30 janeiro 2008

Como se faz em Loja

Na minha opinião, o traço distintivo da Maçonaria, o que lhe confere uma identidade única enquanto fraternidade, é a forma como se processa a interacção entre os seus membros e como decorrem as reuniões de Loja.

Já no texto O que se faz em Loja dei conta que todas as reuniões se iniciam com a execução de um ritual de abertura. Tal marca a fronteira, a passagem do bulício da vida quotidiana para a concentração dos trabalhos em Loja. Todos e cada um dos obreiros, com a sua participação no ritual, interiorizam que se vai passar a estar num ambiente diferente, que, por um lado, impõe o cumprimento de regras específicas e, por outro, permite uma postura menos defensiva por todos.

Concentração, colaboração, tolerância, respeito pelo outro e opiniões alheias, ordem, são posturas tão indispensáveis, tão presentes, que rapidamente por todos são interiorizadas e praticadas. Esta postura não prejudica a afirmação das opiniões de cada um nem a expressão de eventuais discordâncias. Nem sequer anula a possível existência de conflitos. Mas permite que cada um expresse em paz e sossego as suas opiniões, dê o seu contributo, concorde ou discorde. Permite que os conflitos se resolvam ou sejam tratados com elevação. Permite e propicia que se discutam ideias, opiniões, não pessoas e características pessoais. Permite que o que cada um afirma seja analisado, discutido, julgado, pelo seu valor, pela sua pertinência, não por ter sido dito por quem o disse, por se gostar ou não gostar de quem o disse. E permite discordar, veementemente se necessário, do que outrem afirmou, sem que tal discordância, veemente embora, seja tomada como ataque pessoal.

Em Loja, a comunicação entre obreiros segue regras simples, rígidas, claras e precisas. Rapidamente aquele que acabou de chegar ao grupo as identifica. E o estrito cumprimento dessas regras conduz à redução de atritos, à boa ordem dos trabalhos, à eficácia, à colaboração. Permite que das ideias de cada um se aproveite o melhor e que a deliberação global seja, portanto, melhor, mais esclarecida, mais aceite, do que as ideias individualmente expressas. Propicia consensos. E, quando estes não são possíveis, permite que todos entendam porque se optou pela solução escolhida, em função de que argumentos se decide o que se decide.

Essas regras não são muitas, são até talvez intuitivas, mas a sua prossecução facilita em muito o processo de discussão e de tomada de decisão, gera a confiança mútua e, por via desta, cria laços de cumplicidade e solidariedade incomuns. Seguir estas regras não deveria ser exclusivo da Maçonaria, porventura não o será. Mas não as vejo comummente seguidas em mais nenhum lado. E eu gostaria, todos os maçons gostariam, que fossem naturalmente prosseguidas em tantos lados, em tantas organizações, quanto possível. Seguramente que a nossa Sociedade melhoraria um pouco...

A primeira das regras é que, salvo movimentações especificamente determinadas pelo ritual, uma vez que cada um tomou o seu lugar, ninguém se movimenta pela sala sem para tal estar autorizado pelo Venerável Mestre e sem ser acompanhado, melhor dito, conduzido por um Oficial da Loja que assume essa como uma das suas missões específicas - o Mestre de Cerimónias. Assim, não há ajuntamentos, não se criam grupos em função de posições em discussão. Cada um tem o seu lugar e permanece no seu lugar. Por si só, esta simples regra induz uma noção de ordem, de sossego, de calma, que obviamente muito ajuda à eficácia dos trabalhos e à prevenção de conflitos.

