25 janeiro 2016

Penso, logo...


É do conhecimento comum a frase de Descartes

Cogito ergo sum

Também é comum que esta frase apareça traduzida para português como

Penso, logo existo

Porém, como diz um também muito citado provérbio italiano, "traduttore, traditore"... Traduzir sum por existo é gramaticalmente correto, mas não é a única opção. Talvez mesmo não seja a melhor. Com efeito, uma pedra não pensa, mas existe. Indubitavelmente que existe. Podemos vê-la, pegar-lhe, arremessá-la, trabalhá-la ou simplesmente ignorá-la. Mas existe - não pensando. Logo, existir não é consequência de pensar.

No meu entendimento, a melhor tradução para português da célebre frase é a mais simples e direta:

Penso, logo sou

Com esta tradução, o significado da frase enriquece-se em vários sentidos. Se, ao contrário de existir, ser é uma consequência de pensar, então ser é bem mais do que meramente existir. Logo, eu, que penso, não me limito a existir (como qualquer pedra...), mas realmente sou. Por outro lado, se sou na medida em que penso, quanto mais penso, mais sou. e quanto melhor penso, melhor sou.

(A contrario sensu, aquelas cabecinhas loucas que não pensam, ou melhor, mal pensam e pensam mal e pouco, naturalmente  podem ser pouco, apesar de - como a pedra... - indubitavelmente existirem...).

Ser é bem mais do que meramente existir. Uma pedra existe. Um animal existe. Mas só o ser dotado de pensamento racional realmente é. Logo, se sou porque penso, também sou o que penso. O que eu sou não é o que mostro, o que faço, o que digo. Tudo isso integra apenas a imagem que os demais têm de mim. Realmente, o que sou é o que penso, não o que mostro, ou digo, ou faço.

Sendo assim, se o que mostro, digo e faço é diferente do que penso, ou sou dissimulado, ou sou mentiroso, ou sou hipócrita, ou sou tudo isso junto. Hipócrita, se finjo ser diferente do que sou. Mentiroso se digo, faço ou mostro algo diverso ao que realmente sou (penso). Dissimulado se não mostro, faço e digo tudo o que penso. Enfim, ninguém é perfeito...

A hipocrisia é sempre um mal, algo de errado. O hipócrita tem o propósito de enganar os demais, de mostrar uma imagem propositadamente diferente do que realmente é (pensa).

A mentira é normalmente um mal, mas pode pontualmente ser bem-intencionada (a mentira piedosa...) e, afinal, um bem. Pode mentir-se de forma bem-intencionada e com isso atingir-se um bem, que não se atingiria com a verdade, ou mesmo a verdade causar um mal que é evitado com a bem-intencionada mentira.

Já a dissimulação tem uma medida que é inevitável - medida em que é socialmente aceite -, que se pode designar por reserva. A vida em sociedade implica uma certa reserva, um setor de nós que é só nosso, que não expomos aos demais. É até socialmente imprescindível que esse setor de reserva individual exista, porque condição de salvaguarda do relacionamento saudável entre indivíduos. 

Portanto, sou o que penso, e devo mostrar, fazer e dizer o que sou, exceto na restrita matéria da reserva da minha privacidade que é socialmente aceite (até mesmo imprescindível) que eu guarde.

A reserva de privacidade é uma defesa, mas também é um ónus, um fardo. Aquilo que guardo para mim pesa-me a mim e, não podendo partilhá-lo, também não posso partilhar o  fardo. 

É por isso que, sendo socialmente aceite (e necessário) que eu mantenha um certo nível de reserva em relação ao que penso, ao que sou, também é natural e socialmente pacífico que o nível de reserva que eu mantenho seja diferenciado. Assim, é normal que eu mostre menos de mim aos estranhos do que aos meus conhecidos, menos aos meus conhecidos do que aos meus amigos, menos aos meus amigos do que aos meus familiares próximos e finalmente que mesmo estes não tenham acesso à totalidade de mim, 

A extensão variável da reserva sobre mim é por mim determinada, em função do nível de intimidade e, assim, de confiança do laço que me une a alguém. 

(É por isso que a traição à confiança depositada por parte dos mais próximos é bem mais dolorosa - e quiçá acarreta mais graves consequências - do que idêntica ação levada a cabo por quem nos é mais distante).

Em resumo: sou o que penso, não o que mostro, faço ou digo. Mas devo mostrar, fazer e dizer em consonância com o que penso em tudo o que não contenda com a reserva sobre mim que é socialmente aceite (e útil) que guarde. E essa reserva é tanto menor quanto mais próximos de mim estiverem aqueles a quem mostro, digo ou faço.

Rui Bandeira  

18 janeiro 2016

Almoço-Convívio de Solstício de Inverno 6015...

Teve lugar durante este fim-de-semana o habitual almoço/convívio de obreiros do quadro da Respeitável Loja Mestre Affonso Domingues e seus familiares referente ao Solstício de Inverno, numa localidade a oriente de Palmela.

Num dia frio de inverno, mas bastante ensolarado (a Luz "fazia-se notar" e bem!) sentiu-se o calor humano que desponta e emana das relações fraternais e de amizade que se existe entre os convivas.

Maçonaria também é isto, confraternizar, consolidar relacionamentos e afetos.

Quem participou neste ágape fraternal e familiar saiu dele, talvez, mais "rico", mais "experiente" e quiçá mais "sabedor", só os participantes o saberão. Mas é certo e sabido que certamente saíram de lá contentes e satisfeitos tal a harmonia e a felicidade que pairava no ar, mas principalmente pela amizade que se fazia questão em sentir.
Caras que não se viam há algum tempo e abraços que já não se davam por os seus intervenientes não se cruzarem por diversos motivos, foram possíveis serem finalmente trocados, conversas adiadas foram efetuadas, a saudade de uns e a presença de outros foi amplamente reforçada neste encontro.

Enfim, apenas posso afirmar, em jeito de conclusão, que tudo decorreu de forma justa e perfeita e que melhor este evento não poderia ter sido, ficando aqui expresso o meu agradecimento aos manos encarregados pela organização do evento. 
Só posso questionar: Para quando outro?!

Os maçons e os filhos (atualização)


Como recordou o Nuno, corria o "longínquo" ano de 2007 quando o profano Simple, já na altura candidato à admissão na Loja Mestre Affonso Domingues, teve esta dúvida de como e quando revelar às suas filhas a sua condição de maçom. Ao longo desses anos, as filhas foram crescendo, e estando presentes em alguns almoços com uma data de "tios" que só viam de vez em quando.

Como bem disse o Rui Bandeira, preocupavam-se mais com a presença dos "primos" de idades parecidas com as delas - se bem que, ao longo do tempo, tivessem conhecido melhor um ou outro "tio", e mesmo manifestado saudades de o rever.

Foram-se também apercebendo de que em certas quartas-feiras o pai saía antes da hora do jantar, e quando voltava já tudo dormia. E faziam perguntas: "Onde é que vai a esta hora? A algum sítio chique?" - pois ia de fato... que entretanto já não usava diariamente. Lá lhes respondia que ia trabalhar, doutras vezes que tinha uma reunião - as perguntas tinham respostas preparadas havia anos.

A mais velha quis, a certa altura, saber mais, e vendo que estava preparada para perceber alguma coisa, lá expliquei - teria ela uns 11 ou 12 anos - que o Iluminismo (que ela estava a estudar na escola) ainda tinha seguidores, e que havia uma antiga organização de pessoas que perpetuavam ainda hoje os seus princípios.

Contei-lhe dos construtores de catedrais e dos "engenheiros" da altura. Contei-lhe das guerras religiosas. Contei-lhe que uns quantos acharam que podiam fazer a diferença e promover uma sociedade mais fraterna e mais tolerante. E que o pai pertencia a essa organização, e como se chamava. Ficou fascinada, foi procurar mais coisas à Internet, e fizemos disso um nosso pequeno segredo.

Ao longo do tempo fui-lhes explicando - a ambas - porque ajo desta ou daquela forma, e como é que isso encaixa nestes ou naqueles princípios. A mais velha "encaixa", claramente, o que ouve nos princípios que ouviu antes. A mais nova apreende, mas ainda não sabe o contexto todo. Coisas de ser a mais nova!!!

Então deixei-a crescer até que atingisse a maturidade necessária. Há tempos, estava eu a sair, e lá perguntou: "Reunião do quê?" "Reunião de uma associação de que o pai faz parte", respondi. "Um destes dias explico-te o que é." A mais velha piscou-me o olho, e assim ficámos. Um dia destes - ou talvez antes num destes serões de inverno, ao fim de semana - vou sentar-me com a mais nova. Tenho uma história de coisas antigas para lhe contar...

