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02 outubro 2017

Um maçon nunca está sozinho


Quando o meu avô morreu, a meio da sua nona década de vida, comentou-me uma das minhas tias: "O avô morreu três vezes. A primeira foi quando a avó morreu. A segunda foi quando se apercebeu de que era o último dos da geração dele que ainda estava vivo. E a terceira foi agora." E continuou: "Sabes, há um par de anos foi ao funeral de um dos amigos de infância, e quando olhou em volta, viu-se sozinho. Aqueles com quem ele cresceu, os que fizeram a escola ao mesmo tempo... já tinham ido todos. A partir daí, limitou-se a ficar à espera." Confesso que senti um arrepio ao imaginar como seria sertir-me assim.

Anos volvidos, estou bastante mais seguro de que tal não me acontecerá. Não porque tencione morrer cedo - nunca se sabe, mas não tenho grande pressa... - mas porque os meus amigos não estão todos na mesma faixa geracional; é certo que tenho uns quantos amigos chegados que são de idade próxima da minha, mas a gama de idades dos que me são próximos é bastante alargada. E tenho, mesmo, alguns amigos que nasceram uma, duas, três ou mesmo quatro décadas antes de mim.

São homens a quem trato por tu, amigos próximos com quem partilho uma piada parva, membros da minha tribo perante quem baixo a guarda. A um ou outro chego a cumprimentar, sem pensar, com um abraço e um beijo na face - tal como sempre fiz e faço ao meu pai ou ao meu irmão de sangue. Alguns nada têm que ver com a maçonaria, mas mais de metade são meus irmãos maçons.

Diz-se que, em maçonaria, "se faz amigos de infância aos quarenta anos". Só posso falar por mim - e confirmar que senti isso mesmo. O que nunca imaginei foi que, aos quarenta anos, fizesse "amigos de infância" de sessenta, e de mais. De facto, das primeiras coisas que notei no dia da minha iniciação foi a variada gama de idades: havia um ou outro que ainda não tinha feito trinta anos, mas a maior parte estava entre os trintas e os quarentas - idade em que é mais frequente ingressar-se a Ordem - mas havia também uma boa quota de cabelo grisalho e branco. Hoje não dou por nada; somos todos irmãos, e todos nos tratamos da mesma forma: por tu, e com um respeito fraternal.

Entre gerações partilha-se histórias na primeira pessoa. Os mais antigos recordam tempos idos, explicam decisões passadas, mostram os erros cometidos permitindo que não tenhamos nós que os repetir. Os mais novos, por seu lado, instilam novo fôlego em assuntos batidos, vestem ideias vetustas com novas roupagens, e por ser novo para eles o que para os demais é já conhecido, mostram-no, por vezes, como se o fora pela primeira vez. A cumplicidade vai-se construindo, ano após ano. E os laços apertam-se, mesmo sem darmos por eles.

Imagino que também alguns dos mais maduros sintam que, aos setenta ou aos oitenta, fizeram amigos de infância que por mero acaso têm metade da idade deles. Especialmente a estes, e principalmente quando sabemos que precisam, fazemos por, mais do que estar apenas disponíveis, estar mesmo presentes - e não os deixar sozinhos; isto se, evidentemente, assim o desejarem, que a liberdade de cada um é princípio absoluto entre nós. Ao contrário do que sucedeu com o meu avô, espero que a nenhum deles demos razão para sentir que o último dos seus acabou de partir e os deixou para trás. E é por isto que sei que, quando estiver no seu lugar, só ficarei sozinho se assim o desejar.

Paulo M.

01 fevereiro 2016

O maçon, a vida e a morte (republicação)

Hoje republico um texto do Rui Bandeira que para mim é uma reflexão a ter em conta dada a profundidade da mesma bem como da simplicidade pela forma de como foi escrita e no qual ele aborda conceitos tão importantes como a Vida e a Morte.
Pouco poderia acrescentar, e em nada iria melhorar, o que foi por ele escrito e refletido e, muito bem, partilhado connosco.
Assim deixo-Vos transcrito o texto que foi publicado originalmente aqui.

"O maçon, a vida e a morte

Só pode ser admitido maçom regular quem seja crente num Criador, qualquer que seja a sua conceção Dele, e creia na vida para além desta vida. Só assim faz sentido o processo iniciático maçónico, só assim é profícuo o labor de análise, interpretação e aprofundamento da simbologia maçónica, alguma dela diretamente baseada em elementos extraídos de textos de natureza religiosa.


