22 janeiro 2007

Do Início da Vida Humana

Para início de conversa, quero deixar bem clara a minha posição, que se resume a duas frases: 1. Eu sou contra o aborto; 2. Eu vou votar SIM no referendo de 11 de Fevereiro à pergunta se concordo com a despenalização do aborto, se feito a pedido da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, até às dez semanas de gravidez.

Não existe qualquer contradição entre as duas proposições: ser contra o aborto não implica concordar com a penalização de quem decide recorrer a ele, sabe-se lá com que estado de alma; concordar com a despenalização do aborto até às dez semanas de gravidez e praticado, por opção da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, isto é, sem ocorrer de forma clandestina, não me faz entender que o aborto seja algo bom.
Respeito a posição de todos aqueles que liminarmente rejeitam a despenalização, com fundamento no direito à vida do ser concebido. Reconhecendo o pressuposto ético de tal posição, considero, porém, que à mesma falece fundamento racionalmente lógico.
Do meu ponto de vista, uma questão tão sensível em termos éticos, emocionais e sociais só pode ser adequadamente analisada à luz de uma estrita racionalidade. E, à luz da mesma, importa afastar alguns escolhos que só servem para perturbar a lúcida visão do problema.
Em primeiro lugar, não está em causa, no debate da questão, se existe Vida no embrião. É inegável que existe Vida no embrião. A questão, até do ponto de vista ético, não é se se vai atentar contra a vida existente no embrião, mas se existe então, e se se atenta contra ela, Vida Humana.
Atentar contra a Vida é inevitável e uma necessidade imperiosa da nossa sobrevivência, quer individual, quer enquanto espécie: matamos animais para comer, aniquilamos insectos que nos incomodam, ou roedores que invadam o nosso habitat, colhemos, e assim matamos, plantas para a nossa alimentação ou simplesmente para nosso deleite visual (a Vida vegetal não deixa de ser Vida...); destruímos bactérias porque nos atacam ou simplesmente nos causam sintomas desconfortáveis; mais, o nosso sistema imunitário naturalmente destrói a vida de bactérias e vírus que penetram no nosso corpo (e ai de nós quando falha...). O Universo está organizado de forma que a sobrevivência, o simples conforto, dos membros de uma espécie implica a aniquilação, a destruição, a morte de membros de outras espécies. Esta é uma constatação inevitável, que nos obriga a concluir que o que constitui violação ética não é o atentado contra a Vida, é o atentado contra a Vida Humana.
O que importa então verificar é se o aborto até às dez semanas constitui a morte de um Ser Humano. E é neste ponto que eu divirjo das análises mais simplistas dos defensores do Não. No meu entender, o critério para estabelecer o momento a partir do qual se inicia a Vida Humana não pode deixar de ser similar ao critério que é estabelecido quanto à cessação da mesma.
Durante milhares de anos, o limiar entre a Vida e a Morte aferia-se pela capacidade de respirar: quem respirava estava vivo; quem já não respirava estava morto. Se não erro, a Tradição Judaica ainda incorpora esta noção. Daí resultava que, simetricamente, a Vida Humana só se iniciava com o nascimento, momento a partir do qual o nóvel Ser Humano passava a respirar autonomamente. E, se o não fizesse, era considerado um nado-morto. Esta noção ainda se manifesta no Sistema Jurídico, que considera qua a personalidade jurídica só se adquire pelo nascimento. É, creio, em função desta noção, que nas sempre directas culturas anglo-saxónicas, se conclui que, só existindo personalidade jurídica com o nascimento, então, antes do nascimento o feto não tem quaisquer direitos (nem o direito à vida...) e, logo, é admitido o aborto sem limitação de tempo (Estados Unidos, Inglaterra). Obviamente que a Ciência nos permite hoje saber que a fronteira entre a Vida e a ausência dela não está na capacidade de respirar autonomamente e, por consequência, esta noção está ultrapassada.
Hoje em dia, está, creio que consensualmente, admitido que a fronteira entre a Vida e a Morte se situa na cessação da actividade cerebral. Existindo actividade cerebral, a pessoa está viva; quando ela já não existe, morreu. Logo, se a Vida Humana cessa quando cessa a actividade cerebral, então a mesma inicia-se quando tal se inicia!
Estabelecido este princípio, então a sua aplicação à questão do aborto torna-se intuitiva: o aborto será, ética e juridicamente, admissível se e enquanto não se tiver iniciado actividade cerebral.
A Ciência elucida-nos também que é a partir das dez semana de gestação que se começam a criar as células do sistema nervoso central e que um aglomerado de células nervosas agrupadas no que virá a ser o cérebro existirá por volta das doze semanas de gestação; é assim certo que não existe actividade cerebral antes das dez semanas de gestação. Esta será a razão pela qual, até às dez semanas de gestação, o conjunto de células em desenvolvimento é denominado de embrião e, a partir daí, passa a ser designado por feto.
Em resumo: até às dez semanas de gestação não existe actividade cerebral e, logo, ainda não se iniciou a Vida Humana. Logo, não constitui atentado à Vida Humana o aborto até essa ocasião. Não me é, assim, eticamente inadmissível a despenalização do aborto até às dez semanas de gestação.
Rui Bandeira