A segunda das regras é que cada um só intervém apenas e só quando a palavra lhe é concedida. Não se interrompe ninguém! O único elemento que pode interromper qualquer obreiro que esteja no uso da palavra (até o Venerável Mestre!) é o Orador, oficial da Loja cuja função é zelar pela regularidade dos trabalhos, pela preservação do ritual, pelo cumprimento das regras. Só ele pode interromper, assinalando uma falha, uma falta ou um desvio. E a sua intervenção não tem discussão. É acatada e nada mais! Se o não for, ao faltoso é, pura e simplesmente, retirada a palavra! Quando um obreiro pretende usar da palavra, assinala essa intenção com um específico gesto do braço. O Vigilante da coluna respectiva, quando o obreiro que estiver no uso da palavra tiver terminado, informará que existem na sua coluna obreiros que pretendem usar da palavra e esta ser-lhes-á concedida, por ordem de solicitação, sempre mediante prévia anuência do Venerável Mestre. Com o cumprimento desta regra, não há atropelos, não há interrupções, cada um pode, livre e calmamente, exprimir o seu pensamento. Poderá a outro obreiro parecer que quem usa a palavra está a dizer o maior disparate do Mundo. Mas tal não legitima que ele seja interrompido, que não possa expor até ao fim a sua ideia. Depois, poderá quem discorda manifestar-se e justificar porque considera a ideia exposta o maior disparate do Mundo...

A terceira regra é que cada obreiro se dirige ao Venerável Mestre e, através deste, à assembleia, nunca a um outro obreiro em particular. Não há discussões privadas, não há duelos individuais. Há apenas e tão só a exposição e defesa de ideias perante todos. É impressionante como o cumprimento desta regra agiliza a discussão séria de qualquer assunto!

A quarta regra é que se discutem ideias, não pessoas. O obreiro com que eu mais antipatizo pode ter a mais brilhante das ideias. O obreiro que me é mais próximo pode ter uma ideia péssima. Concordar com a primeira não me obriga, por si só, a passar a simpatizar com o seu autor. E discordar de uma ideia só porque não gosto do seu autor, é pura e simplesmente estúpido! E uma relação de especial amizade com alguém não me obriga a concordar com uma sua ideia que seja errada e não me desobriga de assinalar o erro. Pensar, debater e agir racionalmente, esse o objectivo.

A quinta regra é que, em relação a cada assunto, cada obreiro intervém apenas uma vez. Excepcionalmente, se a complexidade do assunto ou o rumo do debate o aconselhar, o Venerável Mestre pode autorizar uma segunda ronda de intervenções. Mas chega e é só. Consegue-se assim debater um tema e chegar a uma conclusão num tempo razoável. Cada um expõe as suas ideias, estão expostas. Só raramente surgirá a necessidade de quem já falou clarificar, aprofundar, o seu pensamento (ou,em função do debate, expressar a modificação da sua posição). Não é útil o repisar de posições, a insistência no que já se disse. Todos ouviram à primeira...

A sexta regra é conhecida: não se discute em Loja política ou religião. Mesmo com toda a tolerância, com todos os cuidados, é melhor prevenir que remediar... E, afinal, a religião de cada um é com cada qual e cada um tem direito a ter as suas opções políticas sem que ninguém tenha nada com isso...

O simples cumprimento destas intuitivas regras (porque será que é tão raro que assim se veja?) permite chegar, em prazos razoáveis, às melhores soluções ou conclusões possíveis, sem ferir pessoas ou os seus sentimentos, propiciando consensos.

E destas discussões efectivamente nasce a luz! E assim, com os sérios contributos de todos, se reforçam os laços de amizade e de fraternidade. E assim cada vez é mais fácil discutir, sem traumas, sem desconfianças, temas cada vez mais sensíveis ou complexos. E assim obtemos os nossos consensos com alegria e assentamos nas nossas discordâncias sem azedume. Porque, sempre!, cada um de nós, acima de tudo, respeita as opiniões alheias e vê as próprias respeitadas, tolera os erros ou as diferenças alheias, como vê os seus próprios erros e idiossincrasias tolerados.

Como se faz em Loja? Com ordem, com regras, com respeito, com tolerância. Em suma, com Harmonia!

