30 outubro 2013

Lavagem solidária e cómoda


A associação CAIS desde 1994 que vem efetuando um assinalável trabalho de apoio à reinserção social de sem-abrigo.

O mais conhecido projeto desta associação é a revista com o mesmo nome, CAIS, cuja forma de distribuição é, a meu ver, exemplar no auxílio à recuperação da dignidade de quem , por erros próprios ou desafortunados golpes do destino, caiu numa situação de desamparo e exclusão social. A revista é exclusivamente vendida por sem-abrigo e outras pessoas em risco, mediante a assunção de rigoroso compromisso de cumprimento de regras de conduta, entre as quais a venda da revista sempre devidamente identificado como vendedor autorizado pela CAIS, manutenção de higiene e limpeza pessoal e de vestuário e renúncia à mendicidade.

O preço de capa da revista CAIS são dois euros e 70 % dele reverte para o vendedor. Habituei-me a adquirir as edições da revista que vão sendo publicadas, como uma pequena e insignificante forma de contribuir para a reinserção de quem caiu fundo e se tenta reerguer. Aprecio fundamentalmente a DIGNIDADE da forma de auxílio: não se dá, não se faz caridadezinha, não se tem a postura de ajuda ou dádiva ao pobrezinho; fornece-se um meio, um apoio para que alguém (muito) necessitado possa, pelo seu trabalho, esforçado e honesto, obter uma remuneração - e não esmolas. A meu ver, tão ou mais importante do que o provento material obtido  (obviamente indispensável) é a recuperação da Dignidade que se proporciona.

A associação CAIS prossegue agora um outro meritório projeto, o CaHO, ou Programa Capacitar Hoje, no sentido da integração, em contexto laboral, de pessoas em situação extrema de fragilidade social. Foi criada a Bolsa de Trabalho CAIS, especificamente dedicada à formação e especialização profissionais. Os beneficiários deste projeto de inserção na vida nativa são pagos à tarefa, recebendo uma justa remuneração pelo trabalho desempenhado. Iniciou-se o projeto com as valências de lavagem manual e aspiração de automóveis e de engraxadores de sapatos.

Cada candidato ao programa recebe uma formação profissional de base, de 50 horas, que inclui aspetos essenciais para quem necessita de recuperar o seu espaço na sociedade: (1) Saber ser ser um profissional - direitos, deveres e responsabilidades; (2) Saber estar - treino de competências pessoais e sociais; (3) Saber fazer - formação profissionalizante, dentro das áreas de oferta da Bolsa de Trabalho CAIS.

Mais uma vez, importa sublinhar que não se faz assistência ou caridade, proporciona-se capacidades e meios de recuperação da Dignidade de cada um prover à sua subsistência através do seu trabalho. 

O projeto é patrocinado por algumas empresas e instituições. Mas, sobretudo, é a demonstração de que a Solidariedade só faz sentido se acompanhada - sempre - do respeito pela dignidade de quem transitoriamente está na mó de baixo.

Está já em execução, na zona de Lisboa, a valência de lavagem manual e aspiração de carros, organizada de uma forma cómoda e a preço razoável para o consumidor. Empresas e particulares podem encomendar a lavagem manual de veículos, com o custo de onze euros por veículo, ou a lavagem manual e aspiração pelo custo por veículo de quinze euros, em ambos os casos com IVA incluído e entrega de fatura.

Os profissionais formados e enquadrados pela CAIS deslocam-se, com o equipamento necessário, onde estiver(em) o(s) veículo(s) a lavar e aspirar e garantem que o serviço de limpeza, que é executado em uma hora a hora e meia, é realizado sem sujar o local e sem desperdício de água.

Cada lavador recebe 60 % do total faturado com o seu trabalho.

Resumindo: prático, cómodo, ecológico, a preço razoável e, sobretudo, justo e SOLIDÁRIO.

Para agendar o serviço, deve-se contactar a CAIS Lavagem Auto através do telefone número 218 369 000 ou do endereço de correio eletrónico caisfaz@cais.pt.

Sugiro a todos os que residem ou trabalham na zona de Lisboa que tomem nota e, sobretudo, utilizem estes contactos. Eu já tenho este número de telefone na memória do meu telemóvel e tenciono usá-lo muitas vezes. Fico feliz por dar o meu contributo, enquanto cliente e consumidor a um projeto inteligentemente solidário - e com a vantagem de finalmente o meu carro deixar de ser o mais sujo das redondezas...