Paulo M.

11 janeiro 2016

Os maçons e os filhos (republicação)

O texto que é republicado hoje é datado do "longínquo"  ano de 2007 e foi escrito pelo Rui Bandeira e teve como principal motivador uma questão colocada por um leitor de blogue e que pode ser consultado no seu original aqui.

Este texto é de alguma forma relevante porque aborda um assunto pelo qual todos os maçons passam, a sua relação com os seus filhos e com a sua própria condição maçónica.
Esta é sem dúvida algo com que muitos se debatem internamente e que também se aconselham com os seus irmãos que vivem a mesma situação. Naturalmente que cada um vive a sua vida à sua maneira, mas neste ponto, quase todos o sentem mais ou menos da mesma forma.

Como e quando se deve informar um filho ou familiar sobre a vida maçónica de alguém?

O Rui emite a sua opinião, com a qual eu concordo também, e que abaixo transcrevo:

"O simple colocou a questão que se segue: 


Contaram-me o caso de um maçom que toda a vida ocultou a sua condição à família, e de quem só durante o velório os filhos e os netos souberam, por uns senhores que nunca tinham visto mas que mostraram conhecer muito bem o falecido, que o pai de uns e avô de outros fora maçom a vida toda...
A minha questão - que não é, certamente, nem nova nem original - é esta: como consegue um maçom manter oculta dos profanos a sua condição, e ao mesmo tempo envolver a família nesses eventos, se tiver filhos ainda pequenos - e naturalmente pouco sensibilizados para a discrição? Recorre-se à grande Instituição que são as baby-sitters?!

A partir de que idade é comum revelar-se à respectiva prole a condição de maçon - especialmente quando se preveja um anátema por parte da família alargada caso tal fosse conhecido?
Ah, e não vale responder "cada pai sabe dos seus"... até aí já eu discorri. :)

Nos termos e condições que o simple coloca, a questão é irrespondível, precisamente porque a única resposta correta é a que ele não quer que lhe seja dada: "cada pai sabe dos seus"...

Mas o desafio foi feito e, mal ou bem, merece resposta. Como todos os problemas de difícil resolução, a melhor abordagem é a sua divisão em pequenas questões, de resposta mais acessível. No final, teremos a resposta possível.

O ponto de partida é o caso - hipotético, lendário ou real - de um maçom que escondeu de sua família chegada essa condição, a ponto de seus filhos e netos só no seu velório virem a ter conhecimento dessa faceta do seu parente, através, retira-se do texto, de maçons que ao velório compareceram.

A situação de partida, nos termos em que está colocada, se bem que não impossível, afigura-se-me de difícil verificação, a não ser que se refira a um indivíduo com um núcleo familiar atípico e com um relacionamento atípico com esse núcleo familiar. Só por notável ausência de intimidade ou por presença de inesperada distância entre ascendente e descendentes se pode entender o absoluto desconhecimento, ao ponto da surpresa, de que o ascendente "fora maçom a vida toda". Porque ser maçom é ter e viver e transmitir princípios. Se um maçom não vive segundo os princípios inerentes à condição de maçom, só de nome poderá sê-lo - mas seguramente não será "maçom a vida toda", pela simples razão de que nem a vida como maçom viveu! Se um maçom não educa os seus filhos nesses princípios, ou é mau maçom ou péssimo educador! Se os filhos de um maçom não são capazes de reconhecer no comportamento de seu pai a aplicação dos princípios de um maçom, ou estavam muito distantes do seu progenitor ao ponto de não o conhecerem verdadeiramente, ou não foram educados por um verdadeiro maçom. Este deve distinguir-se perante os que o rodeiam pelo seu comportamento. E, mesmo que não diga que é maçom, se e quando os que o rodeiam vierem a saber que o é ou o foi, mau será se esse conhecimento não vier a confirmar o juízo que fazem da pessoa - seria sinal de que não fora digno de usar o avental que um dia lhe foi imposto...

A situação descrita, a não ser assim, só podia ocorrer num quadro de - para mim - impensável distância entre um homem e sua família mais chegada. Teria implicado a vivência em dois mundos estanques e absolutamente sem pontos de contacto. Isso não é vida real, é argumento de filme da guerra fria... Aliás, pelo menos um ponto de contacto entre esses dois mundos, um dos quais ignorava o outro, necessariamente tinha que haver: um amigo ou conhecido da família (a quem esta informou do óbito...) teria de ser maçom não menos discreto que o falecido, pois só assim poderia dar conhecimento aos maçons que compareceram no velório do passamento do Irmão...

E, das duas, uma: ou esse amigo ou conhecido levou a sua discrição ao ponto de não comparecer ao velório ou de aí comparecer separado dos maçons que se identificaram como tal, anónimo e secreto, ou, ao fim de tantos anos quebrou abrupta e incompreensivelmente a sua discrição...

Tal como a questão foi contada ao simple, parece-me, pois, mais um mito urbano, no caso, o mito do secretismo absoluto da Maçonaria, que só os anti-maçons alimentam. Contra este mito, em ambiente democrático, no século XXI, devemos combater, mostrando que discrição não é secretismo, esclarecendo e divulgando os nossos princípios.

Com este ponto de partida, pergunta simple como consegue um maçom manter oculta dos profanos a sua condição, e ao mesmo tempo envolver a família nesses eventos. Estando assente que "profano" é todo aquele que não é maçom e que, portanto, a família do maçom necessariamente que inclui profanos, a resposta a esta questão é simples: NÃO CONSEGUE. Ou mantém oculta da sua família a sua condição de maçom, ou não envolve a família nos eventos da Maçonaria... Ser e não ser não pode ser, já na Antiguidade dizia Sócrates, o filósofo...

Comer o bolo e continuar com o bolo não é possível, digo na atualidade eu, despretensioso escrevinhador... Com filhos pequenos ou grandes, discretos ou indiscretos, a dualidade secretismo/envolvimento simplesmente não é possível e, portanto, não é um problema.

Pergunta ainda o simple a partir de que idade é comum revelar-se à respectiva prole a condição de maçom. A resposta depende, a meu ver, mais do pai do que dos filhos... Depende essencialmente de como o pai vive a sua condição de maçom, do seu grau de envolvimento com a Ordem, do seu relacionamento mais próximo ou mais distante com a sua prole, da sua forma de educar, do seu conceito de transmissão dos seus valores - e também das circunstâncias e das oportunidades.

Eu diria que, mais do que cada um sabe dos seus, a resposta correcta é cada um sabe de si... Porque a resposta a essa questão só pode ser dada a cada um por si mesmo, o melhor que posso fazer é contar como é que eu fiz. Sempre eduquei as minhas filhas segundo dois princípios: os valores passam-se primeiro pelo exemplo e só depois pela palavra; as informações devem ser dadas quando quem as recebe está preparado para as receber.

Assim sendo, sempre me comportei como eu próprio, com os meus valores, os meus amigos, os meus Irmãos. A minha filha mais nova nasceu já eu era Mestre Maçom. Desde o berço que conhece os meus Irmãos, e de entre estes, que lida mais assiduamente com aqueles com quem estabeleci mais apertados laços da amizade, que me acompanha nas viagens que a Loja organiza para serem efetuadas pelos maçons e suas famílias, que me acompanha aos jantares brancos. Em toda a sua vida viu, com naturalidade, que havia dias em que o seu pai não estava em casa, porque "ia à reunião". E, durante vários anos, a bebé cresceu, a menininha medrou, sem se preocupar em catalogar os amigos do pai, sem estranhar almoços e jantares em grupo, mais interessada em saber que outras crianças estariam presentes.

Muitas vezes me viu sair e me perguntou "vais à reunião?" e eu confirmei que sim, sem que houvesse a necessidade de acrescentar que reunião era aquela onde eu ia. Um dia, finalmente, perguntou de que era a reunião a que eu ia. E eu respondi que era da Loja. E, não muito tempo depois, tendo percebido que a Loja de que eu falava, não era uma loja de se ir comprar coisas, um belo dia lá me perguntou de que era essa Loja. E eu respondi que era da Maçonaria. E passaram mais uns tempos até que perguntou o que é que se fazia na Maçonaria - e eu respondi e esclareci...

