ideia do século, seja o mais profundo disparate. Quer uma, quer outro, são ali vistos na correta perspetiva, de procura de contribuição para a melhor decisão do grupo, de experimentação, de sugestão, sem reservas, sem cuidados, sem temores de ridículo ou de crítica.

Um espaço assim propicia a mais livre da Livre Expressão do Pensamento. Porque livre da necessidade da pior das censuras, a autocensura. Um espaço assim, baseado na confiança, na Fraternidade, só pode subsistir se todos e cada um souberem que o à vontade em que se expressam não é traído por juízos exteriores feitos por quem, descontextualizando o paradigma em que as ideias são expostas, possa vir a apoucar a ideia, o pensamento, a opinião.

É para preservar esse espaço intimista de Liberdade que se preserva o que de concreto se passa numa reunião maçónica. Porque cá fora julga-se segundo os critérios cá de fora, não se atendendo às condições que se criam para que todas as contribuições sejam bem-vindas. É preciso garantir que todos e cada um possam, no decorrer de uma reunião ritual de Loja, expressar sem quaisquer constrangimentos, de qualquer natureza, as suas ideias e convicções e opiniões. Para que essa Liberdade absoluta exista, mister é que todos e cada um saibam que o que se passa em Loja fica em Loja. E portanto, cada um guarda cuidadosamente para si o que em Loja se passou. Quem quiser saber e tenha o direito a saber... consulte a ata!

Rui Bandeira

13 janeiro 2009

Reserva sobre rituais e cerimónias

Os maçons estruturam o seu trabalho em Loja mediante rituais. A abertura e o encerramento dos trabalhos são sempre executados da mesma forma, a maneira como, durante os trabalhos, cada um fala ou se movimenta em Loja está tipificada, etc.. Os maçons assinalam também diversas situações, individuais ou coletivas, consideradas significativas com Cerimónias meticulosa e ritualmente executadas. Assim sucede com a Iniciação, a Passagem, a Elevação, a Instalação, a Consagração de Loja, etc..

A preservação do segredo sobre os rituais e cerimónias é uma das obrigações dos maçons. Quanto aos rituais, porque são parte integrante da identidade da instituição, que só fazem sentido no âmbito da mesma. A pior coisa que se pode fazer a um conceito, uma informação, uma declaração, é descontextualizá-la. A descontextualização atraiçoa o espírito, o propósito, o aspeto do conceito, da informação, da declaração. Torna-o, ou pode torná-lo, inentendível. Desvaloriza-o. Quiçá, submete-o a ridículo. No entanto, no seu devido contexto, os rituais maçónicos, não só são entendíveis, como são fonte de estudo e iluminação. Não só têm valor, como são fonte de união. Não só são seriamente tomados e executados, como são fonte de fortalecimento do espírito de grupo e da fraternidade entre os maçons.

Os rituais só fazem plenamente sentido se e quando executados no local e pela forma próprios, por e perante quem está apto a compreendê-los. Expô-los aos olhares profanos seria permitir que juízos turvados pela ignorância, obnubilados pelo preconceito, prejudicados pela distância, extraíssem conclusões erradas, perfunctórias, vãs.

Quanto às cerimónias, acresce ainda um outro motivo para o seu teor e o seu desenrolar ser reservado não apenas aos maçons, mas aos maçons do grau em que são executadas, ou superior. É que é importante preservar o fator surpresa, em relação àquele ou àqueles em benefício de quem cada cerimónia é executada. A Maçonaria destina-se a propiciar um terreno apto para o aperfeiçoamento moral e espiritual dos seus membros. Coloca ensinamentos, princípios, máximas, à disposição destes. Faseadamente. Um pouco de cada vez, para que os ensinamentos, os princípios possam ser detetados, descobertos e interiorizados pelos interessados. A Maçonaria nada ensina. Apenas possibilita que se aprenda. Mas essa aprendizagem não é efetuada apenas com o recurso à memória e ao elemento racional. Essa aprendizagem, essa melhoria, esse avanço, resulta também da marca deixada em cada um, através da respetiva inteligência emocional e seu desenvolvimento. Daí que as noções obtidas não sejam apenas adquiridas, mas realmente entranhadas. Daí que se dê valor ao tempo, ferramenta indispensável à construção da melhoria de cada um. Todo este processo se desencadeia através da disponibilidade de apreensão de algo que se desconhece. Daí a importância do fator surpresa. Muitas vezes o que se transmite não é novo. Já foi centenas de vezes lido, milhares de vezes visto. Mas nunca foi visto ASSIM, nunca foi contextualizado DESTA forma, nunca tinha sido introduzido COMO tal.

O maçon a quem uma cerimónia é dedicada é sempre o centro da mesma. Para que a viva e não apenas a ela assista. O objetivo é VIVER a cerimónia. Não revivê-la. Por isso a deve desconhecer antes de dela beneficiar. Por isso devem as cerimónias maçónicas permanecer secretas, de conhecimento reservado a quem o deve ter - e só a esses.

Mas há dezenas de versões de rituais publicados. através dos quais se pode ler o texto de diversas cerimónias. Qual então o interesse de continuar a preservar o sigilo sobre rituais e cerimónias? Duas razões avanço: em primeiro lugar, muito do que está publicado não é já atual. Pode ter semelhanças com o que atualmente se pratica, mas também tem diferenças, algumas significativas. Em segundo lugar, um ritual, uma cerimónia, não é - longe disso! - apenas um texto que se lê ou recita. É muito mais que isso. É movimento, é entoação, é gesto, é interpretação. Muito do que ritualmente é executado não está escrito. É aprendido pela observação, aperfeiçoado com o auxílio dos que antes aprenderam a executar. Por isso é importante o trabalho de aperfeiçoamento ritual de uma Loja. Como um meio. Nunca um fim em si mesmo.

Preservar o segredo quanto a rituais e cerimónias é preservar a essencialidade da cultura maçónica, da sua diferença em relação ao mundo profano. É preservar o método de transmissão e apreensão de conhecimentos. É, enfim, proteger o cerne da Maçonaria.

Os rituais e cerimónias maçónicos, sendo reservados aos maçons, não têm nada de especial, a não ser o cuidado em que sejam um meio eficaz de transmissão de noções, mais uma ferramenta do método maçónico de aperfeiçoamento. Nada têm de censurável ou perigoso. Em nada contendem com as normas do Estado ou com os princípios da Sociedade. Por isso, os maçons também preveem e organizam, de quando em vez, cerimónias a que chamam de brancas, ou seja, abertas a profanos, também executadas ritualmente, através das quais os profanos - e, em primeiro lugar, as profanas com quem partilhamos as nossas vidas... - podem aperceber-se de como decorre uma reunião maçónica. O princípio é sempre o mesmo: os maçons reservam para si o que só para si deve ser guardado, mas não têm qualquer problema em mostrar aos demais o que extravasa do núcleo estrito de reserva, nem em demonstrar como fazem.

Afinal de contas, num mundo ideal, todos seríamos maçons...

Rui Bandeira