Os elementos para elaboração deste texto, bem como a imagem que o ilustra, foram recolhidos em www.cais.pt

Rui Bandeira  

23 outubro 2013

O maçom, a vida e a morte



Só pode ser admitido maçom regular quem seja crente num Criador, qualquer que seja a sua conceção Dele, e creia na vida para além desta vida. Só assim faz sentido o processo iniciático maçónico, só assim é profícuo o labor de análise, interpretação e aprofundamento da simbologia maçónica, alguma dela diretamente baseada em elementos extraídos de textos de natureza religiosa.

No seu processo de construção de si mesmo segundo o método maçónico, o estudo, a meditação, a associação livre, a descoberta de significados dos significantes que são, afinal, os símbolos, o maçom, se bem fizer o seu trabalho, inevitavelmente que nalgum momento se confrontará com a busca do significado da Vida, do seu lugar no Mundo e na Vida, com a Vida ela mesma e com a morte do seu corpo físico.

Se bem faz o seu trabalho, o confronto com a morte física, à luz da sua crença na vida para além da vida e dos elementos colhidos nos seus estudos simbólicos, algo de muito positivo lhe traz: a perda do medo da morte! Pausada, calma e profundamente analisada a questão, quase que intuitiva é a conclusão de que a morte é simplesmente parte da vida, do percurso que efetua a centelha primordial que nos anima e que é o melhor de nós, que é, afinal o essencial de nós, a Vida em nós, que permanece para além da deterioração, desativação e destruição do invólucro meramente físico a que chamamos corpo. Porventura adquirirá mesmo a noção de que essa morte física é indispensável ao processo vital, à essência da vida, que é feita de energia e transformação e mudança.

A perda do medo da morte é uma imensa benesse conferida àquele que dela beneficia, por isso que o liberta para apreciar plenamente a Vida, vivê-la em pleno, colocando nos seus justos limites tudo o que de bom e tudo o que de mau se lhe depara.

A perda do medo da morte propicia enfim a Sabedoria para apreciar a Vida da melhor forma que se tem para tal: vivendo-a, sem constrangimentos, sem medos, sem dúvidas, sem interrogações sobre quanto durará o bem de que se desfruta, quanto se terá de suportar até superar o mal que se atravessa. É a perda do medo da morte que nos ilumina para o essencial significado da Vida: ela existe para ser vivida, para ser utilizada e modificada (na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma, disse-o, há muito, Lavoisier...), força perene essencial que existe e prossegue existindo através da sua contínua transformação.

A perda do medo da morte assegura-nos a Força para continuamente persistirmos na nossa melhoria, na nossa purificação, não porque interesse ao nosso corpo físico, mas porque disso beneficia a nossa centelha vital, que melhor evoluirá quanto mais beneficiar do que aprendemos, do que acrescentarmos eticamente a nós próprios e portanto a ela. A nossa melhoria, o nosso aperfeiçoamento ético liberta a nossa consciência para alturas que as grilhetas do egoísmo, da materialidade, dos vícios e paixões impedem que atinja. É a nossa Força nesse combate que constitui o cais de partida da nossa identidade para a viagem possibilitada pela purificação da nossa essência, que terá lugar após a libertação do peso do nosso corpo físico (será isto o Paraíso, a Salvação?). Pelo contrário, a insuficiente libertação da nossa essência do peso do vício e das paixões, do Mal enfim, inibirá essa nossa essência de subir tão alto e ir tão longe como poderia ir se liberta, quiçá limitando o valor futuro da nossa vida que permanece, quiçá impondo a continuação de esforços de purificação e transformação (será isso o Inferno, a Perdição?)

A perda do medo da Morte permite-nos enfim desfrutar plenamente da Beleza da Vida - sem constrangimentos, sem temores, sem interrogações. Como diz a canção, o amor poderá não ser eterno, mas que seja imenso enquanto dure. Apreciar a Beleza da Vida sem temer ou lamentar a mudança, que algum dia inevitavelmente ocorrerá, permite a suprema satisfação de sentir realmente toda a beleza que existe na Beleza, toda a vida que há na Vida. Verdadeiramente. Um segundo que seja que se consiga ter deste clímax vale por toda uma vida...