No fundo, educar é transmitir aos nossos filhos os nossos Valores. e isso não se faz escondendo esses valores deles, ou dando a noção de que esses Valores são para ser vividos clandestinamente. Pelo menos, quando se vive em Liberdade! Mas também temos que ter a noção de quando é que a criança está preparada para receber e processar uma determinada informação. Não faz sentido dar uma conferência sobre "Simbolismo, Esoterismo, Moralidade e Axiologia da Visão Imanente ao Entendimento do Universo, Criação, Criador e Criaturas na Maçonaria Contemporânea" a uma criança (nem sequer a certos adultos, diga-se de passagem)... Convém antes responder ao que é perguntado, certificando-nos do que é efetivamente perguntado, não vendo nós complexos problemas em questões, por vezes muito simples e básicas, que são o objeto, naquele momento, do interesse da criança.

Rui Bandeira"

04 janeiro 2016

Da importância do acaso na descoberta do sentido da vida


Certo dia, estando a conduzir liguei o rádio do automóvel (naquele preciso momento, não em outro qualquer). O rádio estava ligado numa determinada estação emissora (não em outra qualquer). Estava a ser transmitida uma determinada música (não outra qualquer), que me agradou muito e me reforçou a boa-disposição e abriu o sorriso.

Eu ia tratar de um assunto complicado e algo delicado num Tribunal, para o que necessitava que um funcionário judicial (sempre assoberbado de trabalho) me desse assistência, gastando razoável tempo e algum esforço. Ainda por cima, o tal assunto era desagradável para o dito funcionário, pelo que antecipava alguma má-vontade dele em auxiliar-me.

Mas eu estava tão bem-disposto com a música que por acaso ouvira, na estação de rádio que por acaso estava sintonizada no momento em que, por acaso, decidi ligar o rádio do meu automóvel, que me dirigi ao dito funcionário com um largo sorriso nos lábios, o cumprimentei alegremente, disse uma piada que também o fez sorrir e... quando lhe disse ao que ia, em vez da antecipada má reação, vi que a minha boa-disposição o contagiara e, com toda a amabilidade e todo o zelo, auxiliou-me no trabalho que eu ia fazer.

Isso reforçou a minha boa-disposição e, quando alguém seguidamente me pediu algo, não só me prontifiquei a corresponder ao pedido, como o fiz com gosto e prazer. Muitas vezes, depois disso, aquele a quem, naquela ocasião, auxiliei, retribuiu...

A boa-disposição manteve-se e, no final desse dia, ao fazer o balanço do que nele ocorrera, verifiquei que a minha boa-disposição influenciara todos aqueles com quem eu tinha interagido, que os meus sorrisos geraram muitos outros sorrisos de volta, que congregara muitas boas-vontades e que se gerara um ciclo virtuoso que levara a que tudo corresse bem e que a satisfação e boa-disposição imperassem, em mim e em todos com quem contactara.

Nesse dia, comprovei que, tal como o mal conduz ao mal, o bem gera o bem. E consolidou-se-me a noção de que tratar bem o próximo, ser simpático e empático, não só faz com que o próximo reaja no mesmo sentido, como aumenta o nosso bem-estar, a nossa boa-disposição. Em suma, que se recebe o que se dá - e exponencialmente mais.

A chave da felicidade é contribuir para a felicidade de quem nos rodeia. Poucas coisas nos aquecem mais o coração do que um sorriso feliz de uma criança. Mas, se bem pensarmos, também a constatação de um momento de felicidade num adulto influi positivamente em nós. Assim sendo, não faz sentido que ignoremos as necessidades do próximo. Pelo contrário, faz muito mais sentido ajudar o próximo a ter momentos de felicidade - porque isso nos fará duplamente felizes a nós próprios: felizes por vermos o próximo feliz, felizes porque o próximo, por sua vez, nos há de retribuir. Há quem chame a isto karma. Eu chamo-lhe, simplesmente... bom-senso.

O bem gera o bem. O belo conduz ao belo. Pelo contrário, do mal só virá mal, o abjeto só gera abjeção. E a indiferença, essa, é estéril.

O verdadeiro sentido da vida está em sermos felizes. E sermos felizes implica fazermos feliz quem nos rodeia. Logo, o verdadeiro sentido da vida está em gerar a felicidade em torno de nós e, assim, ganharmos também a nossa felicidade.

Este é, pelo menos, o meu sentido da minha vida. Serve para mim. Está certo para mim.

Mas, afinal, qual a importância do acaso na minha descoberta do meu sentido da minha vida? Para ser completamente verdadeiro... NENHUMA! Não cheguei a esta noção porque uma bela manhã liguei o rádio e ouvi uma música que me agradou. Se assim fosse, teria de concluir que, se tivesse ouvido uma música que me fosse muito desagradável, isso viria a fazer de mim um patife da pior espécie...

O caráter gera-se e aperfeiçoa-se. Mais do que consequência de uma música ouvida ao acaso, aquilo que sou e que penso resulta de toda a minha vivência, dos princípios em que acredito e procuro seguir. E muita importância nisso tem a minha condição de maçom e a vivência com os meus Irmãos, em Loja e fora dela. 

Então porque intitulei este texto "Da importância do acaso na descoberta do sentido da vida"? Porque é um título muito mais apelativo do que se simplesmente escrevesse "O sentido da vida", ou algo semelhante. Provavelmente, haverá muito boa gente que só leu este texto até aqui porque aquele título suscitou a sua curiosidade... Considere-se, pois, este título uma piada, um piscar de olho meu na tentativa de ajudar quem ler este texto a ter um momento de felicidade - e, já agora, a motivá-lo para dar felicidade aos que o rodeiam.

Façam o favor de ser felizes. Para isso, a melhor forma é... espalhar Felicidade. E verão que, no final, a vossa vida teve muito mais significado do que simplesmente viver uma vidinha de procurar ter...

Rui Bandeira

28 dezembro 2015

Maçons, "livres-pensadores"...


Aqui há uns tempos em conversa com um amigo sobre determinado tema, disse-lhe eu isto: “eu apenas te mostro o mapa, caberá a ti escolheres o caminho”. E de facto esta é a realidade em que temos de viver. Ou seja, nós somos as nossas “escolhas”, nós somos as “decisões” que tomamos e as ações que decidimos praticar.

Por mais que uns nos digam para irmos para a “esquerda” , outros para a “direita” e alguns inclusive nos digam para seguir pelo “meio”, a decisão final sairá de nós próprios, da nossa vontade, independentemente das indicações e dos conselhos que recebamos e que possam nos auxiliar na decisão a tomar.

Se decidirmos agir de certa maneira, coincidindo ou não com o que a generalidade ou somente com o que alguns considerem sobre tal , foi a nossa mente que o decidiu. 
Assim, todos nós na nossa Vida somos  - e seremos sempre - responsáveis por aquilo que decidirmos, sejam ações ou palavras e até mesmo pelos mais simples pensamentos.
- Fomos nós que os criamos/produzimos, logo somos nós responsáveis por eles, por inerência-.
Por mais influências que recebamos externamente, é o nosso íntimo, o nosso “Soi”, que irá efetuar a escolha do que concretamente iremos fazer.

Será a mais correta?!
Será a mais eficaz?!
Será a mais proveitosa?!

O que sabemos é que é a nossa decisão e apenas isso. Foi o que optámos por decidir. E que tal decisão seja sempre tomada em consciência com os princípios que advoguemos e com os quais nos sintamos devidamente identificados.
-Sejamos honestos, íntegros e coerentes nas nossas decisões!-

Os maçons, “livres-pensadores” como orgulhosamente se assumem, devem ter bem a noção de tal. Não bastará assumir algo ou determinada coisa para depois não se praticar isso na realidade.
É sempre esperado que um maçom use o seu bom senso e os seus bons costumes para decidir, se possível sempre, da melhor forma possível face às situações que a vida lhe apresenta.
-Tem o dever de agir dessa forma!-

O que poderá acontecer, e muitas vezes é inevitável tal, é que nem sempre as decisões tomadas possam ser as melhores ou mais corretas, uma vez que o maçom, tal como outro ser humano qualquer, também erra, mas como maçom tem a obrigação de aprender com esse erro e evitá-lo no seu futuro.
E aqui assumo que os maçons também erram, infelizmente algumas vezes e talvez, digo eu, vezes demais. Mas como o maçom é alguém que busca evoluir espiritualmente, ele também estará susceptível de efetuar mudanças no seu comportamento; logo também as suas decisões serão influenciadas pelas mudanças/”transformações” que sofrer e as suas atitudes se revelarão melhor no seu comportamento e carácter. Tudo isto em prol do seu auto-aperfeiçoamento enquanto ser humano. 
Isso será o tal “polimento”, o tal “burilamento da pedra bruta” que na Maçonaria tanto se fala.