1 comentário:

Paulo M. disse...

Apesar este assunto já não estar na ordem do dia, mas por ser assunto de interesse permanente, não posso deixar de comentar uma falácia lógica em que eu mesmo caí e defendi até dela me aperceber.

À medida que a ciência evolui, evoluem-se os critérios de aferição da morte. Contudo, verdade de La Palisse que seja dizê-lo, o único problema da morte é a sua irreversibilidade. A paragem respiratória, cardíaca ou cerebral mais não são do que meros indícios.

"Existindo actividade cerebral, a pessoa está viva; quando ela já não existe, morreu. A palavra chave é o "já"; tendo existido actividade cerebral, e depois desaparecido, sabemos que nunca mais reaparecerá. Contudo, presume-se que tenha existido primeiro!

"Logo, se a Vida Humana cessa quando cessa a actividade cerebral, então a mesma inicia-se quando tal se inicia!" A falácia encontra-se aqui. A ausência de actividade cerebral que vemos num embrião não se deve ao facto de ter cessado de existir, mas ao facto de não existir ainda. Não podemos, assim, comparar um embrião "ainda não consciente" a um corpo "já nunca mais consciente". Um ainda não tem (mas tudo está preparado para que venha a ter), enquanto que o outro já não tem (nem poderá vir a recuperar); são realidades bem distintas. Uma é irreversível; a outra é uma quase certeza.

Por mais que nos esforcemos por estabelecer fronteiras e riscos na areia, há fenómenos na natureza que não são discretos, com clivagens e fronteiras definidas, mas antes contínuos e suavemente progressivos. Desde a concepção que, progressivamente, nos vamos "fazendo gente", até deixarmos de o ser. É um fenómeno progressivo, balizado pelas duas fronteiras absolutas: a concepção e a morte.

Apesar de não ser a favor do aborto, não me choca a sua despenalização. De facto, o aborto não é um factor de perturbação social como o roubo ou o homicídio de um adulto, comportamentos que a sociedade precisa de reprimir em prol da paz social. Por outro lado, desde que não tenha ainda sistema nervoso, o feto não sofre.

A questão parece-me cair, assim, no foro do sistema moral que rege cada um, e no íntimo de quem o comete. À semelhança da blasfémia e da inveja, é um "crime" cuja principal vítima é quem o comete (no sentido de que esta é quem mais sofre) acabando por se punir ipso facto. No que me toca, nestas circunstências, prefiro deixar para Quem tudo sabe o ingrato papel de punir - ou perdoar.