No seu processo de construção de si mesmo segundo o método maçónico, o estudo, a meditação, a associação livre, a descoberta de significados dos significantes que são, afinal, os símbolos, o maçom, se bem fizer o seu trabalho, inevitavelmente que nalgum momento se confrontará com a busca do significado da Vida, do seu lugar no Mundo e na Vida, com a Vida ela mesma e com a morte do seu corpo físico.

Se bem faz o seu trabalho, o confronto com a morte física, à luz da sua crença na vida para além da vida e dos elementos colhidos nos seus estudos simbólicos, algo de muito positivo lhe traz: a perda do medo da morte! Pausada, calma e profundamente analisada a questão, quase que intuitiva é a conclusão de que a morte é simplesmente parte da vida, do percurso que efetua a centelha primordial que nos anima e que é o melhor de nós, que é, afinal o essencial de nós, a Vida em nós, que permanece para além da deterioração, desativação e destruição do invólucro meramente físico a que chamamos corpo. Porventura adquirirá mesmo a noção de que essa morte física é indispensável ao processo vital, à essência da vida, que é feita de energia e transformação e mudança.

A perda do medo da morte é uma imensa benesse conferida àquele que dela beneficia, por isso que o liberta para apreciar plenamente a Vida, vivê-la em pleno, colocando nos seus justos limites tudo o que de bom e tudo o que de mau se lhe depara.

A perda do medo da morte propicia enfim a Sabedoria para apreciar a Vida da melhor forma que se tem para tal: vivendo-a, sem constrangimentos, sem medos, sem dúvidas, sem interrogações sobre quanto durará o bem de que se desfruta, quanto se terá de suportar até superar o mal que se atravessa. É a perda do medo da morte que nos ilumina para o essencial significado da Vida: ela existe para ser vivida, para ser utilizada e modificada (na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma, disse-o, há muito, Lavoisier...), força perene essencial que existe e prossegue existindo através da sua contínua transformação.

A perda do medo da morte assegura-nos a Força para continuamente persistirmos na nossa melhoria, na nossa purificação, não porque interesse ao nosso corpo físico, mas porque disso beneficia a nossa centelha vital, que melhor evoluirá quanto mais beneficiar do que aprendemos, do que acrescentarmos eticamente a nós próprios e portanto a ela. A nossa melhoria, o nosso aperfeiçoamento ético liberta a nossa consciência para alturas que as grilhetas do egoísmo, da materialidade, dos vícios e paixões impedem que atinja. É a nossa Força nesse combate que constitui o cais de partida da nossa identidade para a viagem possibilitada pela purificação da nossa essência, que terá lugar após a libertação do peso do nosso corpo físico (será isto o Paraíso, a Salvação?). Pelo contrário, a insuficiente libertação da nossa essência do peso do vício e das paixões, do Mal enfim, inibirá essa nossa essência de subir tão alto e ir tão longe como poderia ir se liberta, quiçá limitando o valor futuro da nossa vida que permanece, quiçá impondo a continuação de esforços de purificação e transformação (será isso o Inferno, a Perdição?)

A perda do medo da Morte permite-nos enfim desfrutar plenamente da Beleza da Vida - sem constrangimentos, sem temores, sem interrogações. Como diz a canção, o amor poderá não ser eterno, mas que seja imenso enquanto dure. Apreciar a Beleza da Vida sem temer ou lamentar a mudança, que algum dia inevitavelmente ocorrerá, permite a suprema satisfação de sentir realmente toda a beleza que existe na Beleza, toda a vida que há na Vida. Verdadeiramente. Um segundo que seja que se consiga ter deste clímax vale por toda uma vida...