Os vícios ou erros comportamentais que possam ter existido na sua conduta no passado, deverão ficar aí mesmo, no passado. E “como de passado apenas vivem os museus” (como é usual se afirmar), no momento da Iniciação, no momento em que o recém neófito encontra a sua primeira centelha da Luz, nasce como uma nova pessoa, um “novo Homem”, e como tal terá acesso a “ferramentas sociais e espirituais” que poderá utilizar para melhor atingir o seu “nirvana”, por assim dizer. 

O que interessa por vezes não é o mapa mas o caminho que se seguiu, mesmo para o nosso auto-aperfeiçoamento, o que importa é que decidimos livremente as decisões que tomámos e que escolhemos sempre, mediante o que a vida nos vai apresentando e mediante as condições que temos, mas que foram  as melhores decisões que considerámos que podíamos e/ou devíamos tomar ou ter tomado. Isso sim, é o mais importante nisto tudo.

Este caminho que seguimos é feito sozinho (somos nós que o temos que fazer) mas não é solitário (pois outros o fazem também) e temos ter a consciência e a noção disto.
Se olharmos para o lado veremos alguém a viver as mesmas situações ou outras, com decisões tomadas semelhantes ou completamente diferentes daquelas que, se fosse connosco, tomaríamos. A vida é isto mesmo, cheia de imponderáveis e é essa uma das mais valias de viver, a cada passo dado, a cada momento, nunca sabemos o que se seguirá, apenas o podemos tentar prever e nada mais.

O que concluindo posso afirmar é que independentemente das decisões e escolhas que tomemos, somos nós que o deveremos fazer e não outrem. E por elas nos responsabilizarmos. São estas decisões que nos definem como pessoas!
A  grande diferença que temos em relação aos restantes seres vivos é a nossa “massa cinzenta” e que é devido a ela que pudemos livremente pensar.
É altura de a começarmos a valorizar mais e principalmente em a começar a usar de uma forma correta e eficiente.
E posto isto, porque não… pensar?!

21 dezembro 2015

Boas Festas!


Entrámos na reta final do ano civil, quando o ambiente e a disposição nos relembram a cada momento que é a altura das Festas. As Festas por alturas do solstício de inverno (no hemisfério norte) são assinaladas desde a mais remota Antiguidade. O dia do solstício de inverno constitui o máximo do esforço, da privação, da falta de luz e de calor. É o menor dia do ano, é a maior noite do ano. Porque sentiu a Humanidade a necessidade de festejar este tão soturno, breve e desagradável dia? Porque marca o ponto de viragem, porque assinala a ocasião em que finda o tempo de tudo piorar, de cada dia que vem ser um pouco menor que o anterior e cada noite um pouco maior, para tudo começar a melhorar, a paulatinamente, dia a dia, aumentar o tempo em que o Sol nos ilumina e a diminuir o tempo em que a escuridão da noite nos incomoda.

Sempre admirei esta capacidade do bicho-homem de festejar, de assinalar o momento em que o mau é pior, em que se bate no fundo, porque ela significa que a Humanidade tem a importante caraterística de preservar a Esperança e de ver para além do momento. Quando se bate no fundo, daí para a frente é sempre a subir. Quando se atinge o máximo de escuridão, daí em diante a luz continuamente aumenta. O festejo do pior momento é afinal o festejo da noção de que o pior passou, a partir de agora o pior vai sendo cada vez menos mau, cada vez mais facilmente suportável, até que saímos do tempo e do território do pior e passamos a estar na altura do melhor. 

Na Grécia antiga eram as Festas Dionisíacas, nos tempos da antiga Roma estas festividades eram as Saturnálias, na sociedade europeia cerca dos últimos dois mil anos é o Natal. Evoluem as sociedades, sucedem-se os costumes e as crenças, mas o básico continua no âmago dos homens: a celebração por volta do solstício de inverno, chame-se-lhe o que se lhe chamar, é feita. As tribos primitivas refugiavam-se nas suas cavernas, de volta do fogo, reunindo a tribo em torno da prole. Hoje, bem vistas as coisas, não agimos de forma muito diferente...

É chegado o tempo de cada um de nós se dedicar à sua família, de fortalecer os laços com o seus. É um tempo de pausa, que reforça os nossos grupos de gente chegada. As famílias - todo o tipo de famílias, das mais convencionais às mais arrojadas e liberais - reagrupam-se e cada um relembra a si mesmo que, por muito individualista que cada um seja, no fundo, no fundo, somos inapelavelmente todos animais gregários.

E este mergulhar no interior do grupo dos nossos mais próximos revigora-nos para prosseguirmos o nosso caminho, reconforta-nos com o rememorar dos tempos em que éramos meninos, recorda-nos que, façamos nós o que façamos, corramos o risco que corrermos, afastemo-nos o que nos afastarmos, existe sempre uma retaguarda onde somos bem-vindos, onde nos podemos acolher, aonde vale sempre a pena voltar.

As luzes são bonitas, os presentes são agradáveis, as mesas fartas são reconfortantes, as comemorações e as cerimónias dos nossos hábitos e das nossas crenças são aprazíveis, mas, para mim, o essencial é este retorno, esta necessidade, de anualmente superarmos a altura mais fria, mais desagradável, mais negra, do ano junto dos nossos, entre os que nos são queridos. Em conjunto. Juntos. E festejar o facto de juntos superarmos o tempo difícil e rumarmos a melhores dias.

Festas Felizes!

Rui Bandeira 

14 dezembro 2015

O Dever, caminho para a realização (republicação)

O texto que hoje republico por o considerar deveras relevante para tal, viu a "luz" há cerca de 2 anos, em Novembro de 2013, e hoje tal como nessa altura, era e é um texto bastante interessante para ler, reler e fundamentalmente, reter(!).

Rui Bandeira escreve de uma forma bastante simples e de uma forma acessível a quem pouco ou nada sabe sobre a Arte Real, eu inclusive que debito umas tenras linhas de quando a quando, apenas posso afirmar que pouco sei, e mesmo assim já é muito para mim.
Aproveito para fazer aqui o meu  reparo e o agradecimento ao Rui por aquilo que nos ensina e partilha com a sua sabedoria e conhecimentos adquiridos pela sua experiência, tanto maçónica como profana, porque uma não é indiferente à outra... e desejar que assim o continue a fazer por muito tempo.

E como o texto versa o "Dever", aqui ficou também demonstrado por mim um dever que deveria ser natural ao ser humano, a "Gratidão".
Todavia, se agradecer algo a alguém deveria ser natural como afirmei, fazê-lo nem sempre é fácil para quem o faz e também para quem o recebe, pois tal pode ser constrangedor quando se faz algo sem se esperar qualquer tipo de recompensa. E nisso o Rui fá-lo muito bem! Ensina, informa, corrige, debate e partilha o que sabe e conhece sem esperar por qualquer tipo de retribuição. Fá-lo porque considera um dever o fazer e nada mais.

Pondo agora de parte as loas que teço ao Rui, senão em vez de lhe levar um avental terei de lhe levar um babete no próximo encontro (just kidding) - Elogios estes, todos eles atribuídos a quem os merece!- deixo-Vos com o texto que ele escreveu:

"O Dever, caminho para a realização

Os maçons falam muito de Dever. É natural. O aperfeiçoamento individual a que se dedicam implica, inevitavelmente, que identifiquem o que têm a corrigir e definam como fazer a correção, isto é, o que se deve fazer para melhorar.

O caminho do maçom não é uma avenida de direitos, é uma vereda de deveres a cumprir. Mais: um conjunto de deveres que o maçom escolhe cumprir.

Na ética maçónica, em primeiro lugar vem a obrigação, o cumprimento dos deveres - só depois se atenta nos direitos. Porque o caminho é este, não há constrangimentos nem vergonhas na reclamação ou no exercício dos direitos, porque se interiorizou que estes são o reverso correspondente aos deveres que se cumprem. Assim, o cumprimento do dever é preâmbulo do exercício do direito - nunca o oposto.

Esta postura, que é o oposto do facilitismo e do hedonismo tão propalados por certos media comummente referidos de cor-de-rosa, que insidiosamente vão influenciando as mentes mais frágeis ou menos avisadas, é, no entanto, a mais consistente com as caraterísticas da espécie humana - as caraterísticas que nos permitiram evoluir, descer das árvores, deixar de ser meros caçadores-recoletores, nos possibilitaram aprender a produzir o que necessitamos para consumir e até mais do que aquilo que necessitamos, enfim, o que nos fez chegar, como espécie, ao estádio atual (no melhor e no pior...) e nos fará, creio-o firmemente, evoluir sempre mais e mais.

