12 setembro 2008

A verdade da alegoria


Sob o marcador genérico de "alegoria", tenho publicado algumas historietas que me enviam, geralmente de autor desconhecido, com que procuro ilustrar princípios de ordem moral. Todas as pequenas histórias que publiquei tive-as na conta disso mesmo, de histórias, ficções criadas com o propósito de ilustrar preceitos morais. Mas o José Ruah, que tem por hábito investigar a verdade e a mentira do que lê na Net, descobriu algo muito interessante: uma das historietas que publiquei não é, afinal, ficção! A situação nela contada ocorreu na realidade! Não exatamente como contada, de forma que embelezou a realidade ocorrida (quem conta um conto acrescenta um ponto... e este conto foi muito contado...), mas ocorreu! Ainda por cima, trata-se de uma das histórias de que mais gostei, com que procurei ilustrar uma das virtudes que mais aprecio, a gratidão, e que intitulei O copo de leite.

Essa informação foi obtida aqui, de onde traduzo algumas passagens:

Trata-se de uma história muito apreciada e muito divulgada. No seu cerne, é uma história verdadeira , mas tem sido tão fortemente exagerada que agora é apenas uma caricatura de si própria, tendo sido distorcida de inúmeras maneiras, para melhor contar a história de um médico que não aceitou o pagamento de honorários pelos seus serviços, de uma jovem que uma vez lhe deu um copo de leite.
O Dr. Howard Kelly (1858-1943) foi um médico distinto, que foi um dos quatro médicos fundadores da John Hopkins, a primeira universidade de investigação médica nos Estados Unidos, e indiscutivelmente um dos melhores hospitais do Mundo. Em 1895, criou nela o Departamento de Ginecologia e Obstetrícia. Ao longo de sua carreira, contribuiu para o avanço das ciências da ginecologia e da cirurgia, quer como professor, quer como médico.

De acordo com a biografia escrita por Audrey Davis, a história da fatura paga na totalidade pelo copo de leite é verdadeira: no decorrer de um passeio a pé pelos campos do Norte da Pensilvânia, Kelly parou numa pequena casa para pedir um copo de água. Uma jovem respondeu ao seu pedido e, em vez de água, trouxe-lhe um copo de leite fresco. Depois de uma curta e amigável conversa, ele prosseguiu o seu caminho. Alguns anos mais tarde, a mesma jovem e ele reencontraram-se por causa de uma operação a que ela foi submetida e em que ele a operou. Pouco antes de ela partir para casa, a sua fatura foi-lhe entregue, estando nela escrito: "Totalmente pago com um copo de leite."


No entanto, deve notar-se que, embora a história seja verdadeira, tem sido grandemente embelezada para torná-la mais tocante.
Kelly nunca foi um estudante pobre que resolveu mendigar uma refeição na próxima casa. Descendia de uma família relativamente rica e não teve que trabalhar para estudar e muito menos vender mercadorias porta a porta. Para além de a família lhe custear os estudos e o seu sustento, o jovem estudante recebia da sua família uma mesada de 5 dólares - uma quantia apreciável para a época. No seu 21.º aniversário, o futuro médico recebeu cheques de 100 dólares, dados pelo seu pai e por várias tias, o que seriam consideradas somas astronómicas naqueles dias (1879).
O futuro Dr. Kelly gostava de passear pelos campos agrícolas e matas da Pensilvânia. Tinha um gosto especial por efetuar grandes caminhadas. No dia referido na história do copo de leite, ele era apenas um caminhante sedento, que pediu um copo de água numa fazenda por onde passou.

A biografia de Kelly não contém nenhuma menção ao facto de a jovem do copo de leite estar criticamente doente ou de ter sido enviada para Baltimore por ser vítima de uma doença rara.
Com efeito, nada se diz do seu caso, que indicasse que era incomum, ou que sua vida estava de alguma forma em perigo. Com exceção para o facto de o Dr. Kelly ter escrito na fatura que a mesma estava paga com o copo de leite, o seu caso não teve nada de especial.

No que diz respeito à sua anulação da fatura,
Kelly cobrava honorários muito elevados pelo seu trabalho, mas fazia-o apenas relativamente a pacientes que podiam pagar, prestando gratuitamente cuidados médicos aos menos afortunados. Numa estimativa conservadora, em 75% dos seus casos, não recebeu pagamento pelos seus serviços. Além disso, durante anos, pagou o salário de uma enfermeira para visitar e prestar cuidados aos seus pacientes, que de outra forma não poderiam suportar os custos dos tratamentos, fornecendo-lhes, assim, tanto serviços médicos, como de enfermagem, sem encargos.


Portanto, em suma:

  • Howard Kelly não era um jovem estudante arruinado que vendia mercadorias porta a porta, na prossecução do seu sonho de um dia se tornar um médico e, por isso, não foi resgatado da fome por um fortuito copo de leite. Foi um caminhante sedento, que pediu água numa fazenda e, em vez dela, foi-lhe dado leite.
  • A jovem que lhe deu o leite mais tarde veio a ser sua doente, mas provavelmente não porque estava morrendo ou porque o seu estado era incomum.
  • O Dr. Kelly escreveu que a fatura estava paga, mas procedia de igual modo com três em cada quatro pacientes tratados por si.
Embelezada, a história é bonita. Mesmo despida dos pontos acrescentados ao conto, continua a sê-lo, talvez não tão incisivamente como exemplo de gratidão, mas seguramente como exemplo de um homem bom que, tendo o privilégio de uma vida confortável, procurou auxiliar os menos afortunados do que ele. A verdade da alegoria é, pelo menos, tão edificante como a lição que se pretendeu ilustrar com o que se pensava ser só ficção, sem suporte na verdade.

Rui Bandeira

7 comentários:

Ivo Coelho disse...

Texto muito esclarecedor! Depois de ouvir algumas vezes a narrativa do copo de leite, fiquei curioso para saber até onde a história era verdadeira. Agora tenho minhas dúvidas completamente sanadas. Parabéns pelo blog! Abraços.

Unknown disse...

A mensagem por si só já é bonita, não haveria necessidade de "enfeitar" mais.
Mas as pessoas sentem a necessidade de tentar convencer as outras através de sentimentalismos, e não, de racionalidade, inteligência e atitudes de fé e de coragem!
Obrigada pelo esclarecimento, pois, já estava imaginando q a história toda pudesse ser uma farsa, parabéns!

Gilvan disse...

Bom, de qualquer forma na história permanecem as características do personagem, presentes na benevolência e na gratidão. Parabéns pelas histórias, a fictícia e a real, aliás, em essência, muito próximas.

Equipe de Conteúdo disse...

Bom dia. Muito bom saber que a história é de certa forma verdadeira. Hoje, com tantos mercenários travestidos de médicos, uma bela e verdadeira história nos restaura a fé na humanidade. Parabéns pelo blog e acabaste de ganhar um seguidor.

Vânia disse...

A história real do fato e da vida desse médico é ainda mais cativante e motivadora!

Maria disse...

Então, foi real em partes... Muito bonita história!

Genilson disse...

A cópia e emocional e a verdadeira é tocante à alma, pois remete a sensibilidade de um ser humano.