Encarar a morte à luz da Vida e, portanto, deixar de a temer, liberta o nosso Ser para além dos constrangimentos da materialidade, reduz o Ter à sua real insignificância, dá-nos finalmente condições para, se tivermos atenção no momento preciso e irrepetível que antecipadamente desconhecemos quando surgirá, podermos entrever a Luz - a Luz da compreensão do significado da Vida e da Criação, da sua existência e da direção e objetivo do seu Caminho. Poucos, muito poucos, ainda que tendo trabalhado bem, ainda que persistentemente tendo polido sua Pedra, têm a atenção focada na direção certa quando esse inefável e intemporal momento passa. Esses são os afortunados que de tudo se despojaram e afinal tudo ganham ainda neste plano da existência. Esses passam verdadeiramente pelo buraco da agulha, porque o peso das suas paixões é inferior ao de uma pena e nada os distraiu. Esses aproveitam a Vida tão plenamente que o comum de nós nem sequer suspeita da possibilidade de existência desse aproveitamento. Esses, sim, são templos vivos onde se acolhe o mais essencial do essencial: tão só e simplesmente, a essência da Vida (será isto afinal o elo ao divino?).

O maçom que faz bem o seu trabalho perde o medo da morte e pode viver plenamente a Vida. Mais não lhe é exigível. O resto que porventura venha, se vier, vem por acréscimo...         

Rui Bandeira "

08 janeiro 2015

Os olhos azuis




Apesar da baixa temperatura na rua, reinava a boa disposição: acabara mais um dia de trabalho. Trocávamos as últimas despedidas, quando notámos uns olhos azuis que, confrangedoramente mudos, procuravam os nossos.

Aproximara-se, sem que notássemos, um vulto de casaco grosso - à moda antiga - na postura destruída de quem já viu melhores dias. Não o envolvia, porém a antecipada nuvem de álcool e tabaco, e muito menos o incontornável e penetrante cheiro da rua. De pé, a um metro de nós, interpelava-nos com o olhar, mas a boca não se abria, qual mola teimosamente contida, presa sabe-se lá em quê, mas desesperada por se libertar.

- Boa tarde, posso ajudá-lo?

E os olhos azuis, impotentes e embaraçados perante os vários segundos de imobilidade a que aquela boca se votou até que, a custo, lá acabou por deixar escapar qualquer coisa:

- Queria apanhar o autocarro para...

"O autocarro para". E a boca, entreaberta, como quem aguardava ordens; os olhos, suplicantes, imploravam pela palavra que faltava. "Queria apanhar o autocarro para".

- Para...? - ainda tentei.
- O autocarro... Para...

E de novo aqueles olhos azuis, sempre aqueles olhos azuis, fitando-nos aflitivamente, ora a um, ora ao outro. Quase se via a chama mortiça debatendo-se em vão, ansiando por espalhar luz e calor, mas mais não logrando que evitar apagar-se.

- Quer ir para casa?
- Sim.
- E sabe onde é a sua casa? - perguntou o meu colega.

De novo. a custo, balbuciante, tentou responder - mas sem sucesso.

- Aaaa... em...

Não havia dúvidas. Tínhamos, perante nós, uma criança perdida, presa no corpo de um octogenário. E aqueles olhos, sempre aqueles olhos, frágeis e desvalidos, surpreendidos como um balão que se esvazia e, mirrado e reduzido a uma massa informe, tenta, não obstante - e evidentemente sem êxito - manter a compostura e a forma que teve outrora.

- Em Loures.

Ah. Lembrou-se.

- Mas como é que veio parar aqui?
- Estive com o meu filho, mas o autocarro teve um acidente... bateu num... num ligeiro... ainda esperei uma hora, mas eles não arrancavam... tive que vir a pé...

- Disse que mora em Loures? Mora com alguém?

De novo, uma pausa, e depois a resposta, titubeante e aos arranques:

- A minha mulher morreu. A minha filha não me atende, está em Coimbra. É médica, a minha filha.
- Mas mora com alguém?
- Estive com o meu filho... ele está desempregado há quase um ano...
- Tem o contacto da sua filha ou do seu filho? Tem telemóvel?
- Não... Só tenho aqui 5 euros para o táxi...
- E tem identificação consigo?

Sem uma palavra, entregou-me a carteira - de plástico, com três documentos e um recibo da farmácia, sem hesitação, sem defesa, sem reserva.

- Venha connosco, que eu levo-o a casa.

Após uma troca de murmúrios com quem me acompanhava, acabei antes por levá-lo à esquadra mais próxima onde, após ter feito uma breve descrição da situação a um dos agentes, o entreguei em mãos experientes que o acolheram com prontidão.

...