Encarar a morte à luz da Vida e, portanto, deixar de a temer, liberta o nosso Ser para além dos constrangimentos da materialidade, reduz o Ter à sua real insignificância, dá-nos finalmente condições para, se tivermos atenção no momento preciso e irrepetível que antecipadamente desconhecemos quando surgirá, podermos entrever a Luz - a Luz da compreensão do significado da Vida e da Criação, da sua existência e da direção e objetivo do seu Caminho. Poucos, muito poucos, ainda que tendo trabalhado bem, ainda que persistentemente tendo polido sua Pedra, têm a atenção focada na direção certa quando esse inefável e intemporal momento passa. Esses são os afortunados que de tudo se despojaram e afinal tudo ganham ainda neste plano da existência. Esses passam verdadeiramente pelo buraco da agulha, porque o peso das suas paixões é inferior ao de uma pena e nada os distraiu. Esses aproveitam a Vida tão plenamente que o comum de nós nem sequer suspeita da possibilidade de existência desse aproveitamento. Esses, sim, são templos vivos onde se acolhe o mais essencial do essencial: tão só e simplesmente, a essência da Vida (será isto afinal o elo ao divino?).

O maçom que faz bem o seu trabalho perde o medo da morte e pode viver plenamente a Vida. Mais não lhe é exigível. O resto que porventura venha, se vier, vem por acréscimo...         

Rui Bandeira

16 outubro 2013

Os construtores da Utopia



Desde que, no século XVI, Thomas More inventou a palavra e dela fez título de uma das suas obras que se designa por Utopia a sociedade ideal, perfeita.

Em termos sociais, os maçons procuram contribuir para a construção dessa Utopia. Fazem-no desde logo procurando melhorar a qualidade dos materiais de que se fazem todas as sociedades: os homens, suas ideias e suas ações.

Nenhuma sociedade organizada, qualificada e funcionando com um exigível nível mínimo de organização, qualidade, liberdade e eficiência pode assentar em pessoas desqualificadas, seja em termos de conhecimentos e preparação, seja do ponto de vista da Moral e dos Valores inerentes a uma sã, agradável e produtiva vida em comum.

Não há Valores sociais que se fundem perenemente em homens de baixo caráter e inferiores qualificações pessoais e relacionais. Homens apenas primários, sem capacidade para ver e agir para além dos seus interesses pessoais egoísticos e imediatos não geram nem acalentam valores essenciais a qualquer sociedade eticamente relevante. 

As sociedades são compostas por pessoas. Quanto melhores forem estas, melhores podem ser as Sociedades, os seus valores, os seus níveis de organização e cooperação. Por isso, ao construir-se a si próprio, ao melhorar-se a si mesmo, cada maçom está também a contribuir para a melhoria da sociedade em que se insere, a favorecer um pequeno, quiçá quase insensível, mas sempre significante, avanço da sociedade em que se insere na construção da Utopia.

Mas a Utopia não se constrói apenas com os materiais, as pessoas. Essa construção necessita também de ferramentas, os valores. Neste campo, muito se avançou, na parte mais desenvolvida do Mundo: a Liberdade é reconhecida como indispensável à existência de uma Sociedade digna dos seus cidadãos; a Igualdade é uma aspiração que se busca concretizar mais e mais; a Fraternidade emerge como uma condição indispensável à coesão social; a Tolerância emerge cada vez mais como uma necessidade; a Justiça consolida-se como uma essencialidade; a Solidariedade aparece como um elemento indispensável à reação comum ao infortúnio, ao cataclismo ou simplesmente à adversidade. Paulatinamente, estes e outros essenciais valores adquirem o estatuto da naturalidade e ascendem ao patamar da indispensabilidade. Mas muito ainda há e haverá ainda a fazer, para que esses valores sejam efetivamente para todos tão naturais como o ato de respirar.