Rui Bandeira

4 comentários:

Paulo M. disse...

Concordo com o Rui quando diz que estas regras são, no seu conjunto, simples e desejáveis para a sociedade no seu global, e não só para a Maçonaria.

Contudo, uma das regras mencionadas surpreendeu-me, por me parecer pouco... maçónica: a de cada um só poder falar uma vez ou, quando muito, duas, de modo que se possa "[chegar], em prazos razoáveis, às melhores soluções ou conclusões possíveis".

Afinal, a Maçonaria preocupa-se mais com o tempo, ou com a acuidade?! A melhor solução, a mais perfeita, atingir-se-ia - a meu ver - quando ninguém tivesse nada de novo para dizer, nada a acrescentar às palavras que tivessem acabado de ser ditas por outro.

A palavra poderia ser retirada a quem repisasse uma ideia. Não obstante, dar-se-ia a palavra a quem tivesse algo por dizer que pudesse aperfeiçoar a conclusão. A discussão não estaria esgotada enquanto houvesse o que dizer - levasse uma volta, duas, três ou a noite inteira. Demorando muito tempo, poder-se-ia suspender o tema e continuá-lo mais tarde. Sem pressas.

Claro que a premissa do meu argumento é a de que se pretende chegar à melhor conclusão possível - o que, no meu entender, dificilmente se consegue se não se esgotar o tema. De outro modo, creio que se corre o risco de superficialidade nas conclusões - um "consensozinho morno" e politicamente correcto com o qual poucos se identificam.

Não é melhor que fiquem claras as razões e as discordâncias? Ou estou a pensar muito mal?

Um abraço,
Simple Aureole

Rui Bandeira disse...

@ simple:
A sua surpresa radica, parece-me, na habituação do modo profano de discutir qualquer assunto, em que, na maior parte das vezes, os intervenientes procuram influenciar os demais para a SUA posição, convencê-los de que o que pensam é que está correcto e cujo resultaso, normalmente, decorre mais da vitória da capacidade de argumentação de quem defende uma posição ou da aliança táctica de duas ou mais posições para derrubar as restantes. Decisões e consensos resultam de maiorias, não necessariamente de acertos...
Os maçons não pretendem - longe disso! - ser infalíveis e fazerem sempre as melhores escolhas. Mas procuram que as suas escolhas não decorram deste "jogo" de habilidade retórico-negocial em que normalmente se transforma uma discussão sobre qualquer decisão a tomar.
Porque as regras são diferentes, a postura é diferente e não são precisas, nem admnitidas, nem rentáveis, tácticas de discussão para fazer vencer posições.
Numa reunião de Loja, o debate de qualquer assunto não é feito na perspectiva de quem quer que seja vencer ou convencer os restantes. É feito na perspectiva de recolher e ouvir as opiniões de quem tem opinião sobre o tema e, ouvidas estas, poder-se tomar a melhor decisão possível, em face dos elementos de análise disponíveis.
Por isso, não é necesário, nem saudável, nem frutuoso, fazer três, dez, vinte intervenções sobre o tema. Isso faz-se quando se quer convencer alguém, quanto mais não seja pelo cansaço...
Em Loja, quando se debate um assunto, cada maçon que pretenda dar a sua opinião, dá-a. Diz qual é, e porque a tem. Está dito e mais não é preciso! O elemento seguinte fará o mesmo. O subsequente, idem. No fim das intervenções, conhece-se as opiniões, e as razões, de todos os que intervieram. Sabe-se tudo o que se tem de saber para se decidir! Para quê prosseguir?
Numa reunião de Loja não se procura ganhar debates nem convencer ninguém. Cada um dá a sua opinião- e chega!
O conjunto das opiniões formuladas constitui o acervo que há-de iluminar a decisão.
Mas ao simple falta um elemento, que não consta do texto (porque não era objecto do seu tema): a particular forma de decisão que existe numa Loja Maçónica.
Isso será objecto, oportunamente (depois de concluída a série de textos em resposta ao comentário de JPM ao texto "A prancha de Aprendiz"). Então porventura compreenderá melhor a desnecessidade - a inutilidade - de prosseguir com o debate de um assunto depois de cada um ter tido a sua intervenção sobre o assunto (excepcionalmente, duas).