Essa noite custou-me adormecer. Aqueles confundidos olhos azuis não me largavam, testemunho implacável da minha própria mortalidade, da indignidade da doença, e da velhice que, inflexível, nos rouba aos poucos e aos bocados. E eu, mais dado a fazer que a remoer, dei por mim acossado e impotente em face quer do que vi quer do que me espera - do que nos espera a todos - não obstante vivermos, tantas vezes, como se não morrêssemos nunca.

Acabei por fazer as pazes com o sono, depois de ter, difusamente e entre bocejos, aceite que o que é inevitável não deve aterrorizar-nos, mas antes, pelo contrário, impelir-nos a aproveitar melhor cada um dos nossos dias.

Estamos no início de um novo ano. Faço votos de que cada um de nós saiba e consiga - ou, pelo menos, tente - agir no sentido de aproveitar cada um desses dias de modo a não se arrepender nem do que fez nem do que deixou por fazer, e que tenhamos a fortuna de não darmos por nós a vaguear, perdidos, à mercê de quem nos estenda a mão - mas que, se tal acontecer, possamos encontrar, no nosso caminho, uma mão amiga.

Paulo M.

13 dezembro 2013

A morte.

A minha ilusão pode perfeitamente ser a tua ilusão, a tua vida inteira, as nossas, mas não é e, em boa verdade, é impossível de o ser e ambos o sabemos. Mas (também) sei que aqui não há qualquer ilusão. És matreira e até falsa, pois fazes as “coisas” sem pré-aviso e de uma forma insensível, portanto a ilusão, a existir, é apenas fruto da minha ingénua imaginação.

A nossa relação, não é, nunca foi, nem nunca vai ser fácil, recuso-me, por muito que me eduquem para tal, a reconhecer-te como uma fase desta passagem, é algo meu, sem falsos rodeios, posso afirmar-te, a ti e a quem quiser, é pura e sentida reciprocidade.

Não somos, nem nunca vamos ser amigos, é de todo impossível nutrir por ti, outro qualquer sentimento que não seja a repulsa. Como poderei respeitar, encarar e entender algo que não se dá a conhecer? Por muito fértil que fosse a minha imaginação, até tu reconheces, que é de todo impossível.  

Compreendo que não tenhas de avisar-me de nada do que fazes, não sou nem quero ter esse ónus, entendo que seja essa a ordem natural de algo superior que sinto mas não consigo alcançar com o olhar, por muito que o quisesse. Sei ainda que a naturalidade com que tomas as tuas atitudes são acasos do ocaso, no limite conseguirei compreender tudo aquilo que fazes.

Quando levas contigo alguém de quem gosto, alguém pelo qual nutro sentimentos nobres, como a amizade, o respeito e o amor, hás-de convir que ainda menos te entendo, podes fazer a todos os outros, mas não a mim. É injusto. Chega a ser imoral.

Não tenho especial gosto em escrever-te direta e abertamente desta forma, mas a não compreensão da tua existência e proximidade com o meu pequeno mundo a isso me obriga.

Um dia, quando entenderes que é chegada a minha hora, irei relembrar-te de tudo isto e, darei muita luta, pois se agora penso assim, o passar dos anos farão vincar ainda mais estas minhas ideias.

Nesse dia, mesmo a dizer que não quero ir, que não é a minha hora, sei que irei contra vontade, e nesse dia, acredito que passemos a ser amigos.


Daniel Martins

23 outubro 2013

O maçom, a vida e a morte



Só pode ser admitido maçom regular quem seja crente num Criador, qualquer que seja a sua conceção Dele, e creia na vida para além desta vida. Só assim faz sentido o processo iniciático maçónico, só assim é profícuo o labor de análise, interpretação e aprofundamento da simbologia maçónica, alguma dela diretamente baseada em elementos extraídos de textos de natureza religiosa.

No seu processo de construção de si mesmo segundo o método maçónico, o estudo, a meditação, a associação livre, a descoberta de significados dos significantes que são, afinal, os símbolos, o maçom, se bem fizer o seu trabalho, inevitavelmente que nalgum momento se confrontará com a busca do significado da Vida, do seu lugar no Mundo e na Vida, com a Vida ela mesma e com a morte do seu corpo físico.