Ao contrário do que se possa levemente pensar, desde a mais tenra infância que o bicho-homem valoriza mais o que deve fazer, o que esforçadamente conquista, o que trabalhosamente obtém, do que aquilo que recebe sem esforço, fonte porventura de prazer imediato, mas arbusto sem raiz sólida para segurar o interesse por muito tempo. Todos aqueles que educam crianças verificam que, ao contrário do que as próprias julgam, elas não apreciam tanto assim - e, no fundo, temem - a liberdade total, a possibilidade de fazerem o que querem, quando querem, como querem. Se isso lhes for temporariamente possibilitado, poderão extasiar-se perante a ausência de limites, mas não tarda muito que procurem o aconchego, a segurança, a certeza das fronteiras, dos limites, das restrições - contra as quais tanto refilam, mas que tão securizantes são. Afinal de contas, quando não há limites, como se pode transgredir? Como se pode forçar barreira inexistente para ir além dela? E o crescimento, a evolução humana, da criança como da espécie, é feito de transgressões, de ultrapassagens de barreiras, de partidas para o incerto apenas possíveis porque se sabe que, se e quando necessário, se pode recuar e voltar para o certo e seguro...

dever é, pois, essencial para a espécie humana. Para o cumprir e, por vezes, para o transgredir, aceitando os riscos e as consequências, mas também buscando o além para lá do horizonte...

Os direitos possibilitam-nos satisfação e conforto, mas são redutores, limitadores, meras pausas agradáveis, obviamente necessárias, mas afinal fatores de simples manutenção, não de conquista ou avanço. Os direitos gozam-se e, ao gozarem-se, fica-se - não se vai, nem se avança. É no cumprimento do dever, com o esforço e o custo que isso necessariamente implica, que se avança, se conquista, se constrói, se vai além.

Gozar os direitos é obviamente bom e agradável. Mas, bem vistas as coisas, cumprir os deveres, ainda que  tal implicando trabalho, custo, esforço, é melhor. Porque no fim do cumprimento do dever acaba por estar sempre um prémio. Por vezes de simples, mas saborosa, satisfação. Outras vezes com vitórias, com prazeres, com ganhos que não se teria se se tivesse mantido no simples gozo dos direitos que já se tinha, sem mais nada fazer. A áurea mediocridade pode ter brilho - mas não deixa de continuar a ser mediocridade...

Os maçons falam muito do Dever, dão atenção aos seus deveres, cumprem os seus deveres. Não por serem masoquistas. Pelo contrário: por entenderem que é assim que conseguem realizar-se. E a realização pessoal é mais do que meio caminho andado para a felicidade...

Rui Bandeira  "


07 dezembro 2015

Verdade



Depois de ter dedicado um texto ao primeiro termo da divisa utilizada pela maçonaria de língua inglesa, Amor fraternal, e um segundo texto dedicado ao segundo termo, Auxílio, encerro o ciclo com algumas considerações sobre o terceiro termo da trilogia, Verdade.

Este tema, já foi soberbamente tratado neste blogue pelo Paulo M., num conjunto de cinco textos que intitulou "Perceção, verdade e tolerância", que facilmente pode ser localizado através do marcador Verdades. Em muito concisa, e por isso grosseira, súmula, no primeiro desses textos, assinala-se a limitação dos nossos sentidos e do nosso cérebro no que toca ao reconhecimento do que designamos por verdade. No segundo, as limitações que a linguagem coloca à transmissão da verdade percecionada. No terceiro, a diferença entre a ciência e a fé, entre o que se sabe ser verdade e o que se crê o seja. No quarto desses textos, refere-se como cada uma das várias religiões possui, não uma, mas a (sua) verdade, a qual é incompatível, pelo menos na sua totalidade, com as igualmente absolutas verdades das demais religiões. Finalmente, no último desses textos, assinala-se que a maçonaria não toma partido entre religiões, até porque "não pretende, ao contrário da Religião, tratar da relação entre o Homem e o seu Criador; apenas trata da relação entre o Homem e o Homem".

Mas então se os nossos sentidos e o nosso cérebro são suscetíveis de ser enganados na determinação da verdade, que Verdade é essa que a Maçonaria enfatiza na sua divisa? Se a nossa linguagem é inevitavelmente imperfeita na transmissão da Verdade, que Verdade transmitem os maçons? Se o que se sabe ser verdade em bom rigor não é completa e absolutamente demonstrável, apenas se pode almejar a concluir que não está demonstrado ser falso, e se há verdades que não são passíveis de serem demonstradas pela razão, qual, afinal, o objeto da Verdade da divisa maçónica? 

A meu ver, a resposta está, não na busca do Absoluto, mas na descoberta do individual. A Verdade Absoluta é inatingível aos humanos, pelo menos neste plano da existência. Pelo método científico, a Humanidade vai-se cada vez mais aproximando da fixação de muitos aspetos da Verdade - mas frequentemente, cada novo avanço num aspeto acaba por impor a conclusão de que o que se tinha por certo noutro aspeto, afinal não é verdadeiro. Muitas "verdades" científicas de ontem está hoje comprovado que afinal não são tão verdadeiras. Quantas verdades científicas hoje indiscutivelmente aceites amanhã se comprovará afinal não serem bem assim? A crença, ou a fé, bem vistas as coisas, não passa de um (necessário?) artifício que nós, imperfeitos humanos, utilizamos para conformarmos a nossa necessidade de atingir a verdade à inevitabilidade da impossibilidade de satisfação dessa necessidade.

A Verdade que importa, a Verdade da divisa, então não estará no inatingível conceito absoluto, mas apenas - e muito é! - em cada um de nós. A Verdade que interessa é a Verdade do que cada um É. Não é isto de pouca monta! Cada um tomar consciência da sua Verdade, do que efetivamente É, despojado de todas as máscaras, artifícios e armaduras que a Vida nos constrange a usar para (sobre)vivermos em Sociedade, não é tarefa simples nem fácil. Os nossos instintos básicos (desde logo o de sobrevivência), combinados com os condicionamentos da nossa educação e aprendizagem, condicionam-nos, desde muito cedo e muito profundamente a escondermos as nossas imperfeições, incapacidades, fraquezas, dos outros. Aprendemos que estas imperfeições, incapacidades, fraquezas, são vulnerabilidades que constituem alvos para os ataques de outrem. Por isso, desde a mais tenra infância vamo-nos condicionando (viciando?) a escondê-las de todos os outros. E acabamos por o fazer tão bem, mas mesmo tão bem, que até o escondemos de nós próprios! Acabamos por fingir para nós próprios sermos algo diferente do que na realidade somos. Essa inconsistência entre a nossa imagem - perante os outros e perante nós próprios - e a nossa verdadeira natureza, mais tarde ou mais cedo paga-se, por vezes com preço elevado. O nosso desconforto com a inconsistência entre o que somos e o que nos obrigamos a mostrar (e a mostrar-nos...) paulatinamente vai pesando, vai-nos limitando, vai-nos afetando, vai-nos desgastando. Alguns sentem-no como um simples cansaço (quão disparatado é classificar de simples o cansaço de nós próprios...), que vamos gerindo com uma férias ou uns momentos de cumplicidade e recolhimento com os nossos entes queridos. Outros vão cada vez gerindo pior a situação e sobrevêm as depressões, as perdas do gosto da vida...

A solução está em perder o receio e adquirir a capacidade de espreitar por debaixo da armadura, por detrás da máscara, ignorando os artifícios, e confrontarmo-nos com o que realmente somos, identificando as nossas forças, mas também as nossas fraquezas, as nossas virtudes e os nossos vícios, os nossos anseios e os nossos medos. Essa audácia permite-nos reconhecermo-nos de novo a nós próprios, como realmente somos e não como mostramos, possibilita-nos a lufada de ar fresco do reencontro com a nossa pureza - a pureza que julgávamos perdida e que, afinal, cada um de nós conserva, só que que subjugada, embrulhada, tapada, escondida, por mil e um artifícios, máscaras, armaduras e desculpas.

Esse trabalho de redescoberta da nossa Verdade é propiciado pela vivência maçónica. E é libertador. Da ganga que insensivelmente fomos acumulando, do peso de tudo o que usamos para nos escondermos. Torna-nos mais livres e mais leves!