Paulo M. disse...

@ Rui:
A meu ver, a discussão de um tema pode ter (pelo menos) três propósitos: um pragmático (chegar-se a uma conclusão, melhor ou pior, que dê por encerrada a questão), um filosófico (confrontar-se diferentes pontos de vista que permitam que cada enriqueça atraves do contacto com perspectivas diferentes, o que não implica que se chegue a conclusão alguma) e um humano (conhecer-se os outros através daquilo que defendem e que os distingue de nós).

Creio que há lugar para as três perspectivas do diálogo. Não haver, por vezes, senão tempo para a primeira não implica que esta seja a mais importante; pessoalmente, acho muito mais enriquecedoras as outras duas.

Como a entendo, a conclusão perfeita só pode surgir de um processo em que cada um, confrontado com a posição dos demais, acabe por firmar a sua. Todos aqui chegados pode-se, então, tentar chegar a um consenso - uma posição que fique no centro geométrico das posições tomadas, ou que de todos seja equidistante, mesmo que não coincida com a posição de nenhum.

O que me pareceu foi que o método descrito não contempla esta dinâmica de dar a cada um a oportunidade de ir mudando de opinião, ou de sentir a necessidade de expressar o que tinha antes calado por não antever que fosse relevante - mas entretanto tenha vindo a sê-lo - presumindo, quiçá, que a posição de cada um está firmada de antemão, ou não deve ser questionada, e resta apenas coadunar vontades. Perde-se, porém, a excelente oportunidade de que uns aprendam com os outros!

É por tudo isto que tenho tendência a dar respostas às respostas que aqui vou recebendo - nem que seja para concluir que as diferenças são esta e aquela. Tomar consciência das diferenças e enumerá-las nunca me assustou; pelo contrário, creio que fortalece as relações entre as pessoas.

Todavia, diz-me o Rui que não estou ainda de posse da informação necessária para poder apreciar esta questão na sua globalidade. Ora, venha lá ela então e, à custa de sucessivos incrementos, certamente acabarei por chegar a uma conclusão mais iluminada.

Mas afinal, talvez a questão seja mais simples: pode não ser esse o momento nem o local para o tipo de discussão de que falo; esta poderia ocorrer, sim, mas em momento prévio, pretendendo-se em loja apenas concluir. Será isso?

Um grande abraço,
Simple Aureole

Rui Bandeira disse...

@ simple:

Qualquer dos três objectivos é prosseguido com a fórmula de discussão vigente em Loja.
O primeiro, pela forma que expliquei no comentário anterior; os segundo e terceiro, porque, expondo os intervenientes os seus pontos de vista, sem reservas, sem guardar "munições" para terceiras, quartas e quintas rondas de conversa, mais facilmewnte se dá o eventual confronto de pontos de vista e se conhece os parceiros.
Cada um pode perfeitamente mudar de opinião em função da discussão. O que não é necessário é tomar de novo a palavra para o anunciar! O que se busca é ouvir as opiniões tidas por asadas e, feito isto, tirar as conclusões sobre o melhor caminho a seguir. Não se "contam espingardas" e, portanto é desnecessário anunciar mudanças de posição.
Uma discussão em que eu me pronuncio dando a opinião que a melhor cor é o branco e, depois, em função das demais opiniões expressas, eu chego à conclusão que afinal o melhor é o vermelho é muito frutuosa, independentemente de eu anunciar formalmente a minha mudança de opinião.
Em Maçonaria, o individual contribui para o colectivo e o colectivo melhora o individual - sem necessidade de manifestação de eos...