Porém, a construção social não se basta apenas com bons materiais e sólidas ferramentas. Há que limpar o espaço, que afastar tudo o que prejudique a edificação que se busca. Há, assim, que lutar com, afastar, remover, os preconceitos que tolhem o avanço comum - mas sem os substituir por novos preconceitos, quiçá de sinal contrário. Também neste campo muito se avançou. Também aqui muito mais há ainda a fazer. O racismo perdeu o estatuto de naturalidade que ainda há cerca de meio século (tão pouco tempo ainda; não mais de duas gerações...) detinha em sociedades tão importantes como, por exemplo, alguns Estados dos Estados Unidos. Mas subsiste teimosamente em muitas mentes e manifesta-se ainda insidiosamente em demasiadas situações e abertamente numas quantas delas! A igualdade entre sexos evoluiu notavelmente no último maio século, mas ainda é, manifestamente, um valor ainda frágil, que muitos afastam sem rebuço à menor dificuldade social (basta ver as diferentes taxas de desemprego e os não coincidentes níveis de remuneração entre os dois sexos). A Igualdade afirmou-se quase universalmente como princípio absoluto na teoria, mas é muito insuficientemente ainda na realidade concretizada na prática, continuando - infelizmente! - ainda a ser válida a frase de O Triunfo dos Porcos, de George Orwell, de que "Todos são iguais... mas há alguns mais iguais do que os outros". Os fundamentalismos existem, estão à vista de todos e não são extirpáveis por decreto.

 Muito se andou, mas muito caminho está ainda por percorrer, se se quiser ficar perto de ver ao longe uma Sociedade que possa aspirar a comparar-se levemente com a Utopia... E esse caminho tem de ser percorrido passo a passo, incansavelmente, inabalavelmente, persistentemente, por cada um que aspira à Utopia.

Ao dedicarem-se ao seu aperfeiçoamento, os maçons fazem esse caminho, dão o seu contributo à Sociedade para a evolução desta. O que cada um dá é ínfimo, quase imensurável, no contexto da imensidão do que é necessário. Mas o conjunto do que todos proporcionam possibilita o avanço, ajuda a que a evolução se torne visível.

Os maçons são, por natureza, construtores da Utopia. Não se afirmam, nem pretendem ser os únicos. Todos não são demais, que a tarefa é enorme e prolongada!

Rui Bandeira 

09 outubro 2013

Reflexão



No século XVIII, quando se expandiu a Maçonaria Especulativa, esta seguia e divulgava os princípios do Iluminismo. A Maçonaria foi então um farol que apontou o caminho da evolução social, da conceção laica, livre, igual, fraterna e tolerante do mundo, da sociedade e do lugar nela do Homem. 

O pensamento escolástico é substituído pela Ciência Experimental; racionalismo e empirismo substituem o pensamento arcaico apenas fundado nas interpretações teológicas dominantes; Locke teoriza a Tolerância como valor social; emerge o reconhecimento e proteção dos direitos humanos; o absolutismo é substituído pela submissão à Lei; a soberania por direito divino é substituída pelo conceito de que a soberania pertence ao Povo e deve ser exercida em nome do Povo, para o Povo e pelos representantes designados pelo Povo; emerge e triunfa a noção de que as sociedades devem prezar e preservar a Liberdade, assegurar a Igualdade, possibilitar a vivência em Fraternidade; o princípio da separação de poderes triunfa. Em toda esta evolução os maçons deram o seu contributo.

Trezentos anos depois, o mundo e a sociedade são radicalmente diferentes em relação ao que eram no início do século XVIII. Os valores que a Maçonaria adotou implantaram-se progressivamente em toda a sociedade e - felizmente! - hoje são essencialmente valores da sociedade, não de qualquer estrutura social, Maçonaria incluída.

Trezentos anos depois, verificando-se que o essencial do ideário maçónico venceu e está institucionalizado no mundo desenvolvido, inevitavelmente que surge a interrogação: continua, nos dias de hoje, a Maçonaria a fazer sentido? Não será hoje uma instituição ultrapassada pelo sucesso do seu ideário, transitada da modernidade no passado para o arcaísmo no presente? 

Em termos sociais, só o que mantém utilidade e sentido permanece. Tudo o que não preenche já o requisito da necessidade, do interesse, inevitavelmente estiola, fenece, cai em desuso, desaparece. Ou então transforma-se, assegurando a sua existência e pujança pela assunção de valores e interesses socialmente úteis e necessários no momento presente. Qual a função da Maçonaria hoje? Apenas a defesa dos valores que o tempo e a evolução social consagrou? Apenas uma instituição "anti-reviralho"? Ou será que a matriz genética da Maçonaria lhe permite vislumbrar, aprofundar, consensualizar novos caminhos ainda por explorar ou desenvolver, valores a implementar? Se assim é, quais os caminhos a que dar atenção, como consensualizar a direção a tomar?