Mais: os maçons aprendem não apenas a redescobrir a Verdade que efetivamente são e escondem dentro de si, mas também a partilhar essa Verdade com os seus Irmãos, permitindo-se despojar das suas defesas perante estes - porque sabem que, em Loja e entre as Colunas de seus Irmãos estão seguros e protegidos e livres de ataques. Assim cada um não só pode ver-se como na Verdade é, como também pode ter a noção de como realmente são os seus Irmãos. E essa mútua transparência permite que todos se descubram, afinal, tão profundamente iguais, no fundo das suas incomensuráveis diferenças! Talvez isto permita perceber porque e como se estabelecem os fortes e profundos laços entre os maçons!

A Verdade da divisa é, afinal, a Verdade inerente a cada um, por ele redescoberta e posta em comum com os seus Irmãos.

É na franca exposição da Verdade que cada um é que se possibilita identificar o Auxílio de que cada um carece e do que cada um pode prestar e a todos envolver no Amor Fraternal.

Rui Bandeira

30 novembro 2015

Compromisso (republicação)

O texto que hoje revê a luz é da autoria do Rui Bandeira e assenta naquilo que enquanto alguns possam considerar como deveres ou obrigações conforme do seu ponto de vista e forma de estar, eu, pessoalmente, considero tal como "qualidades". Qualidades essas que acho que devem ser intrínsecas aos maçons.
Desta forma abaixo Vos deixo transcrito o referido texto e que também ele pode ser consultado na sua versão original aqui.

"Compromisso

Porque a Maçonaria é um contínuo exercício de dar e receber entre cada maçom e os seus Irmãos, cada um aperfeiçoando-se através do que obtém do contributo do trabalho dos demais, a condição do sucesso nessa pretendida melhoria de todos pode resumir-se numa palavra: COMPROMISSO.

COMPROMISSO em relação à assiduidade de cada um (pois quem não está, não participa). COMPROMISSO em relação ao cumprimento dos deveres de cada um, designadamente quanto ao pagamento das respetivas quotas (pois a manutenção da estrutura tem custos, que necessariamente têm de ser equitativamente suportados por todos os que a integram). COMPROMISSO em relação ao trabalho, ao estudo individual, em relação à partilha dos resultados do seu esforço.

Uma Loja maçónica potencia, acrescenta, valoriza, através de todo o grupo, a valia individual de cada um. É um fermento que auxilia no crescimento da massa que cada um amassa. Mas o fermento de nada serve se não houver farinha para amassar ou se ninguém se dispuser a executar ou a cooperar na tarefa de fazer a massa...

Uma Loja maçónica vale a soma do valor de cada um dos seus obreiros, acrescentada da mais-valia resultante das sinergias, complementaridades e eficiências geradas pela cooperação no grupo. Mas de nada serve o valor que potencialmente algum elemento possa dar ao grupo. Só importa o que efetivamente dê, transmita, acrescente.

Uma Loja de eminentes pessoas que se juntem apenas dar conta das respetivas eminências mas se não deem ao trabalho de produzir, fazer, compartilhar, pode ser uma eminente Loja - mas está na iminência de ser um completo e absoluto fracasso!

Por seu turno, uma Loja que agrega homens comuns, sem particular engenho, sem especial importância, sem extraordinária inteligência, se estes dedicada e persistentemente trabalharem, partilharem, propuserem projetos, debaterem e executarem alguns, fará sucessivamente pequenas coisas, modestos empreendimentos, pequenas obras - mas o conjunto do que fará terá cada vez mais significado. Cada um sentir-se-á satisfeito com cada pequena conquista e propenso a continuar a ajudar, a colaborar, a propor, a fazer.O esforço de cada um, devidamente coordenado, propicia resultados coletivos visíveis. Essa Loja pode ser de formiguinhas - mas será uma Loja bem mais satisfatória do que a "eminente" Loja de homens eminentes que nada façam além de observarem as suas mútuas "eminências"...

O COMPROMISSO tem de ser persistente, constante. De pouco vale hoje o que se fez de bom há anos atrás. Será uma história bonita, mas é já passado. Serve como exemplo, como inspiração, mas não substitui o trabalho de hoje para lograr a realização de amanhã.

O maçom que se queixa de que a sua Loja nada faz, que as sessões "são sempre a mesma coisa", se só faz essa constatação e nada mais faz para superar aquilo de que se queixa, esse é precisamente um dos culpados da situação que acusa. É estulto queixar-se que "a Loja não tem projeto". O que há a fazer é tomar a iniciativa de fazer, ele próprio, algo que considere valha a pena ser feito - por pequeno, por modesto que seja. E, pelo exemplo e persuasão, levar outros da Loja a também tomarem a iniciativa de fazer pequenas coisas. Ao fim de algum tempo, três, cinco, dez, vinte pequenas coisas feitas já constituem algo que se veja, algo que merece alguma satisfação pelo dever cumprido...

Ou então, em vez de se aguardar, expectante mas indolentemente, que a Loja imagine, descubra, prepare, debata, organize e execute o fantástico, importantíssimo e relevantíssimo projeto que gravará a letras de ouro o nome da Loja nos anais da História Maçónica e quiçá mereça uma nota de rodapé nos manuais do ensino elementar das futuras gerações, talvez seja melhor conceber um pequeno projeto, dar vida a uma ideia cuja forma final ainda nem sequer se saberá qual vai ser, combinar com dois ou três dos seus Irmãos e começarem a executar. Não é necessário que toda a Loja formalmente adote o projeto (mas convirá que não se trate de iniciativa que mereça a discordância da Loja...). Dois ou três começam. Dois ou três ou quatro dão os primeiros passos de algo que é feito em nome da Loja, enquanto elementos da Loja. Se efetivamente a ideia tiver pernas para andar, mais cedo do que mais tarde os demais ajudarão, incentivarão, participarão. E, quando nos damos conta, o projeto é já mesmo o projeto da Loja - não dos dois, três ou quatro que o iniciaram -  e terá condições para ser prosseguido enquanto houver Loja...

Na Loja Mestre Affonso Domingues nunca nos preocupámos em fazer grandes organizações. Tudo o que na nossa Loja se foi fazendo começou da mesma maneira: dois ou três ou quatro conversam e avançam, os outros vão dar uma ajuda e, sem disso nos darmos conta, o que se faz é já de todos, é já da Loja. Foi assim que começaram as ações de doação de sangue - e há mais de dez anos que periodicamente ajudamos neste campo. Por vezes com poucas doações, outras vezes com mais gente a associar-se. Mas faz-se! Quem começou já não está na Loja há muito tempo. Os mais novos nem sequer ouviram falar dele. Mas a semente que lançou germinou e, mais de dez anos passados, uns anos mais, outros anos menos, os frutos continuam. É um contributo modesto, quase apenas umas gotas no oceano das necessidades, sabemo-lo. Mas persistirmos em dar esse contributo modesto e esperamos continuar a fazê-lo por muitos mais anos. É do conjunto de todos os modestos contributos que se satisfazem as necessidades de sangue no País.

Este blogue começou por ideia de um, concretização de outro e imediata adesão de um terceiro. Os três autores iniciais não criaram o "seu" blogue. Criaram um "blogue escrito por maçons da Loja Mestre Affonso Domingues". Oito anos passados, outros se juntaram, mais de 1.300 textos estão à disposição de quem os quiser ler. E espero que continue mesmo quando já nenhum dos mentores iniciais nele escrever...

sítio da Loja  foi criado por iniciativa de um, com a ajuda de outro, foi remodelado e mantido por um terceiro, que conta agora com a ajuda de um quarto e os contributos de todos os obreiros da Loja. Contém já um enorme acervo de textos postos à disposição de qualquer pessoa.

A Loja não gastou um minuto sequer a discutir se criava um sítio na Internet ou se mantinha um blogue. Uns avançaram, outros ajudaram, todos contribuem quando é preciso ou têm disponibilidade. Mas a obra está feita e está à vista de todos. E não é obra do Manuel, do António ou do Joaquim. É obra dos obreiros da Loja Mestre Affonso Domingues. 

Os obreiros da Loja Mestre Affonso Domingues têm um COMPROMISSO com a Loja. É estarem presentes. É tudo livre e lealmente debaterem, sem o mínimo problema, tolerando as posições divergentes, cada um concordando ou discordando quando assim o entender, e todos sermos um grupo unido e solidário. É cada um sentir-se à vontade para arrancar com um projeto, executar uma ideia, pedindo e obtendo, ou obtendo mesmo sem pedir, o apoio e a colaboração de outros obreiros - se valer a pena e for necessário, de toda a Loja.