Se bem faz o seu trabalho, o confronto com a morte física, à luz da sua crença na vida para além da vida e dos elementos colhidos nos seus estudos simbólicos, algo de muito positivo lhe traz: a perda do medo da morte! Pausada, calma e profundamente analisada a questão, quase que intuitiva é a conclusão de que a morte é simplesmente parte da vida, do percurso que efetua a centelha primordial que nos anima e que é o melhor de nós, que é, afinal o essencial de nós, a Vida em nós, que permanece para além da deterioração, desativação e destruição do invólucro meramente físico a que chamamos corpo. Porventura adquirirá mesmo a noção de que essa morte física é indispensável ao processo vital, à essência da vida, que é feita de energia e transformação e mudança.

A perda do medo da morte é uma imensa benesse conferida àquele que dela beneficia, por isso que o liberta para apreciar plenamente a Vida, vivê-la em pleno, colocando nos seus justos limites tudo o que de bom e tudo o que de mau se lhe depara.

A perda do medo da morte propicia enfim a Sabedoria para apreciar a Vida da melhor forma que se tem para tal: vivendo-a, sem constrangimentos, sem medos, sem dúvidas, sem interrogações sobre quanto durará o bem de que se desfruta, quanto se terá de suportar até superar o mal que se atravessa. É a perda do medo da morte que nos ilumina para o essencial significado da Vida: ela existe para ser vivida, para ser utilizada e modificada (na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma, disse-o, há muito, Lavoisier...), força perene essencial que existe e prossegue existindo através da sua contínua transformação.

A perda do medo da morte assegura-nos a Força para continuamente persistirmos na nossa melhoria, na nossa purificação, não porque interesse ao nosso corpo físico, mas porque disso beneficia a nossa centelha vital, que melhor evoluirá quanto mais beneficiar do que aprendemos, do que acrescentarmos eticamente a nós próprios e portanto a ela. A nossa melhoria, o nosso aperfeiçoamento ético liberta a nossa consciência para alturas que as grilhetas do egoísmo, da materialidade, dos vícios e paixões impedem que atinja. É a nossa Força nesse combate que constitui o cais de partida da nossa identidade para a viagem possibilitada pela purificação da nossa essência, que terá lugar após a libertação do peso do nosso corpo físico (será isto o Paraíso, a Salvação?). Pelo contrário, a insuficiente libertação da nossa essência do peso do vício e das paixões, do Mal enfim, inibirá essa nossa essência de subir tão alto e ir tão longe como poderia ir se liberta, quiçá limitando o valor futuro da nossa vida que permanece, quiçá impondo a continuação de esforços de purificação e transformação (será isso o Inferno, a Perdição?)

A perda do medo da Morte permite-nos enfim desfrutar plenamente da Beleza da Vida - sem constrangimentos, sem temores, sem interrogações. Como diz a canção, o amor poderá não ser eterno, mas que seja imenso enquanto dure. Apreciar a Beleza da Vida sem temer ou lamentar a mudança, que algum dia inevitavelmente ocorrerá, permite a suprema satisfação de sentir realmente toda a beleza que existe na Beleza, toda a vida que há na Vida. Verdadeiramente. Um segundo que seja que se consiga ter deste clímax vale por toda uma vida...

Encarar a morte à luz da Vida e, portanto, deixar de a temer, liberta o nosso Ser para além dos constrangimentos da materialidade, reduz o Ter à sua real insignificância, dá-nos finalmente condições para, se tivermos atenção no momento preciso e irrepetível que antecipadamente desconhecemos quando surgirá, podermos entrever a Luz - a Luz da compreensão do significado da Vida e da Criação, da sua existência e da direção e objetivo do seu Caminho. Poucos, muito poucos, ainda que tendo trabalhado bem, ainda que persistentemente tendo polido sua Pedra, têm a atenção focada na direção certa quando esse inefável e intemporal momento passa. Esses são os afortunados que de tudo se despojaram e afinal tudo ganham ainda neste plano da existência. Esses passam verdadeiramente pelo buraco da agulha, porque o peso das suas paixões é inferior ao de uma pena e nada os distraiu. Esses aproveitam a Vida tão plenamente que o comum de nós nem sequer suspeita da possibilidade de existência desse aproveitamento. Esses, sim, são templos vivos onde se acolhe o mais essencial do essencial: tão só e simplesmente, a essência da Vida (será isto afinal o elo ao divino?).

O maçom que faz bem o seu trabalho perde o medo da morte e pode viver plenamente a Vida. Mais não lhe é exigível. O resto que porventura venha, se vier, vem por acréscimo...         

Rui Bandeira