Os tempos de hoje são radicalmente diferentes dos de há trezentos anos, de há duzentos anos, de há cem anos, mesmo de há cinquenta anos. As sociedades complexizaram-se visivelmente. A comunicação e os meios de a efetuar evoluíram, modernizaram-se, democratizaram-se, vulgarizaram-se. Onde antes havia poucos meios apenas ao alcance de uns poucos privilegiados, hoje tudo está praticamente à disposição de todos. A informação hoje é tudo menos escassa. Pelo contrário, começamos a ter dificuldade em selecionar, em determinar de entre a abundante cascata que incessantemente jorra sobre nós o que verdadeiramente interessa e o que é dispensável, o que é fundamentado e o que é apenas boato, palpite ou mesmo patranha. A segmentação de interesses e a extrema variedade de temas para os múltiplos interesses pessoais instalou-se. A informação hoje é multipolar e mundividente, cabendo ao indivíduo - a cada indivíduo - selecionar o que lhe agrada, o que lhe interessa, o que pretende. Neste circunstancialismo, qual o papel da maçonaria? Como pode e deve comunicar? Com que meios? Seguindo que estratégias? Procurando assegurar que objetivos?

Trezentos anos depois, estamos no fim do caminho, chegámos a uma encruzilhada ou simplesmente somos nós que temos de desbravar o caminho para que a Humanidade chegue aonde ainda não imaginou sequer poder chegar? O nosso - dos maçons, da Maçonaria, mas também da Humanidade - caminho chega até ao horizonte ou vai para além dele?

Tudo isto são interrogações que hoje se abrem à reflexão dos maçons e que é bom que os maçons se coloquem, em reflexão individual ou em análise coletiva, mas sempre plural.  

Por mim, penso que há ainda muito a fazer, que os sonhos e anseios do ideário maçónico estão ainda por completar. Quanta intolerância ainda campeia! Como são ainda vulneráveis muitos dos valores que, muitas vezes ligeiramente, consideramos solidamente implantados! E continua a haver - sempre continuará, acho - espaço e meio para cada um de nós poder melhorar e contribuir para a melhoria da sociedade. 

Mas também penso que as interrogações que atrás coloquei devem ser postas e que é tempo de lhes darmos atenção, de estudarmos os seus contornos e de buscarmos as respostas mais adequadas para cada uma delas. Nesse aspeto, a Maçonaria tem em si mesma uma caraterística organizacional que constitui uma poderosa ferramenta: a sua estrutura nuclear, com plena autonomia de cada Loja e, dentro destas, com plena aceitação dos caminhos e reflexões individuais de cada um. Isto permite que todas as interrogações acima colocadas - e muitas outras - sejam tratadas de formas diferentes, por gente diferente, em tempos diferentes, com diversas perspetivas. Cada Loja escolhe ou naturalmente dedica-se a um pequeno aspeto de um problema. Cada maçom interroga-se sobre o que lhe chama a atenção. Umas e outros buscam caminhos, propõem soluções. Cada Loja por si. Cada maçom em si. Em aparente desorganização e descoordenação. Mas é precisamente essa desorganização que se revela, afinal, muito bem organizada, na medida em que permite e gera o máximo de liberdade na reflexão dos grupos e dos indivíduos. Desse cadinho, a seu tempo emerge uma ideia que se espalha. Das ideias que se espalham, algumas fortalecem-se. Das que se fortalecem, algumas atingirão o patamar do consenso. E assim as ideias e os valores que o tempo presente reclama emergem e fazem o seu caminho, em sociedades modernas cada vez mais complexas.

Daqui a outros trezentos anos, quem então viver e se interessar fará o balanço sobre o êxito dos trabalhos, pistas, soluções e caminhos que agora efetuamos, buscamos, encontramos e prosseguimos.

Rui Bandeira

02 outubro 2013

O Vigésimo Segundo Venerável Mestre


Foi o primeiro maçom iniciado já no século XXI que assegurou o ofício de Venerável Mestre da Loja Mestre Affonso Domingues. Cedo se destacou como um elemento interessado, muito válido e dinâmico. Rapidamente conquistou a confiança da Loja e viu serem-lhe confiados diversos ofícios, que sempre cumpriu a contento. Conhecia de experiência feita os deveres dos ofícios burocráticos (indispensáveis ao funcionamento da Loja) e dos ofícios rituais. Fora iniciado ainda jovem e atingia o veneralato no auge da vida. 