O COMPROMISSO dos maçons da Loja Mestre Affonso Domingues não é de fazer a mais importante e merecedora de elogios obra que o espírito humano possa conceber, O seu COMPROMISSO é ajudar o seu Irmão a levar a cabo a sua ideia, é avançar com a execução das nossas ideias, sabendo que algum ou alguns dos nossos Irmãos estará ou estarão presentes com a sua ajuda.

O nosso COMPROMISSO na Loja Mestre Affonso Domingues é ir fazendo, em cada momento, o que for preciso para ajudar. Assim fazemos. Às vezes mais, às vezes menos, às vezes muito, às vezes pouco, às vezes bem, às vezes nem tanto assim. Mas, bem vistas as coisas, sempre algo se faz!

Rui Bandeira "

23 novembro 2015

A "Hipótese Deus" (Autor: João Anatalino)



Neste blogue, por regra, publicam-se textos da autoria de Mestres Maçons da Loja Mestre Affonso Domingues. No entanto, ocasionalmente publicam-se também textos de outros autores, quando se entende que, pela sua qualidade e interesse, se justifica essa publicação aqui - desde que, bem entendido, se disponha de autorização para se proceder à mesma, dada por quem dispõe de legitimidade para a dar. O texto que se segue, da autoria de JOÃO ANATALINO, escritor brasileiro, foi originalmente publicado no sítio da Internet deste escritor (http://www.joaoanatalino.recantodasletras.com.br/), e a sua republicação aqui é efetuada ao abrigo da licença Creative Commons que o referido autor concede, no mencionado sítio da Internet. Vale (muito) a pena lê-lo!

 A “HIPÓTESE DEUS”
                          
Não faz muito tempo que os cosmologistas começaram a aceitar a possibilidade de que o universo pode ser uma estrutura perfeitamente planejada e que ele está sendo construído de certo modo. A crença de que ele era estático e igual em toda parte passou a ser substituída pela ideia de um “ser” em constante evolução, onde as leis naturais funcionam como uma espécie de “constituição” reguladora desse processo. 
Nesse sentido, esses cientistas começaram até a considerar a possibilidade da chamada ‘Hipótese Deus”, admitindo finalmente a existência de uma Mente Universal na origem desse planejamento. Essas constatações tem sido facilitada pelos próprios métodos científicos utilizados por esses estudiosos em suas investigações, que mostram, na organização estrutural da matéria física, uma perturbadora semelhança com a organização do próprio universo em sua estrutura cósmica. Com essas coincidências, perfeitamente prováveis por medições científicas, já não é mais possível admitir, de pleno, que o universo seja regido unicamente por leis mecânicas, sem uma Vontade a organizar esse processo, como antes se admitia no meio científico. Laplace, por exemplo, dizia que Deus era uma hipótese perfeitamente desnecessária. Mas quando se olha a estrutura de um átomo e a estrutura de um sistema planetário, não se pode deixar de perceber a estreita semelhança entre as duas. É nesse sentido que a pesquisa da estrutura da íntimo da matéria tem revelado aos cientistas o segredo da constituição do universo, e nele cada vez mais se nota a presença de uma “Vontade” que o governa. 
Hoje se sabe que o universo é constituído de tal modo que é difícil, se não impossível, não pensar em uma ordem natural a gerir o processo da sua formação. Essa constatação é feita pelo fato de que se pode reconhecer, no processo de geração da matéria universal, a existência de três funções que seriam impossíveis de ser encontradas em uma ordem puramente mecanicista: a complexidade, que permite aos elementos componentes da matéria física se organizar em graus de complexidade cada vez maiores; a mutabilidade, que permite a mudança gradativa de suas composições e a perenidade, que admite a mudança de sua estrutura sem, no entanto, eliminar as propriedades particulares de seus componentes. Tudo isso só é possível na existência de um Sistema perfeitamente planejado, como bem o definiu Mallowe.[1]



          


Em um de seus mais interessantes trabalhos, o físico Stephen Hawking situa o início do tempo no momento de nascimento do universo conhecido, momento esse chamado de big-bang.[2] Assim, o tempo, para os cientistas, começou junto com o espaço, e por isso ele sempre é representado por duas linhas que começam em um ponto zero e se alongam na mesma proporção, em setas orientadas em duas dimensões: a dimensão do tempo, que nos faz pensar em eternidade e a dimensão do espaço, que nos faz pensar em infinidade.
       
Quando se começa a especular sobre esse tema, surge a intrigante pergunta: Se foi Deus que fez o universo, o que Ele era e o que fazia antes de começar a fazê-lo? Ele já existia antes disso? Ou Ele “nasceu” junto com o universo? 
     “Há cerca de 15 bilhões de anos”, escreve Hawking, “ todas (as galáxias) teriam estado umas sobre as outras, e a densidade teria sido enorme. Esse estado foi denominado átomo primordial pelo sacerdote católico Georges Lemaiter, o primeiro a investigar a origem do universo que agora chamamos de big-bang.” A partir desse momento, segundo essa tese, o universo, que estava contido nessa região extremamente carregada de energia, tornou-se uma imensa bolha de gás que nunca mais deixou de se expandir.[3]                                            
A Bíblia, ao registrar esse fato não é menos metafórica e misteriosa do que os compêndios científicos que procuram explicar como o universo nasceu. Ela fala que “no início Deus criou o céu e a terra. A terra, porém, estava informe e vazia e as trevas cobriam a face do abismo.” E então, do meio ás trevas Deus fez sair a luz. E Deus viu que a luz era boa e por isso a separou das trevas.[4]
O texto bíblico parece sugerir que Deus já existia antes de começar a fazer o universo. Assim, Ele não pode ser o universo, como sustentam os adeptos do panteísmo, que identificam Deus com a sua própria criação, como se esta fosse algo capaz de existir por si própria.[5]
A Bíblia identifica Deus como “o Espírito que movia-se sobre as águas.” Expressão enigmática que nunca pode ser explicada a contento dentro da lógica comum, já que, se o mundo ainda era pura trevas e a terra era informe e vazia, que “águas” eram essas sobre as quais o Espírito de Deus se movia? Pois, ao que parece, elas já existiam antes de Deus separar a luz das trevas. Assim, a Bíblia nos dá uma identificação e uma ideia do que era Deus antes de começar o mundo: Ele era “Espírito”, seja qual for o significado que o cronista bíblico quisesse dar á essa expressão. Mas não responde á segunda pergunta: O que Ele fazia antes de começar o mundo?
Essas especulações se tornaram tão intrigantes que os próprios rabinos israelenses, produtores e comentadores da Bíblia, tiveram que quebrar a cabeça para responder á multiplicidade de perguntas que surgiram a esse respeito. Foi então que nasceu, entre os mestres cabalistas, a chamadaGrande Assembleia Sagrada, que se refere a um grupo de rabinos dedicados ao estudo da personalidade do Ser Supremo, sua natureza e seus atributos. Das especulações produzidas por esse grupo surgiu a chamadaSiphra Dtzenioutha, conhecido como o “Livro do Mistério Oculto”, parte mais misteriosa do Sepher há Zhoar, a bíblia cabalista. [6]