O Vigésimo Segundo Venerável Mestre da Loja Mestre Affonso Domingues foi talvez o maçom que mais bem preparado foi e estava para assumir o ofício de dirigir a Loja quando tal lho foi solicitado pelo conjunto dos obreiros, em unânime eleição ocorrida em julho de 2011. 

Os mais veteranos reconheciam-lhe a preparação, as capacidades, a dinâmica, o mérito e o espírito de liderança e gostosamente o acompanharam e auxiliaram. Os mais jovens elementos da Loja viam-no como um par que de entre eles se destacava e merecidamente ascendia à liderança. A sua chegada ao veneralato simbolizava a passagem do testemunho para a nova geração da Loja, que nela entrara já no século XXI.

Nuno L., o Vigésimo Segundo Venerável Mestre, tinha quase tudo para que o exercício do seu mandato corresse bem: vontade, capacidade, preparação, vigor, ideias, aceitação e apoio unânimes. O "quase" foi incluído na frase porque apenas um detalhe faltou: não pôde beneficiar do apoio do seu Ex-Venerável Mestre que, por circunstâncias da sua vida privada, teve de se afastar da Loja. Mas mesmo este detalhe foi superado com à-vontade e segurança! A natural inexperiência e "tremideira" do Venerável em início de mandato durou apenas uma ou duas sessões e foi ultrapassada sem sobressaltos.

E efetivamente o exercício do mandato do Nuno L. correu bem. Diria mesmo que muito bem! Nuno L. confirmou-se como um líder bem preparado, com bom-senso e capaz de discernir muito bem quando devia exercer a autoridade e quando era o momento de a devolver ao grupo. Os resultados foram rapidamente visíveis: aumento de qualidade e exigência na preparação dos Aprendizes e Companheiros, propiciando que o futuro da Loja seja assegurado por gente muito bem preparada, preparação e apresentação de pranchas de qualidade por Mestres, Companheiros e Aprendizes, aumento exponencial de contactos com as outras Lojas da Obediência, dinamismo, eficácia e boa disposição reinando na Loja. Rara terá sido a sessão - se é que houve alguma... - em que a Loja não teve visitantes;  e Nuno L. elaborou um exigente e completo plano de visitas da Loja e seus obreiros a outras Lojas da Obediência, de diversos ritos e com diferentes experiências.

No plano da Grande Loja, representou exemplarmente a Loja, fazendo questão de que a mesma correspondesse a todas as solicitações do Grão-Mestre. Numa Obediência atravessando uma agradável fase de expansão e dinamismo, afirmou a Loja Mestre Affonso Domingues como um exemplo de dinâmica e capacidade.

Geriu exemplarmente a progressão nos graus de Aprendizes e Companheiros, com a indispensável ajuda dos seus Vigilantes, deixando a Loja em perfeito estado de organização e evolução em termos de recursos humanos.

Teve o cuidado e o gosto de reservar uma pequena parte de todas as sessões para a apresentação de breves Lições do Venerável Mestre, por vezes simples pensamentos, outras extratos de livros que compartilhava, nunca deixando de dar aos obreiros da Loja material para reflexão.

O seu mandato começou bem, prosseguiu agradável e terminou melhor. Elevou muito a fasquia para os seus sucessores! Aproveitou muito bem o que a Loja tinha para dar; semeou e preparou para o futuro. Dificilmente poderia ter-se feito melhor! 

Rui Bandeira

25 setembro 2013

Força e Razão



A Força, incontrolada ou mal controlada, não é apenas desperdiçada no vazio, tal como a pólvora queimada a céu aberto e vapor não confinado pela ciência; mas, golpeando no escuro e seus golpes atingindo apenas o ar, ricocheteia e se auto-atinge. É destruição e ruína. É o vulcão, o terramoto, o ciclone, não crescimento ou progresso. (...)
Precisa ser regulada pelo Intelecto. O Intelecto é para as pessoas e para a Força das pessoas o que a delicada agulha da bússola é para o navio – sua alma, sempre orientando a enorme massa de madeira e ferro,e sempre apontando para o norte.

(Albert Pike, Morals and Dogma)


A Força é uma das qualidades essenciais dos atos e obras que os maçons devem empreender (as outras são Sabedoria e Beleza).

Para os maçons, o conceito de Força abrange a Força de Caráter, a Força de Vontade de quem realiza, mas também a Eficácia e a Durabilidade do que se realiza.

O excerto acima transcrito alerta-nos para o modo como se deve utilizar a Força: não irracionalmente, não descontroladamente, não usando a Força pela Força, mas antes mediante a intermediação e o controlo do Intelecto, da Razão. A Força de Caráter sem o domínio da Razão degrada-se na Teimosia. A Força de Vontade sem o equilíbrio do Intelecto reduz-se à Obstinação. A Eficácia da obra realizada não pode ser obtida a todo o custo, sacrificando indiscriminadamente ou prejudicando desnecessariamente outros valores, bens ou pessoas. A sua Durabilidade deve corresponder ao destino e utilização da obra: é tão insano misturar demasiada areia no cimento, enfraquecendo o betão que deve sustentar o edifício como misturar cimento na areia com que se faz um estival castelo na praia, destinado a desaparecer na subida da maré seguinte.

No processo evolutivo da construção de si mesmo que o maçom empreende desde o dia da sua Iniciação até àquele em que pousa as suas ferramentas e passa ao Oriente Eterno, deve inevitavelmente aperceber-se que tem de dar atenção ao seu caráter e à sua vontade, reforçando a sua força, mas também ter presente a simultânea necessidade de dominar sempre a força que cultiva. Um homem de bem necessita de caráter e vontade fortes, mas dominados pela razão. Só assim é verdadeiramente um homem de bem e não um mero arrogante obstinado... 

O maçom deve aprender que, para fazer algo que valha a pena tem, sem dúvida, que ser capaz, que ser persistente, que ser eficaz, mas também que ser equilibrado, sob pena de se enredar eternamente na construção de obra sempre inacabada - desnecessariamente - ou de inútil fortaleza no meio de estéril deserto. 

Aprimorar a sua força de caráter, a sua força de vontade, deve ser incessante objetivo  do maçom, mas dominar aquele e esta através da sua razão não é desiderato menos necessário. Afinal de contas, o maçom não se deve limitar a desbastar a sua Pedra Bruta. Deve também dar-lhe forma e brilho para dela fazer uma devidamente aparelhada Pedra Cúbica...

A Força sem Razão é mera brutalidade, primarismo indigno do Homem. A Força pela Força não vale nada de jeito. Um dos trabalhos do maçom consiste, assim, precisamente em garantir que os seus atos beneficiam sempre da Força da Razão, não da razão da força!

Rui Bandeira

18 setembro 2013

Maçonaria e Democracia


Em 1700, era rei de Portugal D. Pedro II, terceiro filho de D. João IV, que depusera seu irmão, D. Afonso VI. Por sua morte, sucedeu-lhe no trono D. João V. Todos foram reis absolutos. Com exceção de Afonso VI, deposto por um golpe de Estado dirigido por seu irmão, todos exerceram o Poder, após a sua ascensão ao mesmo, de forma vitalícia.

Carlos II era rei de Espanha, Nápoles e Sicília à data da sua morte, em 1 de novembro de 1700. Morreu sem filhos e o seu decesso originou a Guerra da Sucessão espanhola entre 1700 e 1713, no termo da qual se afirmou como rei de Espanha aquele que Carlos II designara no seu testamento para lhe suceder no trono (!): Filipe V, Filipe de Anjou, neto de Luis XIV de França. Ambos foram reis absolutos - e vitalícios.

Luis XIV de França, o Rei-Sol, reinou neste país até à sua morte, em 1715, sucedendo~lhe Luis XV. Ambos foram reis absolutos - e vitalícios.

No norte da Europa, travava-se por essa altura a Grande Guerra do Norte, opondo o Império Sueco, cujo trono era ocupado por Carlos XII, ao Império Russo de Pedro, o Grande, ao reino da Dinamarca e Noruega, de Frederico IV, e ao reino da Saxónia-Polónia, de Augusto II. Todos foram reis absolutos - e vitalícios.