Para responder á intrigante pergunta de quem era Deus e o que fazia antes de começar a fazer o universo físico, esses estudiosos criaram os conceitos de “Existência Negativa” e “Existência Positiva” termos utilizados pelos cultores da Kabbalah mística para designar Deus “antes” e “depois” de fazer o mundo. Nesse sistema, Deus (Ain em hebraico), é visto como uma forma de "energia" que em dado momento expandiu-se para fora de si mesmo, tornando-se o universo material (Ain Sof Aur- אין סוף). Esse termo, na Kabbalah, significa Luz Ilimitada. É a luz que se espalhou pelo nada cósmico, dando origem a tudo que existe. Essa visão mística do nascimento do universo, expressa no Livro do Mistério Oculto (Siphra Dtzenioutha), é definida com a misteriosa frase “antes que o equilíbrio se consolidasse, o semblante não tinha semblante[7].
Aqui está inserta a estranha idéia de que antes de fazer o mundo, ou seja, antes de Deus manifestar-se como existência no mundo das realidades sensíveis, Ele já existia como potência, que embora não manifesta, já continha todos os atributos do universo manifestado. Ele já era todas as coisas, que viviam uma “existência negativa”, na qual a mente humana não pode penetrar justamente porque ela só pode conceber um plano de existência positiva, onde as ações podem ser identificadas e suas causas recenseadas.
Agora, como capturar uma realidade que está além da nossa capacidade de mentalização? Sabemos que ela existe porque suas manifestações emanam para o plano da realidade sensível e é causa de fenômenos observáveis e mensuráveis. Quem sabe definir o que é a eletricidade, por exemplo? Sabemos como ela se manifesta, como atua e até já aprendemos a usá-la para as nossas finalidades, mas o que ela é nenhum cientista, ou filósofo, até agora, ousou afirmar.
“Antes que o equilíbrio se manifestasse, o semblante não tinha semblante” é uma forma metafórica de explicar aquilo que a nossa linguagem não consegue articular num discurso lógico. Então os cabalistas recorrem á metáfora, ou ao símbolo, para dizer que a criação divina já existia antes de existir. Ou seja, antes que o universo adquirisse uma forma, ele já estava na Mente de Deus, como presença sem forma, sem nome, impossível de ser pensado pela mente humana. Era o próprio Caos primordial, no dizer dos filósofos gnósticos, que ao “vazar” para além de si mesmo adquiriu uma organização.  
Deus já era antes de ser o universo. Ou como diz Rosenroth “o universo inteiro é a vestimenta da Divindade: Ele não apenas contém tudo, mas também Ele mesmo é tudo e existe em tudo”. Essa é outra maneira de dizer que Deus, em sua Existência Negativa, é o “Espírito que se move sobre as águas” e na sua “Existência Positiva”, ele é o próprio universo.[8]
Outra visão dessa realidade pode ser posta em forma de analogia, seguida de um símbolo mediato. Os cultores da Kabbalah mística dizem que “Deus é pressão”, e que sua manifestação no mundo das realidades fenomênicas tem a forma de um círculo cujo centro está em toda parte e cuja circunferência está em parte alguma. Sabemos que todo círculo tem um centro e uma circunferência. O centro é o ponto de onde ele emana e a circunferência uma corda que o limita. Dizer que o centro do círculo está em toda parte e que sua circunferência está em parte alguma é falar de um espaço que não começa em ponto algum e não acaba em lugar nenhum, uma dimensão sem início nem fim. Ou como diz MacGregor Mathers, “ O oceano sem limites da luz negativa não procede de um centro, pois não o possui. Ao contrário, é essa luz negativa que concentra um centro, a qual é a primeira das sefiroths, manifestas, Kether, a Coroa.”  [9]

Assim, essa idéia da divindade supre a necessidade que a mente humana tem de situar um início para o universo e imaginar, não um fim para ele, mas uma finalidade. Destarte, a dimensão da Existência Negativa é um momento anterior á qualquer manifestação da Divindade no terreno das realidades positivas, ou seja, um estado latente de potência concentrada em si mesma, que em dado momento cedeu á “pressão” interna da sua própria potencialidade e “gerou a si mesmo”. Figurativamente, o big-bang seria o “parto de Deus”, o qual, simbolicamente poderia ser representado por um ponto dentro do círculo, como o faz Madame Blavatsky em sua cosmogonia da Criação.

                                

                                                        
Em analogia ao conceito bíblico de criação, poderíamos dizer que o big-bang dos cientistas equivale ao momento em que Deus “separou a luz das trevas”, ou seja, o momento em que o Grande Arquiteto do Universo “pensou” o universo, na tradição maçônica.
Essa é a base da formidável arquitetura universal que a inteligência dos sábios rabinos de Israel conceberam e que a sensibilidade mística dos espíritos que não se contentam em viver no estreito território que a linguagem lógica nos obriga a permanecer adotou. Entre estes estão os maçons espiritualistas, que veem na sua Arte muito mais do uma mera prática social derivada de uma tradição que incorpora ideias esotéricas.
 O conceito de que Deus é o Grande Arquiteto do Universo tem sido empregado em muitos sistemas de pensamento e o cristianismo místico o tem adotado em várias de suas manifestações. Ilustrações de Deus como o arquiteto do universo podem ser encontradas nas nossas Bíblias desde os primeiros séculos da Idade Média e tem sido regularmente empregadas pelos doutrinadores cristãos de todas as tendências.

São Tomás de Aquino, um dos mais respeitados filósofos da Igreja Católica, sustentou a existência de um Grande Arquiteto do Universo, que seria a Primeira Causa de todas as coisas. Por seu turno, João Calvino, um dos mais influentes divulgadores da Reforma Protestante, também se refere á Deus como sendo uma espécie de Arquiteto, pois seu trabalho de construção do universo material, o cosmo, e do universo espiritual (a humanidade em sua história moral) assemelha-se á construção de um grande edifício.[10]
Na Maçonaria, o termo Grande Arquiteto do Universo é uma metáfora que, na sua origem, tem inspiração cabalística. Era um termo aplicado á divindade pelos maçons operativos, construtores de catedrais e grandes obras públicas, que viam em Deus o autor dos planos estruturais do edifício cósmico e por analogia, da humanidade. Nesse sentido, o mundo físico e mundo espiritual eram construídos a partir de uma estratégia desenvolvida por Deus, que como se fosse um arquiteto, pensava os planos do universo e seus mestres (os anjos) e pedreiros (os homens) o construíam.
Essa era uma idéia extraída da interpretação cabalística da Bíblia, pois a Kabbalah vê o universo como se fosse um edifício sendo construído em dez etapas de manifestação da potência divina, que é simbolizada na chamada Árvore da Vida, ou Árvore Sefirótica, símbolo de extraordinário conteúdo esotérico, que se presta às mais diversas analogias e ilações, unindo a mística das antigas religiões do oriente com as modernas descobertas da física atômica.
O termo “Grande Arquiteto do Universo” também foi apropriado pela filosofia gnóstica, sistema de pensamento onde o Criador “gera” um casal real (Cristo e Sofia, o primeiro par de eons), a partir do qual a sabedoria (gnosis) é trazida para o mundo. Através da atuação desse “casal cósmico”, nascem os “eons” (anjos, para uns, arquétipos para outros) que orientam os homens em suas ações. Constrói-se assim, o mundo e o homem, com o Grande Arquiteto traçando os planos estruturais e seus agentes trabalhando para executá-los. 
Assim, o Grande Arquiteto do Universo, que os maçons, em sua linguagem simbólica, abreviam para G. '. A.' .D. '. U. '. , é o termo utilizado para representar Deus em seu trabalho de arquitetura cósmica. Os anjos são seus mestres supervisores e os homens seus pedreiros. Fecha-se, dessa forma, o círculo místico que explica a forma maçônica de pensar um começo do universo e abre-se, para todos os temas do seu catecismo, uma justificativa do porque a Arte Real os trata desse modo.
O G.‘.
 A.’. D.’. U.’., portanto, é um símbolo que representa a “Hipótese Deus” dos cientistas, pois somente através dessa ferramenta linguística a mente humana pode conceber realidades que estão fora do alcance da seu alcance lógico.  
Qualquer coisa, para ser entendida, precisa ter um começo. Deus é o começo. Não satisfaz ao maçom pensar nele como um ancião de barbas brancas, semelhante a um velho patriarca bíblico, que procura criar e manter sua família confinada ás tradições de um clã, nem se comunga, na Maçonaria, com a visão – por muitos chamada de científica – que vê a Divindade orientando um processo de criação que se assemelha ao trabalho de um pecuarista selecionando crias para melhorar a sua espécie. Ao contrário, aqui a idéia é a de que aqui estamos como funcionários Dele, construindo alguma coisa que Ele arquitetou. Por isso o maçom é o pedreiro da obra universal e Deus é o Grande Arquiteto do Universo. 
Destarte, para a Maçonaria, a Hipótese Deus já está suficientemente provada. 

 



[1] Eugene Franklin Mallove (1947 – 2004) The Quickening Universe  –St Martins Pr; 1º edition, 1987.
[2] Stephen Hawking- Uma Breve Históriado Tempo- Círculo do Livro, 1988
[3] O universo em uma casca de nóz, citado, pg. 22
[4] Gênesis, 1: 3
[5] O panteísmo é a crença de que Deus é a própria natureza e não se distingue dela como entidade. Nesse sentido, Deus(theos) é o “tudo”(pan), e só existe como um princípio, uma energia, que dá geração a tudo que existe, mas não existe independente desse tudo. Nesse sentido, Deus seria o próprio universo, com suas leis físicas e morais.
[6] Knor Von Rosenroth-  A Kabbalah Revelada- Madras, 2010
[7] Idem, pg. 65                                                                    
[8]  A Kabbalah Revelada, op citado, pg 63
[9] Citado por Dion Fortune- Cabala Mística, pg 36
[10] Institutos da Religião Cristã , 1536.

DO LIVRO KABBALAH PARA MAÇONS- NO PRELO
 

João Anatalino
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Rui Bandeira