Em Inglaterra, na sequência da Revolução Gloriosa e da tomada do poder a Jaime II Stuart, reinava Guilherme III de Orange. Por sua morte, sucede-lhe, entre 1702 e 1714, a rainha Ana, que, em 1707, logrou a união dos reinos da Inglaterra e Escócia que perdura até hoje, sob a designação de Reino Unido. Em 1714 sucedeu-lhe Jorge I. No alvor do século XVIII, só estes monarcas, da dinastia de Hanover, coexistiam com um Parlamento no exercício do Poder. Com exceção de Jaime II Stuart, apeado do Poder pela Revolução Gloriosa, todos, após terem ascendido ao Poder, o exerceram vitaliciamente. 

No início do século XVIII, apenas uma instituição na Europa se caraterizava por os seus diversos núcleos elegerem os respetivos líderes pelo voto, conferindo-lhes mandato por tempo limitado: a Maçonaria.

O exercício do Poder mediante eleição e por tempo limitado é, hoje em dia, uma regra consensual nas democracias modernas. Mesmo aquelas cujo regime é monárquico reservam aos seus monarcas poderes limitados, apenas de representação e de influência moderadora, atribuindo o exercício do Poder efetivo a líderes eleitos pelo voto popular, com mandatos de duração limitada. 

A teorização do exercício do Poder por um igual designado pelo voto e da delegação desse exercício por períodos limitados de tempo ocorreu nas Lojas maçónicas e foi delas que se expandiu para as diferentes sociedades, no seio delas foi ganhando raízes e veio a ganhar o consenso atual em todo o mundo democrático.

Ao teorizar e praticar um modelo de exercício do Poder que recusava o seu fundamento do Direito Divino e assentava na legitimidade conferida pelo grupo em relação ao qual esse Poder se exercia e ao assumir o princípio de que essa delegação de Poder era temporária e objeto de periódica renovação, a Maçonaria rompeu com uma tradição milenar que permitia que apenas alguns privilegiados pudessem aspirar ao exercício do Poder (normalmente por sucessão dinástica) e que conferia esse Poder de forma vitalícia, só excecionalmente, e por via da força, assim não sucedendo.

A teoria e prática maçónicas, ao transitarem do seu interior para as sociedades, foram consideradas pelos poderes vigentes no que hoje se convencionou chamar de Antigo Regime como revolucionárias - evidentemente perigosas para a sustentação do poder vigente. Esta a verdadeira origem das desconfianças (quando não claras e, mesmo, violentas proibições) tidas pelos diversos Poderes vigentes na velha Europa em relação à Maçonaria.

A evolução dos tempos e o sentido dos ventos da História fizeram com que hoje seja praticamente consensual o que, há apenas trezentos anos, era somente apanágio de uma pequena e então quase insignificante instituição. No entanto, se as sociedades adotaram os princípios de designação de titulares de cargos políticos que só a Maçonaria praticava há trezentos anos, se essa prática é hoje consensual, porque subsiste a desconfiança? O normal seria o reconhecimento do pioneirismo... 

Para além da persistência de um reflexo adquirido, a meu ver tal sucede pelo facto de alguns maçons terem sido agentes ativos das transformações das respetivas sociedades. À míngua da possibilidade de refutação da fundamentação doutrinária consistente das novas ideias que se expandiam, os Poderes em queda apontavam o dedo aos "revolucionários", aos "agentes da desordem" - e muitos desses, alguns com proeminência, foram efetivamente maçons. Convinha aos Antigos Regimes confundirem as ideias inovadoras com os seus agentes de difusão. Aquelas apenas são refutáveis com outras ideias suscetíveis de convencerem. Estes eram de carne e osso, com virtudes e defeitos, anseios justos e excessos, escolhas certas e erros. Aquelas eram dificilmente refutáveis por quem estava prestes a sair no mais próximo apeadeiro da História. Estes eram alvos visíveis e suscetíveis de serem abatidos.

Hoje, quando os fundamentos democráticos estão bem assentes nas sociedades, é tempo de distinguir entre as ideias e os seus agentes difusores. As ideias - felizmente! - venceram. Mas, ao contrário do que os Antigos Regimes propalavam, não venceram porque agitadores as impuseram ou por elas lutaram. Venceram porque as ideias, elas próprias, se impuseram por si. Porque eram justas. Porque eram corretas. Porque correspondiam aos anseios das populações.

Espanta-me como gente claramente inteligente e democrata ainda hoje se deixa influenciar pelos preconceitos propalados pelos Antigos Regimes!

Rui Bandeira